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Com gestos sutis, o jornalismo esportivo também endossa cultura que naturaliza a barbárie

Não é segredo que trabalho na área de esportes de um grande grupo de comunicação. Poderia usar a estrutura e espaço que tenho neste veículo de mídia para debater com milhares de pessoas temas como o combate à homofobia no esporte. No entanto, sou obrigado a tratar do tema apenas por aqui.

Não foi por falta de tentativas. A mais recente em agosto, uma reportagem que propus sobre os Jogos Gays, similar a uma Olimpíada, em que cerca de 10000 atletas da comunidade LGBT praticamente bancam do próprio bolso a participação nas competições. Mas “para não dar bandeira”, a sugestão foi para a gaveta. Outras pautas, como “a pouca presença de negros em cargos de chefia no futebol”, tampouco foram adiante por não terem aval para serem produzidas.

É de espantar como o mundo do esporte em geral ainda demonstra extrema dificuldade e pouco esforço em abandonar atitudes másculas e viris para brecar discussões necessárias sobre questões raciais e de gênero, por exemplo. Desde o “esporte é coisa de homem”, passando pelo “mimimi” e “esporte e política não se misturam”. Não surpreendem, portanto, nesse ambiente hostil que veste uma carapuça de “popular”, manifestações preocupantes como a da torcida do Atlético-MG no último domingo no clássico contra o Cruzeiro no Mineirão.

O jornalismo, nesse contexto, tem o dever de ser um importante instrumento na tentativa de formar uma nova cultura de torcer, capaz de enfrentar qualquer discriminação. No entanto, alguns profissionais da área não hesitam em ir na contramão desse objetivo. A imprensa esportiva, viciada em tratar o esporte apenas como um fenômeno técnico, e não cultural, escorrega quando se acha capacitada para “mexer na ferida”.

Todos conhecem a personalidade de Felipe Melo. Não vai mudar. O volante palmeirense incita e pratica a violência dentro e fora de campo sem qualquer pudor há muito tempo. Felipe amplifica, graças à sua fama, o pensamento político do candidato que lidera a corrida pela Presidência do Brasil, como aconteceu também no último domingo, na partida contra o Bahia, quando dedicou seu gol no empate em 1 a 1 a Jair Bolsonaro.

https://www.youtube.com/watch?v=rEwIghqG06E

Diante do já conhecido comportamento do jogador, por que insistir em dar voz a quem transforma uma mera entrevista em palanque de incitação ao ódio, à homofobia e ao machismo? Para fisgar mais uma declaração polêmica? Para “bombar” e viralizar uma reportagem?

Manifestações políticas são válidas desde que tenham o objetivo de promover os reais valores da democracia, como a justiça e a inclusão, também compartilhados pelo bom jornalismo. Para esses momentos, o microfone deve estar sempre aberto. Mas este, seguramente, não é o caso da ideologia e retórica que permeiam Bolsonaro e seus seguidores. O repórter e o formador de opinião precisam ter esse discernimento e conhecer a linha que divide liberdade de expressão e discurso preconceituoso.

Ao cobrir Felipe Melo sob o manto da “liberdade de expressão”, como fez um artigo de opinião no site do canal “SporTV” (leia aqui), o jornalismo esportivo dá sua contribuição para a naturalização indevida da barbárie. Essa postura “liberal”, de aceitação, normalidade e inserção do radicalismo nas “regras da democracia”, como o próprio artigo descreve, só resultará em uma manipulação do jornalismo com o intuito de destruir os já frágeis pilares de nossa democracia. Típico dos figuras totalitárias que a história não se cansa de nos recordar. Nós, jornalistas esportivos, não podemos ser reféns dessa armadilha.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mattheus Reis

Estudante de Comunicação Social/Jornalismo (UERJ). Apaixonado por esportes e história, eu descobri o jornalismo como vocação e busco contribuir para que a sociedade seja cada vez mais cidadã.

Como citar

REIS, Mattheus. Com gestos sutis, o jornalismo esportivo também endossa cultura que naturaliza a barbárie. Ludopédio, São Paulo, v. 111, n. 21, 2018.
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