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Cronologia das Torcidas Organizadas (XII): Guerreiros da Tribo – Guarani

Nota explicativa. Esta série é parte integrante do projeto “Territórios do Torcer – uma análise quantitativa e qualitativa das associações de torcedores de futebol na cidade de São Paulo”, desenvolvida entre os anos de 2014 e 2015, com o apoio da FAPESP. A pesquisa foi realizada em parceria pelo CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e pelo Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), equipamento público vinculado ao Museu do Futebol/Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Na primeira fase da publicação, foi apresentado um total de 10 torcidas organizadas da cidade de São Paulo. O propósito informativo inicial desta série foi compartilhar breves apontamentos cronológicos sobre a história e a memória das associações de torcedores paulistanos. Em seguida, propôs-se a continuação da série, com a incorporação de mais 3 torcidas, desta feita pertencentes à cidade de Campinas: Torcida Jovem da Ponte Preta; Guerreiros da Tribo; e Fúria Independente, as duas últimas torcidas organizadas vinculadas ao Guarani Futebol Clube.

Bandeirão da Guerreiros da Tribo. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

No texto de hoje, para apresentar os marcos cronológicos da torcida brugrina Guerreiros da Tribo, recapitularemos, de início, dados da história oficial do clube. Em seguida, abordaremos aspectos da memória coletiva dessa torcida organizada.

O Guarani Futebol Clube é uma agremiação desportiva sediada na cidade de Campinas, interior de São Paulo. O clube, criado por jovens de descendência italiana, contava entre seus fundadores com estudantes do Gymnasio do Estado e por operários da cidade. A primeira reunião, capitaneada por Pompeo de Vito, Vicente Matallo e seu primo Hernani Matallo, foi realizada na praça Carlos Gomes, no dia 1º abril de 1911. Escolheu-se, entretanto, o dia seguinte para a fundação, para não coincidir com o dia da mentira.

A Praça Carlos Gomes serviu de inspiração ao nome do novo clube e também na escolha das suas cores. Os jovens adotaram o nome de Guarany[1], homônimo da conhecida obra do compositor campineiro que dá nome à praça; e adotaram as cores verde e branco, que simbolizavam o gramado da praça e a luz do sol que brilhava no dia.

Em 1953, o fundador do Guarani, Pompeu de Vito, descreveu a reunião de fundação do clube da seguinte forma: “A reunião foi realizada na antiga Praça Carlos Gomes, que na época era ajardinada, ao lado da Rua Conceição, esquina com Irmã Serafina. Ficou resolvido que o clube se sustentaria por meio de contribuições de 500 réis de cada componente […] Veio em seguida o problema da escolha do nome para a nova instituição esportiva. Uns queriam Paulistano, outros Internacional e por aí afora. Pelo Sr. José Trani foi lembrado que o nome Guarani Futebol Clube ficaria melhor, por encerrar uma homenagem a Carlos Gomes e a cerimônia estar-se realizando na praça que tinha o seu nome.” (SILVA; MARIOLANI, 2011, p.22).

Logo após a fundação, o jornal Commercio de Campinas convocava todos os futebolistas da região a comparecerem no dia 23 de abril ao ground da Villa Industrial para o primeiro treino do Guarani. O campo, conseguido junto à prefeitura e reformado pelos atletas, foi a primeira morada do clube, que também mandou seus jogos no terreno do Guanabara e no Hipódromo Campineiro durante a década de 1910.

Em 1912, o Guarani obteve seu primeiro troféu ao sagrar-se vice-campeão campineiro. O torneio, organizado pela “Liga Operária de Foot-Ball Campineira”, reunia apenas times de origem operária[2] e contava com o antagonista histórico do Bugre, a Ponte Preta, fundado havia mais de uma década.

