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Comemorando o Orgulho LGBT no esporte: quem foi Glenn Burke?

Wagner Xavier de Camargo 4 de julho de 2021

Em tempos de conservadorismos de amplos espectros e homofobia generalizada, vale exaltar trajetórias de pessoas que desafiam (ou desafiaram) valores e ideias comuns no esporte, mostrando que outras formas de ser e viver também têm legitimidade. Afinal, 28 de junho se comemora o dia do “Orgulho LGBT”, movimento que tem crescido nos últimos tempos a ponto de tal sigla hoje poder ser expandida para LGBTTTQIAPN+.[1]

Este foi o caso de Glenn Burke, um jogador estadunidense negro, profissional de beisebol, que foi o primeiro a se reconhecer como homossexual nessa modalidade em plena década de 1970, ainda num momento em que a homossexualidade era tratada como doença e havia sentimentos dúbios em relação às despadronizações de comportamentos, inclusive os sexuais, trazidos pelos ventos da Revolução Sexual, alguns anos antes.

Burke começou sua carreira nas ligas juniores do Los Angeles Dodgers, ainda em 1971. Ficou ali durante certo tempo, com uma campanha digna de elogios por suas rebatidas firmes e certeiras. Devido ao excepcional desempenho, era considerado uma estrela em ascensão. Em 1977 iniciou-se na Major League, ou liga principal de beisebol (MLB), e logo começaram os problemas.

Técnicos e assistentes técnicos implicavam com Burke mediante suas opiniões mais sinceras e ríspidas ou frente ao seu jeito extrovertido de ser, porém colegas de equipe o consideravam simpático e afável. Pouco a pouco sua vida privada começou a ser um problema para os treinadores: o atleta, no entanto, reconhecia que muitos companheiros sabiam de sua orientação sexual e não se importavam. Os mais sisudos o evitavam nas duchas do vestiário, e apesar disso, Burke não se deixava abalar, tomando banho ou se trocando junto aos demais.

O administrador da equipe dos Dodgers, Alexander Campanis, certa vez ofereceu para bancar uma lua-de-mel com uma mulher para que Burke parasse com “seus delírios homossexuais”. Por sua vez, Thomas Lasorda, então um dos assistentes técnicos do time, implicava com o atleta por causa de seu “estilo de vida”, como se referia às práticas homoeróticas com outros homens, e por sua relação íntima com seu próprio filho, Thomas Lasorda Jr.

Interessante olhar para a vida desses dois sujeitos que acompanharam o Dodgers por bastante tempo. Campanis, além de homofóbico, revelou-se racista em relação aos jogadores e técnicos negros com quem conviveu. Suas opiniões ficaram mais explícitas em uma entrevista concedida para um talk-show nos fim dos anos 1980, na qual ele afirmou que técnicos negros não avançaram em lugares de comando no beisebol por “suas limitações naturais”. Lasorda manteve-se homofóbico até a morte: seu filho homossexual faleceu em decorrência da AIDS, em 1991, e ele nunca reconheceu a causa mortis, preferindo considerar que o falecimento foi devido a um câncer generalizado no organismo.

Glenn Burke
Glenn Lawrence Burke (16 de Novembro de 1952 – 30 de Maio de 1995) foi o primeiro a se reconhecer como homossexual no Beisebol.

Burke teve um rendimento espetacular no beisebol. Nas quatro temporadas em que jogou, primeiro no Dodgers e depois no Oakland Athletics, em cerca de 225 jogos, ele rebateu 523 vezes, proporcionou 38 corridas impulsionadas (ou RIBs ou ribbies) e conquistou 35 bases.[2] As corridas impulsionadas são ocasionadas por rebatedores que acertam uma base e isso possibilita a um companheiro de equipe conquistar uma posição mais alta.

Burke também pode ser comparado com grandes nomes na história da modalidade, como Babe Ruth, um exímio arremessador canhoto, e Lou Gehrig, famoso jogador cuja vida foi abreviada pela doença degenerativa conhecida como E.L.A. (Esclerose Lateral Amiotrófica). Ambos jogadores tiveram trajetórias notórias e memoráveis nos New York Yankees, entre os anos 1920-1930. Sobre Gehrig já escrevi nesta coluna.[3]

Queda no rendimento, preconceito relativo à homossexualidade e uma lesão no joelho foram fatores que retiraram Burke do beisebol de modo precoce, quando ainda não tinha completado 30 anos de idade. Segundo contou numa entrevista no jornal The New York Times, “o preconceito expulsou-me do beisebol mais cedo do que devia” (Prejudice drove me out of baseball sooner than I should have).[4]

