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Corinthians e Palmeiras antes do nada

Em algum momento, este título pode parecer equivocado. Afinal, todos sabemos que “antes do nada”, mais especificamente aos 40 minutos, teria começado a rivalidade entre Fla e Flu. Mas me deixei influenciar pelo genial Nelson Rodrigues ao contar a história de um outro confronto, este muito mais breve, e que deixaria marcas importantes no futebol brasileiro.

Podemos dizer que o clássico paulista de maior rivalidade teria surgido em um “tempo imemorial” também, antes mesmo que os próprios Corinthians e Palmeiras existissem. Sim, pode parecer delírio, mas a verdade é que isso aconteceu por mais de uma oportunidade…

Nas primeiras décadas do século XX, o futebol em São Paulo já era um dos esportes mais populares. Contudo, a qualidade dos que o praticavam ainda estava aquém de outros países mais desenvolvidos na modalidade. Principalmente a Inglaterra, berço do Association, que padronizou as regras e deu um ar moderno ao “violento jogo bretão”, como alguns jornais o chamavam.

Já a partir de 1906, as partidas envolvendo times ou selecionados internacionais despertavam o interesse do público tão ou mais que os jogos do campeonato estadual. Era a chance de aprender e se deliciar com a arte dos “foot-ballers” de outras nações. Assim, em 1910, o Corinthian Team, de Londres – considerada a melhor equipe amadora do mundo –, aceitou o convite do Fluminense Foot-ball Club para três partidas no Rio: uma contra o próprio Fluminense, outra diante do selecionado misto carioca e a última um confronto contra um “scratch” de brasileiros que jogavam na capital.

A equipe do Corinthian Football Club que excursionou no Brasil em 1910 e que inspirou a criação do Sport Club Corinthians Paulista. Foto: Wikipedia.

O tradicional clube carioca e a Liga Paulista custaram, mas se acertaram para que os ingleses fossem para São Paulo também[1]. Por lá, mais três jogos, dois contra combinados (um paulista e outro de estrangeiros), além do primeiro, contra um clube, o Palmeiras.

Na verdade, os “corinthians inglezes” enfrentariam a Associação Athlética das Palmeiras, uma equipe fundada em 1902, sem ligação com a Sociedade Esportiva Palmeiras dos dias atuais.

O Corinthians era uma equipe de amadores formada por estudantes das universidades de Oxford e Cambridge. Sempre que se referiam a eles, os jornais destacavam que faziam parte dos quadros de “blues”, os jogadores que conseguiam atingir o nível mais alto de uma instituição para disputar partidas internacionais e recebiam uma jaqueta azul para os identificar. A série de jogos teve grande repercussão na imprensa, desde um momento em que a própria vinda dos atletas ainda não estava concretizada.

“Em princípios de setembro próximo futuro, deverá chegar ao Rio, o primeiro team do Corinthians, collocado no anno passado, em um dos primeiros logares, no campeonato da Liga Ingleza de Amadores. Os jogadores deste team pertencem às mais distinctas famílias de Londres e são antigos alumnos que jogaram nos campeonatos pelas Universidades de Oxford e Cambridge” (Correio Paulistano, 27 de junho de 1910, p. 4).

Junto com o telegrama de confirmação do embarque da equipe em Southampton, no dia 6 de agosto daquele ano, começaram os prognósticos sobre os confrontos. Ainda ali, a imprensa tinha a noção de que, no país, estavam numa fase de aprendizado do esporte:

“Não se pode, portanto, pensar em victoria: o que parece até uma infantilidade, mas pode-se, não há dúvida, aprender alguma coisa, porque é facto que, depois que os argentinos vieram disputar, aqui e em S. Paulo, matchs de foot-ball, o tal jogo pessoal, que era mais ou menos admittido por todos os clubs de foot-ball, à excepção do campeão, desappareceu, dando logar a uma melhor pratica, que tende, cada vez mais, a aperfeiçoar-se” (Correio da Manhã, 12 de agosto de 1910, p. 5).

Os argentinos massacraram as equipes nacionais em 1908. Muito do estilo apresentado por eles, ficaram de ensinamento aos brasileiros. Após a vinda dos platinos, os amadores ingleses eram os próximos desafiantes de fora. A expectativa era tremenda. E, desde o momento em que pisou em terras brasileiras, o time de Londres não tomou conhecimento dos primeiros adversários no Rio: 10×1 no Fluminense F.C., 8×1 no Combinado Misto da Liga Metropolitana do Rio, 5×2 no Combinado de Brasileiros. Assim, para as três partidas em São Paulo eram esperadas novas derrotas acachapantes.