O primeiro título veio com o campeonato municipal de 1916, organizado pela Associação Campineira de Foot-Ball. A conquista invicta, sete vitórias e um empate, valeu ao clube a Taça Club Italiano. Nos anos seguintes, o Guarani se consolidou como o principal vencedor do torneio municipal, ao acumular 13 títulos. Foi ainda em 1916 que o clube adotou pela primeira vez seu uniforme tradicional: camisas verdes por inteiro, calções e meias brancas.

No início da década de 1920, o Guarani adquiriu o Campo da Guanabara, na Rua Barão Geraldo de Rezende, que se transformou no Stadium do Guarany. O campo, apelidado de Pastinho, por conta de suas frequentes inundações, tinha arquibancadas de madeiras e era cercado por eucaliptos. O amistoso inaugural contra o Clube Athletico Paulistano, disputado em 15 de julho de 1923, terminou com a vitória bugrina por 1 a 0, gol de Zequinha.

As principais disputas do clube no período envolveram o campeonato municipal e a realização de amistosos, facilitados pelos deslocamentos de trem. No ano de 1927, o clube campineiro foi convidado a participar pela primeira vez do Campeonato Paulista da primeira divisão. A existência de duas ligas rivais no futebol paulista, a APEA (Associação Paulista de Sports Athleticos) e a LAF (Liga Amadora de Futebol), fez com que fossem disputados dois campeonatos. Convidado a participar do certame da APEA, o Guarani chegou ao quadrangular final contra Corinthians, Santos e Palestra Itália, que se sagrou campeão do torneio. Os bugrinos disputaram seguidamente os campeonatos paulistas até 1931, quando a APEA criou a “Série Campineira”, um torneio regional e amador para as equipes da região.

Durante o período de disputas amadoras em São Paulo, o clube foi vice-campeão do interior em 1943, perdendo o título para o Noroeste, de Bauru. No ano seguinte, venceu o torneio ao derrotar o São Bento, de Marília, na final e sagrou-se campeão amador estadual vencendo os amadores do Palmeiras.

O retorno da equipe bugrina à elite do futebol paulista ocorreu após o título da divisão de acesso em 1949. A vitória de 2 a 1 sobre o Batatais no estádio da Rua Javari credenciou o Guarani à sua primeira participação no Campeonato Paulista profissional e provocou um “carnaval” na cidade de Campinas, com festividades que atravessaram a noite de 12 de fevereiro.

O aumento de público no Stadium do Guarany fez com a diretoria ponderasse a construção de um novo estádio. O local escolhido foi a Avenida Princesa do Oeste, à época uma região pouco povoada da cidade. A maquete do estádio, apresentada em 1948, foi chamada pelo jornalista João Caetano Monteiro Filho de “brinco de ouro para a princesa”, em referência ao apelido de Campinas, Princesa do Oeste. A matéria veiculada no jornal Correio Popular caiu no gosto de dirigentes e torcedores e se tornou o nome oficial do estádio.

Torcedor e sua tatuagem da Torcida. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

A inauguração do Brinco de Ouro da Princesa contou com o amistoso entre Guarani e Palmeiras, em 31 de maio de 1953. Os festejos culminaram com a vitória bugrina por 3 a 1 e o jogo posterior contra o Fluminense. A instalação da iluminação para jogos noturnos em 1964 e a construção do tobogã, finalizada em 1980, foram os complementos que deixaram o estádio com as feições atuais. A mudança para o Brinco de Ouro da Princesa incluiu a construção de um clube social, com parque aquático, ginásio, canchas de bocha, bosque e campos adicionais, aumentando por via de consequência o número de associados.

As frequentes participações nas divisões principais do Campeonato Paulista e do Campeonato Brasileiro, a partir de 1973, foram representativas do espaço alcançado pelo clube no panorama nacional. O Guarani conquistou seus resultados mais expressivos entre 1972 e 1988. Nestes dezesseis anos, o time sagrou-se tricampeão do interior (1972-1974), venceu o primeiro turno do Campeonato Paulista de 1976 e chegou à semifinal no ano seguinte, foi por duas vezes vice-campeão brasileiro (1986-1987) e vice-campeão Paulista em 1988. Graças à performance de jogadores da qualidade de Zenon e Careca, os títulos de Campeão Brasileiro de 1978 e da Taça de Prata em 1981 têm lugar especial na história do clube.

