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Da queda ao épico: uma semana do Fluminense de Roger Machado

Gabriel Said 28 de maio de 2021
Passada a derrota no Fla-Flu decisivo no Campeonato Carioca, com a derrota na Libertadores para o Junior Barranquilla dias antes, a torcida tricolor começava a ficar impaciente. As páginas de torcedores nas redes sociais já estavam impacientes por alguma mudança, tinham até perfis (e ainda devem ter) pedindo a mudança de treinador. No entanto, a boa vitória sobre o River Plate e classificação em primeiro lugar no grupo da Libertadores foi como uma daquelas noites apoteóticas do Fluminense que sua torcida conhece.

Desde a derrota para o Junior Barranquilla fui escrevendo aos poucos em minha conta pessoal do Twitter algumas reflexões que tinha sobre o Fluminense, tentando entender a partir do ponto de vista do jogo o quê vinha acontecendo e até poderia acontecer. Organizarei melhor as ideias de lá aqui e complemento com impressões pós-River. Agradeço também aos meus amigos com os quais conversei nesses dias e me ajudaram a refletir melhor sobre o assunto.

Roger Machado
Roger Machado comemora terceiro gol do Fluminense contra o River Plate. Diz que o gesto dos braços abertos é pela sua espiritualidade e agradecimento à sua mãe de criação, que o observa. Imagem: Reprodução Fox Sports

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Comentários anteriores ao segundo Fla-Flu:

Uma coisa que o Fluminense precisa melhorar logo é na transição defensiva. A ideia do 4-4-2 várias vezes não vem dando certo porque os pontas não voltam no melhor tempo, aí vira 4-2-4. Yago e Martinelli têm muito fôlego e conseguem cobrir muito espaço, mas precisam desse apoio.

Cobrança do Roger não falta, gritou muito cobrando os pontas. Não tem como acompanhar treino então não sei como isso é trabalhado no dia-a-dia, mas tem de ver também os jogadores. Os pontas precisam se atentar mais a isso no jogo. Essa transição defensiva já está sendo explorada.

Além dela, tenho a sensação que a urgência do time nas transições ofensivas às vezes vem sendo equivocada. É normal o time perder a bola logo depois de recuperar porque ainda não sabe bem quando contra-atacar e quando pausar o jogo, poupar fôlego. Falo das transições porque o Fluminense tá se fazendo como um time de transições, então precisa trabalhar com foco nelas.

Não é um ataque ao Roger, pelo contrário, gosto do que vem fazendo até aqui. Problemas fazem parte do trabalho e ele é inteligente, ninguém conhece esse time melhor do que ele, disso não tenho dúvidas. Time ainda está instável, mas é normal por calendário, novas contratações, garotada, falta de treino. No momento é importante que equipe seja unida e competitiva, a tendência é melhorar.

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Comentários entre sábado e terça:

Roger vai trocar os pontas, como indicou na entrevista após a final. A fala inteira é:

“Precisamos buscar alternativas. Na verdade, a recorrência desse problema não é no meio campo em si. Estamos com uma dificuldade, sobretudo no início dos jogos, dos jogadores que tem entrado em campo, de conseguir pressionar com os quatro jogadores da frente. E muitas vezes isso acaba resultando no problema do meio campo. Nossos dois volantes sofrem muito em determinados jogos, sobretudo quando o time adversário coloca muitos jogadores atrás da linha e tenta, a partir do seu campo, articular jogadas. E nossa pressão, nesses jogadores de primeira construção, não têm sido bem feita em muitos momentos, que acaba desaguando no meio campo. Mas a origem não é o meio de campo. Nossos volantes têm muitas ações defensivas, mas elas precisam ser dividias como um todo: pelos jogadores da primeira linha, da linha ofensiva. Por vezes nós até optamos em marcar um pouco mais baixo, para tentar preencher um pouquinho esse meio campo e dar menos espaço, à medida que não temos conseguido pressionar mais alto. No segundo tempo, com as trocas, quando entrou Biel, Caio, com pernas mais rápidas, geramos dificuldades na construção, e o Flamengo teve mais dificuldade de sair organizado de trás. Isso não é uma origem do meio campo, mas sim um problema que resulta no meio campo.”

Resumindo a ideia do Roger, e que não tá acontecendo: os pontas (em tese, Luiz Henrique e Kayky) devem fazer a pressão lá na frente quando a bola vai para a lateral. O 9 e 10, normalmente Fred e Nenê, se colocam pelo centro do campo não para correr atrás dos zagueiros ou da bola, mas para cortar as linhas de passe pelo meio, diminuindo o desgaste deles enquanto tentam forçar o passe para o lateral adversário, sendo aí um gatilho para o ponta pressionar com o volante e lateral. Quando o ponta não faz isso a batata queima com os volantes.

