130.26

Colo-Colo, 95 anos: de instrumento da ditadura à resistência antifascista

Há 95 anos, o Colo-Colo era fundado no Chile. E gostaríamos de aproveitar a efeméride para refletir sobre a importância deste clube para além das quatro linhas do campo de jogo. Mais precisamente sobre sua relevância para a própria História Política contemporânea da América Latina.  

Como gostam de provocar os colo-colinos, o futebol chileno se divide entre aqueles que amam e odeiam o Colo-Colo. Brincadeiras à parte, o alvinegro de Santiago é, indubitavelmente, um dos clubes mais lembrados, apreciados, prestigiados e, porque não, temidos e detestados do Chile. Por isso, não é tão difícil encontrarmos referências, muitas delas ufanistas, sobre a sua história, suas memórias e tradições. Dentre elas, o livro Goles y Autogoles, do jornalista Daniel Matamala que, de maneira um tanto quanto teleológica, considera a fundação do Colo-Colo uma espécie de divisor de águas do futebol chileno, por ter sido ela fundamental para a conversão desse esporte em um fenômeno de massas, já que “sua mística e hierarquia de futebol permitem arrastar milhares de pessoas para os campos, tanto em Santiago quanto em seus contínuos movimentos fora da capital”.

Sem entrar no mérito da pertinência da leitura que Daniel Matamala faz da fundação do Colo-Colo, Goles e Autogoles também nos premia com uma interessante abordagem política da história do clube chileno. De acordo com o jornalista, o sucesso do Colo-Colo e sua identificação com o povo chileno fez o clube se tornar “presa” favorita dos políticos. Até aqui, nenhuma novidade, não é mesmo?

Complementando a narrativa de Matamala, Raúl Vergara, em seu texto Fútbol como objeto de deseo del poder político en Chile: los casos del Colo Colo 73 y Carlos Caszely, nos diz que essa instrumentalização política do clube de Santiago tornou-se icônica durante a década de 1970, contexto em que o futebol chileno será também convertido em um ator importante da sociedade. E, talvez para surpresa de muitos, de acordo com Vergara, tanto Salvador Allende quanto Augusto Pinochet perceberam o poder de união nacional que o Colo-Colo era capaz de proporcionar. Vamos, então, a essa história.

Como deve ser de conhecimento de muitos, em 1970 Salvador Allende foi eleito o primeiro presidente socialista da história do Chile e os primeiros anos de seu governo foram marcados por avanços do projeto de governo da Unidad Popular (UP). No entanto, em 1973, o Chile passou a viver uma crise política, econômica e social, resultado de um processo de deslegitimação do governo de Allende organizado pela direita chilena, com o apoio dos Estados Unidos. A crise levou ao desabastecimento de combustíveis e alimentos, acentuando, ainda mais, a polarização social e ideológica no país. No entanto, como observado por Vergara, seria nesse mesmo contexto que o futebol, simbolizado principalmente pelo Colo-Colo, seria usado pelo instável governo de Allende como estratégia de coesão social e união nacional.

No documentário O clube mais usado pela Ditadura Militar?, lançado em 2018 e produzido pelo canal Peleja, Cristóbal Correa, diretor da extinta revista De cabeza, declarou que a crise política, de certa maneira, se apaziguou nos momentos em que o Colo-Colo jogava, pois todos estavam “em frente a TV, vendo como se sairia o Colo-Colo na partida seguinte.”

Ainda nesse sentido, o jornalista chileno Luis Urrutia, autor do livro Colo Colo 1973, el equipo que retrasó el golpe, destacou que o clima de concertação social proporcionado pelo clube chileno permitiu que o golpe fosse adiado, já que era o Colo-Colo, em plena campanha de Libertadores, que mantinha Allende seguro. Em entrevista concedida ao jornal El Mostrador, o autor relatou que o Colo-Colo era “a única coisa que unia um país muito desunido. O próprio presidente (Salvador) Allende disse aos jogadores. (O técnico) Luis Álamos diz que antes dos jogos importantes, o presidente o chamou e disse: ‘Espero que eles ganhem, para manter o país unido’.”.

Equipe do Colo Colo com Salvador Allende em 1973: presidente chileno percebeu que o time era um raro fator de união nacional.
O Colo Colo de 1973, em mural pintado em 2013 pelo coletivo “Campeones de Estampa”.

Em 11 de setembro de 1973, a queda do presidente da Unidad Popular marcou profundamente a história do Chile dando início a uma ditadura militar que durou até 1990. O aparato repressivo da ditadura pinochetista pautou-se na perseguição, prisão e tortura de intelectuais, estudantes, políticos e ativistas ligados aos movimentos e partidos de esquerda e de oposição.

A constatação de que o futebol poderia lhe servir de manobra política e social fez com que Pinochet logo elegesse o Colo-Colo como um instrumento a seu favor. Conforme observado por Vergara, a relação entre o futebol e a política durante a ditadura militar se pautou de duas maneiras: na primeira, buscava-se controlar o futebol através da intervenção, direta ou indireta, da Asociación Central de Fútbol (ACF), e de alguns clubes importantes através de influências; na segunda, o governo continuou financiando a ACF, pois nas palavras de Pinochet, citado por Vergara “cuando es cosa de fútbol, la gente no perdona”.

Para neto, estádio do Colo-Colo não existiria sem Pinochet. Fonte: Arquivo hoyxhoy.

