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Corações na ponta da chuteira – capítulos iniciais da história do futebol brasileiro (1919-1938)

Victor de Leonardo Figols 6 de fevereiro de 2014

O historiador Fábio Franzini olha para o futebol brasileiro da atualidade, e algumas questões são recorrentes quando se fala em um ideal de futebol nacional. Termos como “melhor do mundo” e “futebol-arte”, aparecem constantemente, além do epíteto de que aqui é “país do futebol”. Por trás de tais termos se esconde um discurso nacional, que segundo o autor, é nesse discurso que o país “se faz reconhecer perante o mundo e a si mesmo”. É a partir dessas inquietações que o autor volta ao início do futebol no Brasil, procurando entender em qual momento o futebol foi usado como um elemento de integração nacional.

O autor começa a narrar os primeiros anos do futebol em solo brasileiro, destacando as tensões sociais presentes no esporte. Para Franzini, os primeiro anos do esporte bretão no Brasil foram marcados por disputas sociais, econômicas e políticas. Tensões como: elite e povo, profissional e amador, brancos e negros, nacional e regional foram facilmente sentidas dentro das quatro linhas. Muitas dessas tensões foram constantemente reforçadas a partir das falsas ideias de que o futebol era da elite, de que existia uma democracia racial e de que havia uma unidade nacional.

Por exemplo, o discurso de que existia uma ideia de nação, por meio do futebol, surgiu em 1919. Nesse ano, o Brasil enfrentou o Uruguai na final do III Campeonato Sul-Americano de Football. No estádio do Fluminense Football Clube – no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro – o Brasil venceu a seleção do Uruguai por 1-0 e a arquibancada lotada invadiu o campo de jogo para comemorar o primeiro título da Seleção Brasileira.

Utilizando-se de jornais e cronistas da época, o autor demonstra que o futebol estava ganhando apelo popular a partir do discurso patriótico. O título Sul-Americano legitimava uma ideia de que existia um futebol nativo, baseado na individualidade. Além disso, o futebol também foi usado como elemento de distinção e superioridade em ralação aos outros sul-americanos, no caso, uruguaios e argentinos.

Ilustração: Felipe de Leonardo – felipedeleonardo.com.


O futebol passou a ser referencial para a identidade nacional. A ideia de que existia um futebol nacional começava ganhar forma. Entretanto, devido ao contexto político, ainda não se podia falar em Nação, uma vez que a Seleção Brasileira era composta majoritariamente por jogadores brancos, de clubes do eixo Rio-São Paulo. Aliás, o único mulato que fazia parte daquele grupo era Arthur Friedenreich.

As disputas políticas entre Rio de Janeiro e São Paulo eram facilmente notadas na formação da Seleção Brasileira daquele período. E o fato de ser regionalizada, passava a imagem de que a Seleção Brasileira era muito mais carioca do que nacional. Aliás, foi só a partir do governo de Getúlio Vargas (1930-1945) que o futebol passou a ser determinante na construção da identidade nacional.

Ao passo que o futebol era exaltado, havia aqueles que não o enxergavam assim. Uma das vozes mais fortes era a de Lima Barreto, o jornalista e escritor via o futebol como elemento de desintegração social e cultural. Para ele e tantos outros, o esporte bretão não passava de um modismo estrangeiro que era contrária à ideia de brasilidade.

O discurso de Lima Barreto, e de tantos outros, foi usado contra a popularização do futebol. Os novos personagens sociais que começaram a praticar e acompanha o esporte passaram a ser mal visto por aqueles que defendiam um futebol elitizado e branco.

Além da questão racial, o futebol brasileiro das primeiras décadas do século XX também viu a disputa entre o amadorismo e a profissionalização, na qual alegavam que o esporte amador era aquele que estava em estado puro, sem ter sido corrompido pelo dinheiro. Apesar de essa transição ter sido traumática para muitos clubes, é possível dizer que não foi abrupta, pelo contrário, foi um processo lento e gradual, no qual ficou conhecido como “amadorismo marrom”. Nos anos 1930, o amadorismo ocorria de forma oficiosa, ou seja, os jogadores eram pagos de maneira informal para se dedicaram exclusivamente ao futebol.

Nesse embate entre futebol amador e futebol profissional, a questão racial era recorrente, assim como a ideia de futebol nacional. Como aponta Franzini, a equipe ideal para representar o Brasil deveria ser composta por jogadores brancos, uma vez que os negros e os mulatos seriam motivo de piada para as outras seleções. Como já foi mencionado, Friedenreich era uma das poucas exceções. Fruto de uma união entre uma negra e um alemão, o jogador mulato tinha olhos claros e cabelo liso, fatores que o embranquecia, aos olhos da elite.

Foi só depois dos anos 1930 que essas questões pareciam ter sido superadas, mas na verdade foram mascaradas pelo discurso nacionalista incentivado por Vargas e endossado pela Confederação Brasileira de Desportos (CBD). Como aponta o autor, na Copa do Mundo de 1934, a Seleção Brasileira assumiu o papel da embaixada brasileira. O nacionalismo de Estado possuía forte apelo popular, assim como o futebol.

Na década de 1930, é possível verificar uma abertura – ainda que pequena – dos negros no futebol brasileiro. Também podemos perceber que o profissionalismo já havia se estabelecido, assim como a ideia de um futebol nacional. Aos poucos a efígie de “país do futebol” começava a ganhar forma.

Já no ano de 1938, o futebol já havia alcançado o seu reconhecimento de esporte nacional, ainda que a imagem romântica de que aqui se pratica um “futebol-arte” estivesse em gestação, e só viria a se consolidar depois da Copa de 1958. Esse reconhecimento pode ser atribuído à boa campanha da Seleção Brasileira na Copa daquele ano. Somado a isso, também é preciso considerar o nacionalismo constantemente evocado pelo governo de Vargas, não ignorava o futebol, pois era visto como forte elemento na construção da identidade nacional.

Por fim, em seu livro, o autor analisa os primeiros anos do futebol brasileiro e demonstra que há uma relação intrínseca entre a história do Brasil e a história do futebol brasileiro. Como o próprio autor me disse, Corações na ponta da chuteira é um livro que tem um pouco de história, um pouco de futebol e um pouco de história do futebol.

Esse texto foi originalmente publicado no blog O Campo e cedido para publicação nesse espaço.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. Corações na ponta da chuteira – capítulos iniciais da história do futebol brasileiro (1919-1938). Ludopédio, São Paulo, v. 56, n. 2, 2014.
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