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Conversando com ex-jogadores da Seleção: Emerson Leão

São Paulo, Museu do Futebol.

Depoimento de Emerson Leão.

Gravado no Museu do Futebol, a 07.10.2011.

Tempo de duração: 2h50min.

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Leão durante a entrevista. Foto: Museu do Futebol.

O depoimento do ex-atleta Emerson Leão envolveu uma certa expectativa por parte da equipe de entrevistadores do CPDOC e do Museu do Futebol. O fato de Leão ser uma figura pública ainda em atividade no universo futebolístico, e de ser um personagem mais familiar que os jogadores antes entrevistados, justificaram em parte esse anseio pela entrevista. Somado a isto, acrescente-se que o ex-goleiro, atualmente técnico[1] de grandes clubes profissionais, é conhecido no meio esportivo pela fama de um indivíduo irascível, dir-se-ia explosivo, capaz de se irritar com certa facilidade.

Desde sua carreira como jogador, existem relatos de episódios em que o mesmo esteve envolvido em discussões dentro e fora de campo, além de agressões verbais e até físicas com colegas de profissão, em partidas decisivas ou naquelas carregadas de tensão. Trata-se de uma imagem do jogador propalada oralmente e também difundida pelos meios de comunicação de massa.

Tal impressão acerca do temperamento de Leão teve continuidade em sua trajetória como treinador. Há registros de cenas de bate-bocas, no “calor do jogo”, com brigas que envolveram repórteres de campo, jornalistas, juízes e jogadores. Leão discutiu e chegou a ser alvo até mesmo da perseguição de torcedores do Santos, durante o período em que dirigia este clube, e por pouco não foi agredido coletivamente por integrantes de uma torcida organizada santista.

O depoimento foi planejado tendo por fundo essa impressão geral previamente formada a respeito do jogador. Se não se pode dizer que tal imagem mudou por completo ao final da entrevista, é possível observar que ela foi bastante modificada no decurso do relato. A firmeza de suas convicções fica clara e não deixa dúvidas quanto à sua personalidade forte e marcante. No entanto, antes do início da gravação, quando de sua chegada ao Museu, estabeleceu-se com ele um bate-papo informal que contradisse de imediato o estereótipo prévio sobre o mesmo.

Em um comentário casual – não se recorda bem como começou – Leão abordou seu interesse por obras de arte e sua amizade com a artista plástica Adriana Varejão. Comentou suas idas constantes à cidade de Inhotim, em Minas Gerais, onde se encontra o Instituto de Artes, centro de um destacado conjunto de peças artísticas, expostas ao ar livre em meio ao Jardim Botânico local, atualmente um espaço de atração turística do circuito cultural do estado de Minas.

Se as questões artístico-culturais não tiveram prosseguimento a partir do início da gravação, Leão continuou a surpreender os entrevistadores, com um discurso extremamente organizado e elaborado acerca de sua história de vida e de sua carreira futebolística. Embora muito daquilo que vem à tona, revela ele, estivesse esquecido nos escaninhos da memória[2], tudo o que é dito transmite acentuada clareza, mediante um discurso retilíneo, à primeira vista controlado e muito convincente.

Chamou a atenção, assim, logo de cara, a organização do seu discurso. Leão parece dotado de ampla autoconsciência, com a capacidade de “olhar-se de fora” e de tecer considerações reflexivas a respeito de sua família e do papel que ele viria a desempenhar no futebol como goleiro.

No início da sua autoapresentação, faz de imediato referência ao local da entrevista e presta homenagem ao estádio do Pacaembu, onde viveu muitas experiências, seja como torcedor, seja como jogador, seja como treinador. Rendendo tributo àquela praça desportiva, ele se mostra capaz de demarcar não apenas os “lugares de memória” do futebol, como o seu próprio espaço nele, através das marcas de suas lembranças pessoais. É desta forma que seu relato é construído no decorrer das quase três horas de fala.

Ao tratar do tópico “origens”, sempre acionado nas reconstituições de histórias de vida, Leão se situa como um filho e neto de imigrantes italianos, radicados no interior de São Paulo, mais precisamente em Ribeirão Preto, onde nasceu no ano de 1949. Dois destes dados, como vimos, são reincidentes em mais de um testemunho colhido até o momento: a procedência de jogadores – cidades do interior de São Paulo – e a questão da migração, caso que se repete tanto em Pepe quanto em Ado.