 

Não por coincidência, em 1984 o general Pinochet se tornou presidente honorário do Colo-Colo, só perdendo este status no recente ano de 2015. As aproximações do ditador com o clube, como o financiamento do estádio do clube, e a tardia suspensão colo-colina do título honorário de Pinochet fez com que o Colo-Colo passasse a ser interpretado pelas torcidas rivais como “o time de Pinochet” ou o “time da ditadura”. Uma afronta, ou, no mínimo, uma pecha injusta, para os torcedores do Colo-Colo. Segundo nos confessou, por exemplo, Rubén Amaya, um chileno e torcedor do Colo-Colo que mora em São Paulo há 6 anos, a torcida, assim como a maioria da população do Chile, “condenou duramente o regime ditatorial, mas isso só consegue ser visibilizado com o retorno da democracia, por diversos fatores, dos que eu destaco: a queda das diligências chupafusil[1] da ditadura, a organização da torcida organizada, sob o nome da Garra Blanca.”

Embora tenhamos noção das diferenças entre a apropriação do Colo-Colo por Allende e Pinochet, não deixa de ser interessante observamos o simbolismo do clube como objeto de união nacional, o que só comprova o poder político que o futebol e as torcidas podem ter. Dessa forma, os 95 anos do Colo-Colo vão além de uma simples data comemorativa. Para nós, brasileiros e latino-americanos, é uma oportunidade de compreendermos a força que o futebol e as torcidas podem exercer nos processos políticos.

A trajetória do clube demonstra que o futebol pode ir muito além de um esquema tático: ele é capaz de resistir à repressão e de enfrentar as políticas neoliberais que carregam a memória da ditadura militar. As atuações dos Antifascistas de La Garra Blanca nos protestos contra o presidente Sebastian Piñera no ano passado e durante este ano são um exemplo disso. O apelo para a participação da torcida mobilizou os torcedores colo-colinos e manteve os protestos ativos contra a repressão e o governo neoliberal de Piñera. Orgulhoso, Rúben Amaya chama atenção para o fato de que a articulação dos Antifascistas de La Garra Blanca “foi a com maior poder de convocatória nos protestos, mobilizando milhares, tantos nas ruas quanto nos estádios”.

Em um vídeo publicado pela página oficial dos Antifascistas de La Garra Blanca no dia 18 de outubro de 2019, é possível ver a mobilização dos torcedores durante o protesto entoando o cântico já conhecido pela torcida “Vamos, vamos, vamos, Colo-Colo / la alegría de mi pueblo / que se muera blanco y negro / esta hinchada siempre va de frente / con los cuicos[2] y las madres / y la policía verde / sangre araucana / somos hijos de la raza brava / es diferente / Garra Blanca activa y combatiente”

Na descrição do vídeo, a página destaca que os torcedores se uniram contra a injustiça e que agora o governo “treme diante dos abusos contra o nosso povo. Graças à juventude rebelde, aos colo-colinos que vieram e aos vizinhos, é um momento emocionante e histórico”.

 

Dessa maneira, o posicionamento da torcida antifascista rechaça não apenas a alcunha de “time do Pinochet”, como também nos demonstra a sua preocupação com a memória, com o antifascismo e com as classes populares. Assim, é perceptível que os espectros da ditadura pinochetista e do neoliberalismo ainda estão presentes no Chile, mas a torcida do Colo-Colo tem se mostrado disposta a espantá-los.     

Fonte: Reprodução autorizada do Instagram Antifascistas de La Garra Blanca.

[1] Expressão popular chilena que significa, de maneira geral, pessoa rica e que ostenta riqueza.

[2] Expressão chilena que significa, de maneira geral, admirador e defensor da ditadura. 

REFERÊNCIAS

 COLO Colo 73: el equipo que pudo atrasar el golpe. El Mostrador. Santiago, 09/09/2013. Acesso em 15/04/2020. 

JEREZ VERGARA, Raúl. Fútbol como objeto de deseo del poder político en Chile: los casos del Colo Colo 73 y Carlos Caszely. 2018. Tese de Doutorado. Universidad Andrés Bello.

Matamala, D. (2015). Goles y Autogoles: Historia política del fútbol chileno (Segunda ed.). Santiago: Viral Ediciones.

O CLUBE mais usado pela Ditadura Militar?. Direção de Murilo Megale. Peleja, 2018 (18 min)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Mariana Brescia

Atleticana, graduada em História pela PUC Minas, pesquisadora do projeto Saberes da Terra (UFMG) e participante do Grupo de Estudos e Pesquisa Memória FC.

Marcus Lage

Bacharel, Licenciado e Doutor em História. Mestre em Ciências Sociais. Pós Doutor em Estudos Literários. Professor do Instituto de Educação Continuada da Puc Minas. Torcedor-militante do América! Se aventurando pelo mundo da crônica!

Como citar

BRESCIA, Mariana; LAGE, Marcus Vinícius Costa. Colo-Colo, 95 anos: de instrumento da ditadura à resistência antifascista. Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 26, 2020.
Leia também:
  • 132.73

    18 anos sem Roberto Drummond, o “elemento comunista” das crônicas esportivas

    Mariana Brescia
  • 132.1

    “Porque mistério sempre há de pintar por aí” (III:) Manifesto contra os tapetes vermelhos

    Mariana Brescia
  • 131.65

    “Porque mistério sempre há de pintar por aí” (I)

    Letícia Marcolan, Mariana Brescia, Marcus Vinícius Costa Lage