No início dos anos 1970, período em que o Guarani era o clube com mais associados em Campinas, surgiu a primeira torcida organizada do clube. Sob estímulo dos dirigentes bugrinos Antônio Cursi e Laércio Demonte, nasceu a Torcida Jovem do Guarani. O projeto da torcida foi apresentado a associados bugrinos que tinham uma relação próxima à direção do clube. Esta ficaria responsável pelas camisas, bandeiras, espaço para sede e pela organização das caravanas da torcida organizada. O grupo era aberto a todos os torcedores, sem a necessidade de ser sócio do clube.

Contudo, o nome Torcida Jovem do Guarani era muito próximo da torcida rival ponte-pretana, a Torcida Jovem da Ponte, fundada em 1969. O grêmio de torcedores alviverde mudou seu nome para Torcida Jovens da Tribo, como relata Fernando Pereira da Silva, um de seus fundadores:

Já existia a torcida Jovem do Santos, na época era moda, todos os clubes tinham a sua torcida jovem, torcida organizada era ligada à juventude. Com o título da Copa do Mundo de 70 toda a garotada do Brasil passou a gostar ainda mais de futebol, então esses jovens de todos os times se organizaram para fazerem suas torcidas organizadas. […] Mesmo a Jovens da Tribo quando ela nasceu com o novo nome ela ainda era ligada a Departamento Social, o problema que o Guarani criou essa Torcida Jovem e a Ponte também, isso dava uma certa confusão, um certo desconforto, os dois clubes com o mesmo nome de torcida e resolveram mudar a Torcida Jovem do Guarani para Torcida Jovens da Tribo, mas ainda ligada ao Departamento Social. (p. 4).

A relação umbilical entre a torcida organizada e o clube gerava opiniões controversas entre os torcedores. Na interpretação de Robel Tadeu Datovo, presidente da torcida por mais de 20 anos, a entidade tinha um traço comunitário, familiar. Exemplo disto era a venda de ingressos para a caravana da Torcida Jovens da Tribo, que ocorria na farmácia do diretor social Davi Labidalini.

Para outros torcedores, caso de Fernando Pereira da Silva, a tutela do Departamento Social tolhia a liberdade e começava a criar problemas de relacionamento entre as partes. Era imperativa a reformulação da relação entre torcida organizada e diretoria:

Aí como eu disse houve ali por 75, houve a iniciativa de independência da torcida. Havia sempre alguns problemas quando o Departamento Social fazia caravana, misturava a garotada com o pessoal de mais idade, aí a garotada aprontava na viagem, os velhos reclamavam no clube, chamavam a atenção… Aí resolveu-se fazer uma mudança estrutural, a torcida seria independente e ela organizaria sua própria caravana, eventualmente o Departamento Social ainda fazia, ainda organizava, mas já cedia o número de ônibus pedido pela torcida. Separou a saída, o local de saída já era diferente, normalmente a gente saía da [Avenida] Francisco Glicério ou em frente aos Correios ou mais abaixo ali perto da [Rua] General Osório, até da [Avenida] Aquidaban, a caravana do social do Guarani saía do Brinco de Ouro geralmente. (p. 4-5).

A Torcida Independente Jovens da Tribo tinha por plano maior autonomia, expressa no acréscimo do termo Independente, apesar de se manter próxima ao clube. Partia-se do princípio de que a separação formal seria melhor tanto para o clube quanto para a torcida. De todo modo, mesmo separadas, as subvenções proporcionadas pelo clube, como o aluguel dos ônibus, a sede para a torcida e a sala para guardar mastros, bandeiras e instrumentos musicais, foram mantidas.