A família e a cidade natal são em algumas oportunidades referidas por Leão. Define-as como o seu “porto seguro”, sempre revisitado ao longo da vida. É tal esteio familiar que lhe deu o esteio para desenvolver-se no mundo do futebol. A estrutura da família nuclear é descrita como uma garantia para tornar-se um jogador de sucesso. Segundo ele, há uma diferença muito grande entre jogar bola – isto qualquer um pode fazer, observa – e ser um atleta profissional – tarefa de que poucos são capazes, pois não sabem conduzir nem administrar em termos psicológicos a carreira e a fama[3].

Com base em tais “origens”, foi possível a ele inserir-se rápida e seguramente no futebol. Leão afirma ter aprendido a assumir responsabilidades de maneira muito precoce. Tal precocidade, decorrente da sua profissionalização já aos catorze anos de idade, fê-lo amadurecer com rapidez. A exemplo de seus pais, a conduta responsável manifestou-se não apenas no plano profissional, mas também no âmbito pessoal, casando-se cedo e mantendo-se casado ao longo de décadas, até os dias atuais. Hoje, afirma com orgulho, é pai de três filhas.

Assim como o colega Ado, goleiro que viveu experiências similares na Copa de 1970, no México, Leão descreve-se como um produto da imigração em São Paulo, no caso dele proveniente da Itália. É o terceiro filho de uma família descrita como de classe média. O pai era um alfaiate, comerciante e depois empresário, antes de transferir-se para São José dos Campos, com vistas a incrementar seu comércio.

Já a mãe é descrita como uma linda mulher, de olhos azuis e cabelos louros. Perguntado acerca da visão dela acerca de sua opção profissional, afirma que ela apoiou o filho em todas as suas decisões. Apesar de os dois primeiros filhos terem seguido a carreira de Medicina, não houve resistência quando o caçula optou pela profissão de jogador de futebol.

No caso do pai, o convencimento para que fosse autorizado a jogar futebol – os contratos assinados por Leão necessitavam do assentimento paterno – passou pela própria identidade do emigrante que em São Paulo vai ser torcedor do Palestra Itália. Antigo palestrino, o pai reacende seu ardor pelo Palmeiras quando o filho caçula é convidado para jogar no clube da capital paulistana.

A sua entrada na Sociedade Esportiva Palmeiras é creditada, em seguida, à indicação de um amigo, ex-jogador palmeirense e que então atuava em Ribeirão Preto. Ao observar as qualidades do goleiro, indicou-o a ocupar a posição no Palmeiras.

Antes da chegada ao Palmeiras, assinala como marcante o período vivido até os catorze anos em Ribeirão Preto. A importância do futebol local é muito acentuada em relação às esferas esportivas regionais e nacionais. Ele conta que sabia algo sobre a Seleção Brasileira através do rádio, dos jornais ou mesmo das salas de cinema, de onde se lembra das imagens do Canal 100, cinejornais dirigidos por Carlos Niemayer. Afora isto, a importância dos times locais é bastante frisada. Para ele, era como se só existisse o Comercial e o Botafogo de Ribeirão Preto. Eram os dois clubes de maior expressão da cidade e Leão afirma ter frequentado muito os estádios para ver os dois times, ainda que torcesse para o segundo.

A socialização nos estádios de futebol passou pela ida aos jogos junto à “turminha” da rua. Andava quilômetros para assistir a uma partida. Descreve o hábito como muito prazeroso em sua recordação, pois cantavam e se divertiam. Torcedores rivais iam juntos, não havia problemas como as brigas de hoje em dia, embora não pudesse ir nos jogos noturnos, pois estes eram considerados “perigosos”.

A iniciação ao futebol passou pela “matriz escolar”. Foi na escola que começou a jogar bola. Mas o ingresso naquele universo ocorreu a partir de um convite fortuito, quando já morava em São José dos Campos, cidade para a qual se transferiu com 14 anos. O padeiro de sua rua, vizinho do estabelecimento comercial do pai, convidou-o a integrar o time amador num fim de semana em que jogariam em outro campo.

Aceita a proposta, Leão afirma que logo se destacou. Ainda no mesmo dia, conta que foi escalado a participar do jogo principal, passagem coincidente ao relato de Pepe, que também chamou a atenção em uma partida preliminar. Começava aí a firmar-se no futebol de várzea e, deste, com extrema rapidez, conforme o próprio define, galgaria posições de ponta no futebol profissional de São Paulo e do Brasil.