Acho importante fazer um alerta para algo importante que Hudson Martins escreveu da metáfora do treinador ser como tempero assim como os jogadores serem o prato principal do jogo. A crítica aqui é que qualquer coisa que pensarmos sobre o jogo, deve ser com o entendimento que ele pertence aos jogadores. Como considero o quê Hudson escreveu tão necessário, trago para cá:

“As ideias de um treinador estão para o jogo como os temperos estão para o prato principal. São parte importante, dão cor e sabor – mas não são o prato em si. A performance esportiva coletiva ultrapassa qualquer vontade ou controle individual. Mas o que o nosso debate patrocina, cada vez mais, é justamente o contrário: uma inversão entre tempero e prato, cuja consequência prática é uma crítica, em forma e conteúdo, que superestima as ideias ao mesmo tempo em que ignora as diversas variáveis que as antecedem. Para citar três dessas variáveis: a autotelia do jogo (jogo é fim nele mesmo, independentemente das vontades humanas), a imprevisibilidade do jogo (fundamento teórico-prático do jogar) e as relações humanas, dentro e fora do campo de jogo (intrincadas, invisíveis e subjetivas).”

A partir daí trago o primeiro exemplo: Luiz Henrique, que no Brasileirão 2020 estava jogando de forma muito aguda, tentando sempre a jogada mais vertical. Por algum motivo hoje, mesmo com o Roger falando o tempo todo nos jogos, ele parece o oposto daquele jogador incisivo. Eu não sei o que se passa, por isso (e por uma questão ética) não o condeno, na verdade torço para que volte a jogar bem, porque vi o talento que tem. Se trata aqui da humanização do jogo. Entender os jogadores como personagens principais do jogo (a comida do prato, na metáfora do Hudson) e como seres complexos. Às vezes, trocar os dois pontas pode mudar tudo, porque futebol não é jogo de xadrez, não existem peças. Jogador nenhum está condenado a repetir eternamente os movimentos de L do cavalo, ou diagonais do bispo.

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Comentários após terça:

Roger não trocou apenas os pontas. Calegari também deu lugar para Samuel Xavier, que foi importante no primeiro gol da noite. Reparei também que Nenê estava voltando mais para o meio de campo, seguindo o primeiro volante do River Plate. Aquele 4-4-2 por vezes parecia 4-5-1, com o centro mais protegido. Além disso, Biel e Caio Paulista conseguiam fazer a pressão desejada. Apesar da troca de dois pontas parecerem em primeiro momento seis por meia-dúzia, tudo podia mudar, e mudou. Era um time transformado.

Em ótima entrevista no dia seguinte do jogo para o Seleção SporTV, Roger repetiu o problema da pressão feita pelos pontas como grande problema da equipe até então, que não se repetiu terça. Falou que queria pelo menos cerca de 30% das ações defensivas do time, ou seja, interceptação e roubada de bola, fossem feitas pelos quatro jogadores da frente.

Também revelou que em quase três meses de trabalho, só teve cinco dias de treino. O Fluminense já jogou 21 jogos nessa temporada. A falta de treino me faz pensar que nesse período o trabalho do treinador como selecionador de time e principalmente, nas relações humanas se torna ainda maior. Por isso Roger optou por mudar pouco o time que terminou o campeonato, vai temperando esse prato aos poucos, pra não queimar a largada.

Falou que queria um time no 4-3-3, para que os pontas não precisem marcar tanto, e como um jogador “mosca-branca” é importante. O “mosca-branca”, aquele jogador muito valioso, é daqueles que conseguem jogar bem tanto defensivamente como ofensivamente. No caso do Fluminense, Roger diz que esse jogador é Yago Felipe. Fica aqui a dúvida sobre quem completaria o trio de meias, mas acredito que seria Wellington, no lugar de Nenê.

O quê espero do time é que siga crescendo, e vá se tornando aos poucos mais sólido na defesa e perigoso no contra-ataque. Como Roger falou, tenta ter uma boa relação entre posse de bola e finalização. Sua ideia é um time agressivo, mesmo que fique menos com a bola, que seja também um time com variação tática, mas para tudo isso é necessário tempo. Tempo que treinador só consegue ganhando jogos. O pragmatismo de Roger pode ajudá-lo a ter um primeiro grande trabalho reconhecido. Seria bonito que alguém consciente como ele (como mostrou na sua entrevista ao Entrelinhas e em outros momentos) e, principalmente, o autor do gol do título da Copa do Brasil de 2007 pelo Fluminense consiga sucesso no mesmo clube. Por enquanto, é lindo ver o Fred jogando como vem fazendo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. Da queda ao épico: uma semana do Fluminense de Roger Machado. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 54, 2021.
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