Contudo, um ano após a sua reformulação, a torcida passou por sua primeira cisão. Um grupo manteve a Torcida Independente Jovens da Tribo sob o comando de Tadeu Datovo, ao passo que a Torcida Uniformizada do Guarani (TUG) passou a ser dirigida pelos dissidentes Mauro Osvaldo Roselli, Fernando Pereira da Silva, Gilberto Moreno Souto e José Roberto Risso.

O objetivo do núcleo fundador da TUG era tornar mais agudo o processo de independência em relação ao clube. Sob inspiração das torcidas paulistanas, o intuito era uma entidade com sede própria, registro formal e estatuto, diferente do perfil da Jovens da Tribo até ali. A cizânia gerou a competição entre TUG e Jovens da Tribo pela área central da arquibancada lateral, espaço de melhor visão e maior status:

[…] a gente também simulava brigas na geral às vezes, para abrir espaço, a gente queria o centro da geral. A turma da Jovem chegava e sentava tudo junto, a gente simulava entre nós, começava a empurrar para cá, empurrar para lá e a turma saía correndo, abria aquele clarão, aí a gente já colocava o bandeirão no lugar e guardava o lugar para o nosso grupo ficar no centro do campo. Até que a Jovens da Tribo resolveu ficar à esquerda da geral, ela ficou mais próxima da cabeceira sul e a TUG ficava ao centro. (p. 10).

Durante sua breve existência, a TUG representou o Guarani no concurso da Poupança Sul-brasileiro, que elegeria o craque do interior. A Torcida Uniformizada do Guarani e a Torcida Jovem da Ponte foram convidadas no intuito de arregimentar votos para o bugrino Amaral e para o ponte-pretano Oscar. A vitória de Amaral valeu ao jogador um carro Opala novo e à TUG uma poupança no banco e mais dez peças de bateria, presente do jogador à torcida.

No entanto, a existência de duas torcidas bugrinas e a criação de vários subgrupos no apoio a um mesmo clube naquele período enfraquecia o poder de cantar e mesmo de brigar frente a seus adversários ponte-pretanos. O principal problema para a formação da nova torcida eram as hostilidades entre a TUG e a Jovens da Tribo. A proposta defendida por Aluísio Victor dos Santos era da criação de uma única torcida, que abarcaria todos os grupos.

A reunião nas arquibancadas do Brinco de Ouro da Princesa ratificou a criação da nova torcida. A única condição era de que a entidade herdasse pelo menos parte do nome Jovens da Tribo. A proposta Guerreiros da Tribo, feita por Vita da Silva Bruno, foi a vencedora, acrescida dos termos Força Independente. Nascia assim a Guerreiros da Tribo – Força Independente.

A presidência da torcida ficou a cargo de Aluísio dos Santos, em razão de seu protagonismo no processo de unificação e também em função de sua idade, mais idoso que a maioria dos demais torcedores. Os departamentos ficaram divididos da seguinte forma: Tadeu Datovo era o responsável pelas caravanas, enquanto Toninho ficava encarregado do departamento de bandeiras; Fernando Pereira, por sua vez, tinha a incumbência da administração e da logística do grupo.

Fato inusitado: antes de se tornar presidente da Guerreiros da Tribo, Aluísio foi integrante dos Gaviões da Fiel, torcida corinthiana que nos anos 1990 se tornaria grande rival dos torcedores bugrinos. Não obstante, devido a esta bifiliação torcedora, o primeiro modelo de camisa da nova torcida foi produzido na mesma malharia dos Gaviões e possuía o mesmo design da torcida paulistana, com a mudança apenas das cores e do símbolo.

Fundada em 1976, a torcida teria de esperar até o início do Campeonato Paulista de 1977 para apoiar o Guarani (SILVA; FARIAS, 2016).

Com a “papelada” pronta e a volta do time profissional ao Brinco de Ouro prevista para 06 de fevereiro de 1977, estreando no Paulistão contra a Ferroviária, ficou estabelecido que seria cobrada a taxa de inscrição na torcida de 10 cruzeiros, além de mensalidades no mesmo valor a partir do mês seguinte. Os sócios em dia teriam vantagens em viagens e outras promoções (SILVA; FARIAS, 2016, p.19).