A escolha da posição de goleiro mostra-se reveladora do processo de individualização e da construção de sua personagem. No depoimento, Leão diz que ser goleiro, em suas observações da dinâmica do jogo, lhe parecia algo diferente. A posição tinha atributos que constituíam um traço diferencial dentro do futebol.

Enquanto todos jogam com os pés, o goleiro atua com as mãos; enquanto tudo no futebol move-se para o objetivo final do jogo, que é o gol, o goleiro existia para evitar, ou retardar ao máximo, que o êxtase coletivo acontecesse; enquanto os dez jogadores da linha usavam uma camisa igual, uniformizada e apenas diferenciada por um número, a camisa do goleiro era diferente dos demais. Assim, relembra Leão, ser goleiro parecia-lhe uma idéia sedutora, devido à condição singular e ao caráter especial daquela posição face às outras.

O fato de ter começado muito cedo é diversas vezes reiterado. Trata-se de um fator que proporcionou um amadurecimento rápido. A entrada e a afirmação no time do Palmeiras foram facilitadas por esse senso de responsabilidade demonstrado. Soube assim, segundo sua retórica discursiva, contornar as adversidades, adaptar-se à cidade grande e assistir a uma ascensão fulminante, sendo campeão do torneio Roberto Gomes Pedrosa, no mesmo ano em que ingressou no Palmeiras.

Se, de início, sua relação com o futebol aconteceu sem que pudesse de alguma forma controlar o que acontecia – sequer imaginava que viria a se tornar jogador –, a partir da sua profissionalização Leão destaca o cuidado com o planejamento e o autocontrole. Em resumo, estes dois foram as molas-mestras de sua atividade. Radicado na cidade de São Paulo, Leão acentua sua conduta ascética: treinar, jogar e estudar eram os verbos do seu vocabulário. A narrativa procura evidenciar seu foco na carreira profissional.

Ao falar dos primeiros jogos contra clubes grandes, como o Corinthians, que tinha torcidas numerosas, ou partidas em outros estados, ressalta a aprendizagem e capacidade de lidar com elemento de ordem psicológica. Muito centrado em seus objetivos, afirma que encontrou uma maneira de abstrair os fatores extra-campo. Diante dos grandes estádios – vide a fama do gigantesco Maracanã –, aprendeu a não se intimidar. Ou, ainda, no enfrentamento contra os craques já consagrados soube estabelecer formas de não perder frente aos ídolos contra os quais atuava.

Leão em coletiva quando era técnico do São Paulo. Foto: Vipcomm.
Leão em coletiva quando era técnico do São Paulo. Foto: Vipcomm.

Leão salienta que se concentrou no fato corrente de que as regras eram as mesmas e as medidas dos campos semelhantes. Logrou êxito, portanto, ao saber dosar o controle dos nervos que o futebol implicava. Feito isto, deixou de temer face aos adversários e passou a afirmar-se com cada vez mais autoconfiança.

A Seleção Brasileira foi para ele parte dessa escalada ascendente que o projetou muito rapidamente. Quanto à memória das Copas, diz que estas só apareceram para ele em 1966, quando tinha 17 anos e passou a ter noção do que acontecia nos estádios da Inglaterra. Na edição seguinte, já se via como um postulante direto à vaga do Brasil na Copa do México. Amigo de Ado, goleiro do Corinthians, cuja idade era muito próxima à dele, ambos disputavam a posição com Félix, o experiente goleiro do Fluminense, que acabou por ter a preferência de Zagalo.

Ao acentuar com freqüência a dimensão calculada de sua carreira, percebeu que após a Copa de 1970, a vaga de goleiro da Seleção estaria em aberto e que ele a disputaria com Ado. A diferença em relação ao amigo foi a de que justamente este não soube conduzir a carreira nos anos seguintes. Junto a isto, sublinhe-se que o Corinthians continuava a amargar com a ausência de títulos, enquanto o Palmeiras vivia a fase áurea da chamada Segunda “Academia”. Assim, de fato, nas Copas de 1974 e 1978, Leão viria a ter lugar de destaque no gol.