Os preparativos para o duelo do dia 31 de agosto de 1910 estavam a todo vapor. O Velódromo preparado para receber um “Corinthians versus Palmeiras”:

“Foi um verdadeiro acontecimento sportivo, diremos melhor social, o primeiro match de foot-ball realizado hontem, sob os auspícios da Liga Paulista de Foot-Ball, pelo invencível team dos Corinthians, que ora nos honra com a sua visita. Acontecimento social, na verdade, porque apesar de ser hontem um dia útil, a concorrência, além de ser excepcionalmente extraordinária, era o que há de “very selected”, notando-se nas archibancadas as mais legitimas representantes de tudo quanto S. Paulo conta de bello na sociedade elegante, trajando as últimas creações da moda, tornando-se umas e outras o encanto dos nossos olhares” (Correio Paulistano, 1 de setembro de 1910, p. 5).

A elite paulistana e os esportistas da capital foram em peso admirar o jogo dos visitantes. Porém, as cerca de 6 mil pessoas (O Paiz, 1 de setembro de 1910, p. 5) assistiram a uma resistência palmeirense ainda não vista em duelos contra os londrinos.

Manchete sobre o jogo em S. Paulo. Foto: Correio Paulistano, 1 set. 1910, p. 5.

A equipe do Corinthians Team entrou escalada com Rodgers no gol; Timmis e Page na defesa; no meio, Tuff, Morgan-Owen e Braddel; na frente: Vidal, Day, Snell, Brisley e Kerry. Já os donos da casa estavam com Orlando como goleiro; José Rubião e Urbano na zaga; meio-campo com Gullo, Rubens e O. Egydio; no ataque, Dedé, M. Egydio, Irineu, Eurico e Godinho.

O jogo começou equilibrado, concentrado no meio de campo. Numa das investidas dos ingleses, José Rubião cedeu escanteio bobo, mostrando que estava um pouco mais nervoso que o habitual. Aos cinco minutos, Day se aproximou da área e chutou para fazer o primeiro corinthiano. Após o gol, o time de Londres passou a mostrar a sua técnica com troca de passes de cabeça, irritando os brasileiros. A torcida reclamava bastante da força utilizada pelos visitantes em disputas de bola. O Palmeiras equilibrou o jogo, chegando com perigo em lances de Godinho. Mas um vacilo decretaria o resultado do jogo ainda no primeiro tempo:

“É Day quem nesse momento está com a bola. José Rubião tenta ainda um esforço supremo para tirá-la de seu poder, mas nada consegue, pois a bola é arremessada contra o nosso goal. Orlando rebate o shoot, porém em tão excepcionaes circumstancias que é obrigado a tirar a bola perto da sua posição, junto de Day, que, nervosamente shoota fazendo então o segundo e último goal para a sua équipe” (Correio Paulistano, 1 de setembro de 1910, p. 5).

No segundo tempo, “o ataque dos ‘Corinthians’ foi titânico, bello, mas a defesa do Palmeiras foi estupenda, e a prova é que não foi transposta durante os quarenta minutos da segunda phase do match” (Correio Paulistano, 1 de setembro de 1910, p. 5). Ao final do jogo, “os jogadores foram calorosamente applaudidos. Os sportsmen, carregaram em triumpho Rubens Salles, center-half, do Palmeiras, pelas suas belas defesas contra o jogo dos Corinthians. Os jogadores inglezes também foram applaudidissimos ao terminar” (O Paiz, 1 de setembro de 1910, p. 5).

O Corinthians de Londres que encantou o Brasil em 1910. Foto: Correio Paulistano, 1 set. 1910, p. 5.

Uma exibição que orgulhou os paulistanos naquela tarde, afinal foi o placar mais apertado que “os campeões do mundo” – como eram chamados os ingleses – tiveram na turnê pelo país (os jogos seguintes terminariam 5×0 sobre o Combinado da Liga Paulista e 8×2 sobre o Combinado de Estrangeiros que atuavam em times locais).

O jogo corinthiano impressionou a imprensa da época:

“Era um grupo de verdadeiros athletas, a peito largo, músculos rijos e desenvolvidos, demonstrando possuírem grande agilidade, a par de uma calma absoluta, como depois plenamente o justificaram em todo o decorrer do match. […] O jogo dos distinctos amadores inglezes é, francamente, indescriptivel, extraordinário, immenso. Pode-se dizer, sem receio de contestação, que elles são verdadeiros artistas do difícil sport bretão. (Correio Paulistano, 1 de setembro de 1910, p. 5)

O “bravo” Palmeiras que perdeu apenas de 2×0. Foto: Correio Paulistano, 1 set. 1910, p. 5.

Nunca uma equipe teria encantado tanto em gramados brasileiros. “Realmente, o jogo esteve para delirar, dizendo os ‘foot-ballers’ paulistas que jamais, na Paulicéa, se jogou por tal modo o ‘foot-ball’” (O Paiz, 2 de setembro de 1910, p. 11). Tamanha a admiração que, um clube de futebol fundado no dia seguinte à partida disputada em 31 de agosto de 1910, fora homenageado com o nome dos ingleses: surgia ali um dos mais populares e vitoriosos times do país, o Sport Club Corinthians Paulista.

Três anos depois, os Corinthians de Londres voltaram ao Brasil. Outra série de jogos e, mais uma vez, entre os adversários a A. A. Palmeiras. Por uma coincidência ou não, nos mesmos dia e mês do primeiro encontro.