Em maio do mesmo ano, a Guerreiros da Tribo fez sua primeira grande caravana à capital paulistana, para a partida entre Guarani e Botafogo F.C., de Ribeirão Preto, válida pelas semifinais do primeiro turno do Campeonato Paulista. Foram ao todo quase 200 ônibus fretados de torcedores bugrinos para assistir ao jogo decisivo no estádio do Pacaembu.

Durante o Campeonato Brasileiro de 1978, à medida que o Guarani superava as fases iniciais do torneio, a torcida se animava e encorpava: levou mais de 200 ônibus ao Maracanã para a partida contra o Vasco e mais de 500 ônibus para a primeira partida da final contra o Palmeiras, no Morumbi. Segundo muitos torcedores, eram tantos os ônibus que a rodovia Anhanguera, que liga Campinas a São Paulo, ficou congestionada e muitos torcedores sequer conseguiram ingressar no estádio para a decisão (MARIOLANI; SILVA, 2008, p. 80).

Tradicionalmente, os ônibus eram subdivididos e partiam de forma segmentada, no intuito de diminuir os conflitos internos na torcida organizada. Assim, os torcedores mais velhos ou acompanhados de suas famílias iam nos ônibus da diretoria, com banheiro e lanches levados pelos torcedores, enquanto os outros ônibus, voltados aos torcedores mais jovens e aos batuqueiros, não contavam com o mesmo conforto.

A condição precária dos ônibus, o samba ensurdecedor durante o percurso, bem como o consumo de drogas e de bebidas alcoólicas em excesso exortavam a licenciosidade típica das aglomerações juvenis. A bateria, formada por percussionistas da Vila Rica, região periférica da cidade, era estigmatizada pelo comportamento desviante, porém reconhecida como aquela composta pelos melhores batuqueiros da cidade.

Camisa da Torcida Guerreiros da Tribo. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Apesar de malvistos, eram, no entanto, indispensáveis à animação das arquibancadas e ao sucesso da torcida. Foram vários os relatos de torcedores que eram “exilados” nesses ônibus, como forma de punição por mau comportamento em caravanas anteriores.

Uma das reclamações sobre Aluísio Santos, primeiro presidente da torcida, era de que não comparecia aos jogos com frequência, não vivia plenamente o cotidiano da Guerreiros da Tribo, responsabilizando-se apenas pelo diálogo institucional com o clube e pelo relacionamento com outras torcidas organizadas integrantes da ATOESP (Associação das Torcidas Organizadas do Estado de São Paulo), entidade criada na segunda metade dos anos 1970.

Segundo Tadeu Datovo, um desentendimento entre Aluísio e a diretoria do Guarani, concernente a um auxílio financeiro, teria sido um episódio deflagrador do desgaste interno e do gradual afastamento do ex-presidente no comando da torcida.

Aluísio Santos não concorreu à reeleição e foi sucedido por Tadeu Datovo, que já havia sido presidente da Torcida Independente Jovens da Tribo. Presidente com mandato ininterrupto ao longo de vinte anos, entre 1978 e 1998, Tadeu Datovo se afastou da torcida para tratar de um grave problema de saúde. Hoje radicado em Louveira, cidade da região metropolitana de Campinas, o ex-presidente mantém contatos esporádicos com a Guerreiros da Tribo, porém suas memórias sobre a entidade versam sobre o ambiente familiar da torcida; a relação íntima entre a torcida e o clube – dirigentes, comissão técnica e atletas; a diversidade de atividades dentro da Guerreiros da Tribo e a proximidade entre as torcidas organizadas de clubes distintos.

A história de vida de Tadeu Datovo é emblemática de muitas das relações entre o Guarani e suas torcidas organizadas. Nascido em Vargem Grande do Sul, durante sua adolescência tentou a carreira de jogador de futebol ao passar pelas categorias de base do Corinthians e depois do Guarani. Mesmo não se tornando jogador profissional, manteve-se em Campinas, formou-se em Educação Física e passou a trabalhar nos esportes amadores do clube. Durante duas décadas exerceu a dupla função de presidente da Guerreiros da Tribo e de funcionário do clube.