Do estrelato esportivo à vida gay noturna da rua Castro Street (em São Francisco), o atleta conheceu outra dimensão, na qual passou a habitar cada vez mais. Em pouco tempo estava bastante envolvido no mundo do alcoolismo e das drogas. O fim dos anos 1980 marcam um momento de ostracismo social e isolamento. Portador de HIV e com AIDS, ele passaria por um curto período de reabilitação e ressocialização em meados dos 1990, depois de encontrado abandonado em uma casa por Bobby Haskell, um terapeuta e defensor dos sem-teto, vinculado à clínica de assistência criada por Tom Waddell.

Apenas para lembrar, Waddell foi um decatleta nos Jogos Olímpicos de 1968, que se engajava naqueles anos em promover uma ideia inovadora: criar um campeonato multiesportivo em que houvesse tolerância e aceitação das orientações sexuais e de gênero de todas as pessoas, fossem elas homossexuais, bissexuais ou mesmo heterossexuais.[5] Foi dessa iniciativa que surgiram os famosos Gay Games, em cujas edições de 1982 e 1986 (ambas em São Francisco), Burke participou como no atletismo e no basquetebol como atleta.

Glenn Burke
Cartão de beisebol autografado Glenn Burke, 1978.

Ele acabou falecendo de complicações relativas à AIDS em maio de 1995, aos 42 anos. Mais de 20 anos depois começam a aparecer alguns reconhecimentos, como o anúncio de homenagem a Burke pela MLB na conferência All-Star Game, de 2014, ou ainda, na atitude do clube Oakland Athletics em honrar com o nome do atleta sua anual Pride Night. O livro citado ao final deste texto, recém-publicado por Andrew Maraniss e disponível online, pode ser tido igualmente como outra forma de lembrá-lo.

Embora isso tudo esteja longe de um reconhecimento pleno e de fazer justiça à homofobia generalizada nos espaços esportivos, já é um começo. E, em tempos de pactos homofóbicos de outras federações esportivas (alô, alô, CBF, FIFA, UEFA e afins), é bom pensar que o beisebol esteja mandando bem. Aliás, por falar em mandar bem, uma curiosidade: Burke foi o inventor do high five, um gesto mão-a-mão aberta que fez com Dusty Baker, num jogo de 1977, e que ficou eternizado desde então e é repetido por inúmeras pessoas.[6]

Este texto propôs-se a exaltar o chamado “Orgulho LGBT” na figura de um atleta que não se importou em se autodeclarar homossexual nas arenas esportivas. Desde então, nenhum outro no beisebol fez algo semelhante. Mesmo diante de intempéries, Burke manteve-se firme no propósito de mostrar que outras orientações sexuais podiam praticar esportes dentro da matriz heteronormativa. Frente aos atuais ataques homofóbicos na sociedade ou no esporte, conclamemos um high five para celebrar as existências de pessoas que encampam outras bandeiras que não as velhas conhecidas.

Seja diferente, orgulhe-se, coloque-se do jeito que quiser, mesmo no esporte, porque nele também estamos precisando de tais assertividades!

Ou, como diria Burke, “be out, be proud”!

 

*****

 

Para quem quiser saber mais:

Livro sobre a vida do atleta (disponível online):

MARANISS, Andrew. Singled out: the true story of Glenn Burke. New York: Philomel Books, 2021.

Documentário (no Vímeo):

OUT: the Glenn Burke Story


[1] Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queers, intersexos, assexuais ou a-gêneros, pansexuais, gênero neutro e demais.

[2] MARANISS, Andrew. Singled out: the true story of Glenn Burke. New York: Philomel Books, 2021.

[3] CAMARGO, Wagner Xavier. “Quando meu pai encontrou Lou Gehrig”. Ludopédio, São Paulo, v. 103, n. 7, 2018.

[4]Glenn Burke, 42, a Major League baseball player”. The New York Times, June, 02, 1995. p. 26. 

[5] CAMARGO, Wagner Xavier. “Tom Waddell e a diversidade sexual no esporte”. Ludopédio, São Paulo, v. 110, n. 20, 2018.

[6] JOHNSON, Ron. “In 1977, a gay baseball player invented the high-five”. LGBTQ Nation, June, 02, 2018. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Comemorando o Orgulho LGBT no esporte: quem foi Glenn Burke?. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 6, 2021.
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