Em 31 de agosto de 1913, novamente o Palmeiras endureceu o jogo. A imprensa considerava o time inglês cansado, já que era a terceira partida em São Paulo, mas a verdade é que, em campo, os paulistas equilibraram as forças e conseguiram buscar o empate.

Os times estavam modificados em relação ao confronto anterior. Na equipe do Corinthians, o goleiro agora era Turner; Snell e Burry formavam a defesa; no meio, Vidal estava recuado, junto a Woosman e Gow; na frente: Staley, Hoffmeister, Naples, Foschi acompanhavam o veterano Day. O Palmeiras foi a campo com Agostinho no gol; José Rubião e Atsbury na zaga; o meio-campo com Gullo, Octávio e Morelli; Rubens estava mais a frente, ao lado de Gilberto, Fritz, Loureiro e Moacyr.

O time local começou melhor no primeiro tempo, mas logo o Corinthians equilibrou a partida.  Aos 34 minutos, Hoffmeister aproveitou um cruzamento ao centro para chutar e abrir o placar. O desânimo tomou conta dos brasileiros que nada mais fizeram até o intervalo. No segundo tempo, os ingleses pareciam exaustos. Rubens aproveitou para deixar tudo igual no placar aos 21 minutos. Ao final, um surpreendente empate em 1×1 (Correio Paulistano, 1 de setembro de 1913, p. 2).

O Palmeiras, que utilizava um uniforme de camisas brancas com faixa preta, ainda seria campeão estadual de 1915. Em 1916, o clube ajudou o recém fundado Palestra Itália a adquirir o direito de disputar o Campeonato Paulista pela primeira vez. Esse fato teria influenciado na escolha do novo nome do time, já que o Palestra fora obrigado a mudar por causa da Segunda Guerra Mundial, já que fazia uma referência a uma nação inimiga no combate, a Itália. Assim, em 1942, a Sociedade Esportiva Palmeiras – essa sim a que conhecemos nos dias de hoje – homenageia a equipe anterior, extinta em 1929.

Já o Corinthians inglês tentaria uma terceira vinda ao Brasil em agosto de 1914. O time chegou a desembarcar no Rio, mas precisou voltar às pressas para a Inglaterra por um motivo inusitado:

Os Corinthians na guerra – Por telegramma que a directoria do Fluminense Foot-Ball Club recebeu, sabe-se que os jogadores Corinthians, que vinham pelo ‘Amazon’, disputar ‘matches’ de ‘foot-ball’ na nossa cidade e em Buenos Aires, já desembarcaram em um porto de escala, e seguiram para a Inglaterra, afim de combaterem contra a Allemanha” (A Noite, 11 de agosto de 1914, p. 2, Ultima Hora)

Os encantadores atletas que levaram a arte do seu futebol pelos campos de Rio e São Paulo trocaram os uniformes esportivos pelas fardas, a bola por armas. Da guerra imaginária entre as nações dentro de um campo esportivo, foram para a linha de frente de batalhas na Primeira Grande Guerra Mundial. Ao final, “só um dos 14 jogadores, no entanto, viajaria novamente como membro do Corinthian. No total, foram perdidos na guerra 22 corinthianos, cujos nomes estão gravados em um mural na sede do clube”[2]. Atletas como Brisley, Vidal e Rodgers estavam entre as vítimas.

Assim, a história dos Corinthians ingleses é densa, de paixão e drama humano, bela e trágica. Bem como as que Nelson contava…


Notas

[1] A Liga Paulista teria que arcar com a ida e a volta da equipe inglesa a São Paulo. Durante a negociação, jornais como o Correio da Manhã criticaram a entidade: “Não sabemos bem por que razão a Liga Paulista obstina-se a manter essa espécie de chauvinismo com os cariocas; ao menos, é o que se deduz da demora em organizar, de accordo com os cariocas, a ida ao Estado de S. Paulo dos Corinthians” (Correio da Manhã, 12 de agosto de 1910, p. 5). Mas, no fim, as entidades se acertaram: “A Liga Paulista conseguiu remover todas as difficuldades que se oppunham à ida dos Corinthians à importante capital do prospero Estado” (Jornal do Commercio, 11 de agosto de 1910, p. 3).

[2] Disponível em: https://www.gazetaesportiva.com/times/corinthians/corinthian-curte-brasil-cem-anos-apos-visita-frustrada-pela-guerra/ Acesso em: 01 nov. 2019.

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Chico Brinati

Professor de Jornalismo Esportivo do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Pós-doutor em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Como jornalista, atuou como produtor e editor na TV Integração, afiliada Rede Globo em Juiz de Fora-MG. Foi repórter de campo e plantonista da Rádio Panorama FM. Escreveu a coluna "Caneladas & Canetadas" no jornal "JF Hoje". Autor do livro "Maracanazo e Mineiratzen: Imprensa e Representação da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1950 e 2014".

Como citar

BRINATI, Chico. Corinthians e Palmeiras antes do nada. Ludopédio, São Paulo, v. 125, n. 13, 2019.
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