A intimidade das relações entre clube e torcida organizada era reforçada pelo papel desempenhado por Tadeu e pela grande quantidade de sócios do clube participantes da torcida. A forma como o ex-presidente descreveu o momento de auge da sua torcida, durante anos 1970 e 1980, versa sobre a sensação de que ali se encontrava uma boa sociedade (ELIAS, 2000).

[…] era uma família da gente, 90% da torcida era sócio do Guarani. Naquela época era o maior clube do interior, anos depois chegou a quase 30.000 associados e naquela época o torcedor fazia parte do clube. Então todas as realizações do Guarani na parte social a gente fazia parte, ajudava, colaborava, varria, limpava salão, participava de tudo. Era um negócio bem social, bem família na época.

Para Tadeu Datovo, o sinal dos tempos foi prenunciado pela mudança das relações dentro da torcida. A mudança do perfil familiar ou de uma reunião de camaradas para uma torcida que flertava com a violência foi, segundo sua narrativa, uma forma de os torcedores bugrinos se igualarem aos rivais alvinegros. Mas foi também fruto da incapacidade de seu sucessor de reeditar o sucesso vivido pela Guerreiros da Tribo.

Eu comecei a ter amizade com eles e falar ‘olha, não é isso, amanhã a gente se tromba e está todo mundo trabalhando junto, amanhã a gente se encontra numa balada, vamos brigar só porque você faz parte…’ mas aí eles, porque eles eram cabeça dura e ainda são até hoje, o ponte-pretano em geral, e fez com que? Fez com que os bugrinos ficassem pensando dessa maneira, por isso está essa revolta com nas torcidas do Guarani, são aqueles que não querem ficar por baixo. Então um quer ser melhor que o outro, mais poderoso, aí dá confusão. (p. 6).

De acordo com Tadeu Datovo, o aumento da violência, a diminuição dos espaços de negociação dialogada entre as torcidas, os interesses perniciosos de dirigentes e políticos – este conjunto de fatores diminui o protagonismo das torcidas e afugenta as pessoas “sérias” do futebol. A perda da “ideologia”, tal como existente nas décadas de 1970 e 1980, afetou o etos da Guerreiros e foi a responsável pela criação da Torcida Fúria Independente (TFI), em 1994, atualmente a maior torcida organizada bugrina.

Guerreiros. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

A passagem dos fundadores da Torcida Fúria Independente pela Guerreiros da Tribo é sintomática das diferenças de valores, na visão de Datovo. De uma torcida de amigos, que cultivava a camaradagem em torno do Guarani, para uma torcida que buscava “impor o respeito”, conforme o jargão nativo, mediante o enfrentamento físico com as torcidas organizadas de grande porte:

Então, aí tinha um rapaz chamado Caveira, na minha torcida, tinha ele e mais uns quatro que eram uma peste. Como eu te falei no início, foram raros os casos em que falei ‘não venham mais, vocês estão expulsos’, ele foi um, porque ele só fazia coisa para denegrir a imagem da torcida. […] Foi na época que surgiu a Fúria. Aí saíram, fizeram esse grupinho, ficavam do lado da Guerreiros, é um direito que eles têm de ficarem lá. E eles falando besteira e fazendo coisas que não eram do feitio meu. (p. 16).

O rápido crescimento da Torcida Fúria Independente esvaziou e afetou a continuidade da Guerreiros da Tribo. Ainda em 1998, o presidente Tadeu Datovo licenciou-se da torcida para tratar de um câncer e interrompeu as atividades da entidade. O modelo personalista da direção de Datovo fez com que o ideário criado sobre a Guerreiros da Tribo não se desvinculasse do caráter de torcida institucional do Guarani e da proposta de um ambiente familiar nos estádios, o que ia na contramão das novas concepções de torcida organizada que se tornaram hegemônicas ao longo dos anos 1990.