Ainda sobre a Copa de 1970, pontos polêmicos aparecem. A versão consagrada, e reiterada no depoimento de Ado, sobre a intervenção do regime militar na Seleção Brasileira, é objeto de ressalvas de Leão. Este considera um exagero despropositado os boatos em torno da versão conspiratória – difundida pela imprensa, simpatizante do técnico-jornalista João Saldanha – sobre o afastamento deste, seguido da chamada de Zagalo para o comando da Seleção. A idéia de que o presidente-ditador, Emílio Garrastazu Médici, havia interferido diretamente neste episódio, contrariado por não ver escalado o atacante de sua preferência, Dada Maravilha, é descartada por Leão. Este afirma ter chegado a dividir quarto com Dario e se mostra cético quanto a qualquer consciência crítica maior demonstrada pelo jogador naquele episódio.

Afora isso, a Copa de 1970 é bastante enaltecida por Leão em termos organizativos. Se tal quesito foi a tônica dos discursos acerca das Copas anteriores, Leão exalta os nomes que compuseram a comissão técnica, sobre a qual destaca um nome: Cláudio Coutinho. A figura do capitão Coutinho é exaltada no que diz respeito à sua postura como treinador, às suas idéias avançadas e ainda às características de sua personalidade, como a elegância e a inteligência. Leão aponta também para a erudição de Coutinho, que dominava diversos idiomas e respondia aos jornalistas em inglês, francês e outras línguas.

Deve-se ressaltar, em contraponto, que tal simpatia também pode derivar do fato de Coutinho ter sido o técnico da Seleção em 1978 que convocou Leão para titular naquele torneio. Um ponto delicado no depoimento de Leão a proporção do elogio dirigido à comissão técnica da Seleção de 1970. Tal percepção parece ser estendida a uma visão positiva e generalizada da ditadura como um todo. Ela deriva em parte da disciplina e do ethos militar imperante no momento. A postura elogiosa é referendada ao comentar o papel dos governos militares no desenvolvimento do futebol e no alargamento de sua escala m âmbito nacional no Brasil.

Tal fato diz respeito não só à construção dos estádios como à nacionalização do Campeonato Brasileiro, ocorrida a partir de 1971. O ex-goleiro considera que, graças a essa ação do governo ditatorial, os jogadores puderam ir ao encontro do povo, no sentido de que tinham de viajar a diversos estados, incluindo os mais distantes. Lembra-se de que pode conhecer a Amazônia nessa ocasião e recorda-se o quanto os ídolos da seleção brasileira eram reverenciados nos lugares mais longínquos.

Os anos 1970 coincidem com a fase áurea do Palmeiras e da carreira de Leão no selecionado nacional. Assim, sua vinculação ao clube alviverde perdurou por muito tempo, sendo uma marca clubística fortemente associada à sua trajetória.

O decênio seguinte assinalou, no entanto, mudanças neste quadro. A partir da Copa de 1982, passou a ser preterido da Seleção, o que lhe valeu um desentendimento com o treinador Telê Santana, que preferiu convocar o goleiro do São Paulo, Valdir Peres.

Em termos de identificação com o clube do estádio Parque Antártica, o quadro também se alterou. Desgastes com a diretoria do Palmeiras, aliados a uma fase menos vitoriosa, levaram à sua saída do clube. Iniciou uma fase mais dispersa, com uma maior rotatividade em clubes de diferentes cidades. Jogou no Vasco, no Grêmio e no Sport Clube do Recife, entre outros times, e ainda conseguiu neles conquistar títulos estaduais, antes de encerrar a carreira de goleiro.

Sua liderança à frente dos times, seus discursos bem articulados e sua personalidade chamativa levaram-no a buscar um elo de ligação com o mundo do futebol, através da carreira de técnico durante a década de 1990, à qual se vincula até hoje, como treinador do São Paulo Futebol Clube.

[1] Quando da realização da entrevista, o treinador encontrava-se sem clube. No momento de redação deste texto, Leão ocupava o cargo de técnico do São Paulo Futebol Clube.

[2] Para uma discussão sobre os modos de rememoração, ver a obra do geógrafo estadunidense, David Lowenthal, “The past is a foreign country”.

[3] Embora pensado em outro contexto, o trabalho de Maria Cláudia Coelho, “A experiência da fama”, afigura-se bastante útil quando aplicado ao mundo do futebol.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Como citar

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Conversando com ex-jogadores da Seleção: Emerson Leão. Ludopédio, São Paulo, v. 91, n. 2, 2017.
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