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Breve cronologia de atletas negros “inseridos” em clubes de futebol no Brasil no primeiro quarto do século XX

Wesley Barbosa Machado 12 de junho de 2020

O clássico livro “O negro no futebol brasileiro”, de Mario Filho, lançado em 1947, suscita até a contemporaneidade vários debates acadêmicos, com a publicação de artigos científicos acerca do mito da democracia racial no futebol, entre outros temas controversos, onde se destaca a famosa polêmica entre Soares e Helal e Gordon Jr. O livro de Mario Filho tem um capítulo denominado “A ascensão social do negro”, que foi abordada por Gilberto Freyre no prefácio de “O negro no futebol brasileiro”, que não por coincidência tem o título do livro:

“Sublimando tanto do que é mais primitivo, mais jovem, mais elementar, em nossa cultura, era natural que o futebol, no Brasil, ao engrandecer-se em instituição nacional, engrandecesse também o negro, o descendente de negro, o mulato, o cafuzo, o mestiço. E entre os meios mais recentes – isto é, dos últimos vinte ou trinta anos – de ascensão social do negro ou do mulato ou do cafuzo no Brasil, nenhum, excede, em importância, ao futebol.” (FREYRE, 1947, p. 25).

Em “Negro, macumba e futebol” livro da coleção Debates (Antropologia) da editora Perspectiva que republicou a versão em Português do ensaio “O futebol no Brasil”, de autoria do crítico alemão radicado no Brasil, Anatol Rosenfeld, publicado em 1974 no livro-revista Argumento, uma das primeiras publicações acadêmicas sobre futebol no Brasil, o autor do texto publicado originalmente em 1956 no Anuário do Instituto Hans Standen (Standen-Jahrbuch) com o título “Das Fussballspiel in Brasilien”, afirmou que: “Apesar da relativa dificuldade da ascensão das pessoas de cor, isso vem ocorrendo e, dessa forma, trata-se de uma ascensão dentro de uma sociedade que não conhece a separação de castas”. (ROSENFELD, 2013, p. 46)

Camisas Negra,s o time do Vasco campeão carioca em 1923. Foto: Centro de Memória do Vasco.

Para Florestan Fernandes em “A integração do negro na sociedade de classes”:

“A ascensão do atleta profissional, sua mobilidade social, é altamente verticalizada (aceitando-se a hipótese de sua origem social “baixa”), muito rápida se comparada a qualquer outra profissão, prescinde de nível de instrução elevado e se dá em um ambiente reconhecido pela maioria como lúdico, festivo e sadio: o esporte. Tudo isso faz com que a identificação da plateia e, especialmente, dos setores sociais desta plateia que fornecem a maioria dos jogadores – com a história individual dos atletas seja extremamente fácil de ser atingida, corroborando os mitos que a cercam. (FERNANDES, 1978, p. 160)

Sabemos, portanto, que podemos considerar a ascensão social do atleta de futebol negro como um mito, assim como o é considerado o da democracia racial no futebol. No entanto, aqui vamos fazer uma breve cronologia de atletas e dirigentes negros inseridos em clubes de futebol no Brasil nas primeiras quatro décadas do século XX, destacando estas iniciativas, o que não significa que tenham resultado em mudança do estado de coisas.

João Saldanha, em “Os subterrâneos do futebol”, nos dá um panorama do cenário brasileiro na época:

“Alguns times resistiam. No Rio de Janeiro, Fluminense, Botafogo e Flamengo não admitiam de forma alguma que negro vestisse sua camisa. O Vasco, representando o espírito do comércio de secos e molhados, comércio em contato permanente com o público em geral, já desde 1923, surgira como grande potência e não fazia restrição de espécie alguma. Fazê-las seria a própria ruína do comércio que lida com o povo. Bangu, Andaraí (Fábrica Bangu e Fábrica Confiança) tampouco faziam. O Sírio-Libanês, também de comerciantes em contato com o público, e os clubes suburbanos não faziam restrição alguma.