A política de proibições promulgada pelo Ministério Público a partir de 1995, na esteira dos confrontos fatais e dos eventos de agosto do mesmo ano, conhecidos como “Batalha do Pacaembu”, afetaram negativamente a Guerreiros da Tribo. A proibição das camisas, faixas e bandeiras contribuiu para a desistência e a evasão de muitos sócios.

Em 2001, após um hiato de três anos, um grupo de antigos torcedores passou a se reunir no bar do Formigão na tentativa de reerguer a torcida. Dois anos depois, em 2003, os encontros passaram para o Bar do Cachimbo, nas proximidades da sede social do Guarani. Em janeiro de 2004, a Guerreiros da Tribo voltou ao Brinco de Ouro, sob a presidência de Paulo Sérgio Cláudio de Farias, o Índio.

Tivemos, meses depois, que fazer um novo estatuto, e aproveitamos para dar uma modernizada em algumas coisas, para facilitar a comunicação. Sem desprezar o passado, era preciso passar a imagem de uma ‘nova Guerreiros’. O nome foi alterado. Para registro virou ‘Grêmio Recreativo Guerreiros da Tribo’, mas informalmente passou a ‘Guerreiros da Tribo – Torcida Organizada’, surgindo a sigla ‘G-T (duplo) – O)’, e o índio da logomarca refeito, ficando o cocar apenas em verde e branco, muito mais fácil e barato para as estampas. (SILVA; FARIAS, 2016, p. 27).

Os primeiros anos da retomada da Guerreiros da Tribo apresentaram dificuldades financeiras, expressas nas recorrentes mudanças de endereço. No início, os materiais eram guardados na casa da torcedora Débora Bertolin, depois no Bar do Cachimbo. Em 2008, a torcida se instalou numa antiga construção inacabada no Brinco de Ouro, porém foi posteriormente despejada pela diretoria bugrina.

Entre 2013 e 2015, a torcida manteve um bar no Jardim Paranapanema, região próxima ao estádio Brinco de Ouro da Princesa. Atualmente, a torcida conta com uma sala nas dependências do clube para guardar seus materiais, localizada próxima à estátua do técnico Carlos Alberto Silva. Os encontros se dão em frente ao estádio. A torcida posiciona-se no setor da arquibancada situada atrás do gol.

A Guerreiros da Tribo participa frequentemente de ações sociais, tais como a distribuição de brinquedos, as campanhas de doação de agasalhos e a entrega de ovos de Páscoa em localidades carentes da cidade de Campinas.


Referências bibliográficas

MARIOLANI, José Ricardo Lenzi; SILVA, Fernando Pereira da. 1978 – A conquista da estrela dourada. Campinas: Gráfica E-color. 2008.

SILVA, Fernando Pereira da; MARIOLANI, José Ricardo Lenzi. Centenário do Guarani F.C. Campinas: R. SAAB Gráfica e Editora. 2011.

SILVA, Fernando Pereira da; FARIAS, Paulo Sérgio Cláudio. Guerreiros da Tribo – 40 anos. Campinas: Editora Lince, 2016.

 

[1] Fundado como Guarany Foot-Ball Club, a grafia com y perdurou até finais da década de 1950.

[2] O torneio contou com a inscrição de Guarani, Ponte Preta, London F.C., Corinthians F.C., Internacional Mogyana e S.C. Operário, porém os três últimos desistiram da competição durante a disputa.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Vitor dos Santos Canale

Licenciado em História pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Educação Física pela Unicamp. Principais interesses: Torcidas Organizadas, Torcedores, Museus Esportivos e Crônica Esportiva.

Como citar

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; CANALE, Vitor dos Santos. Cronologia das Torcidas Organizadas (XII): Guerreiros da Tribo – Guarani. Ludopédio, São Paulo, v. 117, n. 1, 2019.
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