Em São Paulo, o Palmeiras resistia. O Paulistano, clube do Jardim Paulista, preferiu fechar sua seção de futebol a ter de aceitar preto em seu time. O Rio Grande do Sul, o Grêmio Porto-Alegrense também era intransigente. O Paraná, o Atlético e o Coritiba não aceitavam os negros. Em Minas, Atlético e América; na Bahia, o Baiano de Tênis, que procedeu como o Paulistano; no Ceará, o Manguari; no Pará, o Remo, e assim por diante: em cada Estado da Federação havia clubes aristocráticos que não deixavam os pretos jogarem.” (SALDANHA, 1980, p. 117).

Miguel do Carmo e Ponte Preta foram homenageados e viraram selo dos Correios em 2017. Foto: Reprodução/Ponte Preta.

Nosso panorama, com alguns lapsos temporais, começa exatamente em 1900, quando foi fundada em Campinas, São Paulo, a Ponte Preta, incluindo entre os fundadores o ferroviário negro, Miguel do Carmo, que se tornaria atleta do clube, que é o primeiro a ter departamento de futebol no Brasil e, portanto, Miguel do Carmo pode ser considerado o primeiro atleta de futebol negro do país. Em 1904, o mestiço Basílio Viana foi um dos fundadores do Botafogo no Rio de Janeiro e foi ele que desenhou o primeiro escudo do clube. Em 1905, o Bangu, do Rio de Janeiro, começou a colocar jogadores negros para jogar em seus times, primeiro Francisco Carregal e, depois, o goleiro Manoel Maia. Em 1906, o Botafogo tinha em seu plantel um atleta negro, Paulino de Sousa, que teve de sair do clube em 1907 com a proibição da inscrição de atletas negros pela Liga Metropolitana de Football, o que gerou uma revolta do Bangu, que saiu do Campeonato Carioca. Ainda em 1907, foi fundado por negros no Rio Grande do Sul o Riograndense.

Em 1910, o Fluminense, do Rio de Janeiro, colocou o atleta negro Alfredo Guimarães para jogar. Em 1911, o Bangu foi campeão da 2ª divisão do Carioca com alguns poucos jogadores negros na equipe. Em 1912, foi fundado por negros em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, o Campos. Ainda em 1912, o Grêmio, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, teve seu primeiro atleta negro, Antunes. Em 1914, o Corinthians, de São Paulo, foi impedido pela Liga Paulista de inscrever o atleta negro Davi. Em 1915, o Andaray, do Rio de Janeiro, com negros no time, venceu o elitista Rio Cricket, do Rio de Janeiro, no jogo que decidiu o rebaixado para a 2ª divisão do Carioca de 1916, o que causou a desistência do Rio Cricket em disputar o certame de nível inferior no ano seguinte. Em 1918, 30 anos após a Lei Áurea, o Campos foi campeão citadino de Campos dos Goytacazes-RJ com um time formado por 10 atletas negros e apenas um atleta branco, tornando o primeiro clube que se tem notícia no Brasil a ser campeão com um time de negros. Ainda em 1918, em Curitiba, Paraná, foram registrados os primeiros atletas de futebol negros no clube Britânia. Em 1919, a Seleção Brasileira foi campeã do Sul-Americano no Brasil com o gol do título marcado pelo atleta mestiço Friedenreich; e o Euterpe, um time formado só por negros, foi fundado em Manaus, Amazonas. Ainda em 1919, o atleta negro Bingo disputou oito partidas pelo Corinthians.

Campos campeão citadino de Campos dos Goytacazes-RJ, em 1918. Foto: Reprodução/Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Em 1920, atletas brasileiros foram chamados de “macaquitos” pela imprensa argentina. Em 1921, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), por determinação do presidente da República, Epitácio Pessoa, proibiu a convocação de atletas negros para a seleção de futebol que disputaria o Sul-Americano na Argentina naquele ano. Em 1922, o São Geraldo, clube fundado por negros em São Paulo, foi campeão do Centenário da Independência. Ainda em 1922, o Vasco foi campeão da 2ª divisão do Carioca com atletas negros. Em 1923, o Vasco foi campeão da 1ª divisão do Carioca com um time formado por alguns atletas negros. Ainda em 1923, foi fundado com a presença de negros em São Luís do Maranhão o Sampaio Corrêa. Em 1924, foi criada a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), que pede ao Vasco para excluir atletas negros, quando o Vasco criou a “Resposta Histórica”. Em 1926, o São Cristóvão do Rio de Janeiro, com atletas negros, conquistou o título de campeão do Carioca da 1ª Divisão.

Domingos da Guia e Fausto pelo Flamengo, entre 1936 e 1938. Foto: Wikipedia.

Em 1933, início oficial do profissionalismo no futebol do Rio de Janeiro, chegou a vez do Bangu, um dos pioneiros na inserção do negro no futebol, sagrar-se campeão da 1ª Divisão do Carioca, com um time formado em sua quase totalidade por negros. Em 1938, na Copa do Mundo realizada na França, dois negros se destacaram na Seleção Brasileira. Foram eles o Domingos da Guia e Leônidas da Silva, este último que foi o artilheiro do Brasil no mundial. Ainda em 1938, o Flamengo, do Rio de Janeiro, contratou os principais atletas de futebol negros do Brasil, o “Divino Mestre” Domingos da Guia, o “Diamante Negro” Leônidas da Silva, além de Fausto “Maravilha Negra”.

O êxito de alguns atletas de futebol negros e clubes de futebol com atletas negros nas primeiras quatro décadas do século XX não ocorreu de forma maciça. Os episódios aqui destacados são singulares e não devem esconder os vários casos de racismo que puderam ser observados em estádios e clubes de futebol de todo o planeta bola ao longo de décadas. Racismo este, apontado pelo escritor W. E. B. Du Bois no livro “As almas da gente negra”, de 1903, como “o problema do século XX” e que ainda persiste nas sociedades brasileira e mundial do século XXI.

Referências bibliográficas

DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas da gente negra. Tradução Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999 [1. ed.: 1903].

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: no limiar de uma nova era. 1. ed. São Paulo: Ática, 1965.

FREYRE, Gilberto. O negro no futebol brasileiro. In: FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2010 [1. ed.: 1947].

ROSENFELD, Anatol. Negro, macumba e futebol. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993 [3. reimpressão (2013)].

SALDANHA, João. Os subterrâneos do futebol. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.

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Wesley Barbosa Machado

Nascido no dia 23 de junho de 1981 em Campos dos Goytacazes-RJJornalista, Escritor e Compositor.Torcedor do Botafogo do Rio de Janeiro, do Roxinho de Campos dos Goytacazes-RJ e do Arsenal da Inglaterra.Co-Autor do Livro de Crônicas do Botafogo, "A Magia do 7" (Editora Livros Ilimitados, 2011) e Autor dos Livros "Saudosas Pelejas: A História Centenária do Campos Athletic Association" (Edição do Autor, 2012), "Botafogo, Roxinho e Outros Textos Sobre Futebol" (Edição do Autor, 2020) e "Corrupção no Futebol" (Edição do Autor, 2020).Autor das Músicas sobre Futebol: "Oração do Futebol", "Samba do Senta" e "Gol do Maurício"; e do Hino Oficial do Campos Atlético Associação (Roxinho).Criador e Administrador dos Projetos Campos OnLine (@campos.online no Instagram); Campos de Bola (@camposdebola no Instagram); Bola Carioca (@bolacarioca no Instagram e /bolacarioca2020 no Facebook), Coleção Botafogo(/colecaobotafogo no Facebook); Blog Campos Fichas Técnicas (camposfichastecnicas.blogspot.com.br); Blog Pérolas Futebol e Causos (perolasfc.blogspot.com.br); e Blog Estrela Solitária no Coração (estrelasolitarianocoracao.blogspot.com). Fundador, Autor e Editor do Site Viva La Resenha (vivalaresenha.wordpress.com). Produtor do Podcast Camisa Oito (@camisaoito no Twitter).

Como citar

MACHADO, Wesley Barbosa. Breve cronologia de atletas negros “inseridos” em clubes de futebol no Brasil no primeiro quarto do século XX. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 28, 2020.
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