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Das cidades atingidas pela Copa: Fortaleza

Gilmar Mascarenhas 27 de julho de 2018

Somente um projeto deveras austero de Copa do Mundo excluiria Fortaleza do certame em 2014. Um formato que, surpreendentemente, considerasse as prioridades fundamentais da sociedade brasileira no tocante aos investimentos governamentais; que se preocupasse com o erário e com a nefasta proliferação de elefantes brancos. Tal modelo de Copa (inexequível nesses tempos de megalomania nos grandes eventos esportivos, mas já aplicado outrora, como no mundial do Chile em 1962, que contou com apenas quatro cidades-sede) certamente tenderia a agrupar todos jogos nos quatro grandes centros do futebol brasileiro (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte). O que não evitaria problemas outros, tão ou mais graves, como a elitização de nossos principais estádios e a destruição de verdadeiros patrimônios histórico-culturais, como o Maracanã e a Fonte Nova.

Fortaleza, assim como Salvador, Curitiba e Recife, ocupa uma posição de “segundo escalão” na hierarquia urbana do futebol brasileiro. Em posição, portanto, superior às demais cidades que acolheram a Copa em condição de desastre inevitável para as contas públicas: Manaus, Brasília, Natal e Cuiabá, nosso indelével “quarteto crítico” de 2014. Em suma, afastamos ou ao menos reduzimos os riscos de produção de um elefante branco na capital cearense. Resta saber se houve (e em que medida) exclusão de torcedores e práticas populares de torcer.

Principal estádio da cidade, o Castelão (oficialmente Estádio Governador Plácido Aderaldo Castelo) tem sua origem diretamente relacionada a especificidades do modelo desenvolvimentista do período ditatorial brasileiro e ao correlato projeto de integração nacional. Mais precisamente, à forma como a organização do futebol “pegou carona” neste contexto. Em 1970, estando os supracitados quatro principais centros futebolísticos dotados de grandes arenas, iniciamos novo período, marcado pela construção de grandes estádios nas demais capitais brasileiras, dentre elas Fortaleza.

Vista aérea do Castelão. Foto: Fabio Lima/Portal da Copa.
Vista aérea do Castelão. Foto: Fabio Lima/Portal da Copa.

Em 1967, no bojo de uma conjuntura política repressiva e de plena manipulação do sentimento patriótico através do futebol, o governo federal (que já começava a financiar parcialmente a construção de grandes estádios) promoveu um torneio que será o embrião do futuro campeonato nacional. São reunidos inicialmente 15 clubes, de cinco cidades concentradas na região centro-sul. No ano seguinte são incorporados os clubes campeões da Bahia e de Pernambuco. Finalmente, em 1971, no auge da ditadura militar (e por ela financiado, com seus elevados custos operacionais, face às imensas distancias físicas a serem percorridas pelos clubes) surge o Campeonato Nacional, substituindo a Taça Brasil no papel de definir anualmente os participantes brasileiros na Taça Libertadores. Inicialmente com a presença de vinte clubes, o certame apresentou rápida expansão: no ano seguinte já eram 26 clubes participantes, passando a 40 agremiações no terceiro ano. A perspectiva de integração nacional através do futebol tornava-se explicita como política do regime militar no Brasil.

O aumento de clubes a cada edição foi uma constante na segunda metade da década de 1970: eram 54 clubes em 1976, 62 no seguinte e 74 participantes em 1978. Quando parecia esgotada qualquer possibilidade de seguir em expansão o número de competidores, o governo anuncia para 1979 o recorde de 94 equipes em disputa. Neste contexto de inclusão generalizada, de forma inédita em muitos casos, puderam participar do certame cidades com escassa expressão futebolística (ou de nível inferior de inserção na rede urbana), tais como Itumbiara (GO), Colatina (ES), Itabaiana (SE), Poços de Caldas (MG), Novo Hamburgo (RS) e Chapecó (SC). A crescente incorporação de novas cidades e regiões ao certame futebolístico nacional incentivava a construção de novos estádios ou ampliação dos preexistentes, mormente a partir de investimentos governamentais.

Neste sentido, em 1971 o Estádio Otavio Mangabeira, ou Fonte Nova, em Salvador, cuja capacidade de público era de 50 mil pessoas, foi ampliado com a construção do anel superior, atingindo a capacidade de 110 mil. No ano seguinte inaugura-se o “Mundão do Arruda”, ou Estádio José do Rego Maciel (pai do ex-presidente Marco Maciel), abrigando 110 mil pessoas, (hoje apenas 60 mil). Ainda em 1972, no contexto da febre de grandes estádios nordestinos, Natal (RS) apresenta o “Castelão”, dotado para 53 mil assistentes, quando a população urbana não alcançava 300 mil habitantes, e que depois alterou nome para João Cláudio de Vasconcelos Machado, ou “Machadão”. No ano seguinte, a vez de Fortaleza concluir o ciclo das grandes capitais nordestinas, com o Castelão, que chegou a receber 118 mil pagantes. O Ceará Sporting participou das primeiras edições do campeonato nacional ainda atuando no pequeno estádio Presidente Vargas, construído pela municipalidade em 1941, destoando das demais capitas nordestinas já dotadas de grandes arenas.

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Crianças brincando no estádio municipal Estádio Presidente Vargas. Foto: Gilmar Mascarenhas.

Em 1978, após tamanha febre construtiva, o Brasil possuía, segundo um relatório da FIFA, seis dos dez maiores estádios de futebol do mundo. Mas apesar de superdimensionados, aqueles estádios não eram elefantes brancos. O baixo custo (mormente subsidiado) dos ingressos, e a própria estrutura interna dos equipamentos, dotados de amplos setores destinados aos mais pobres, favoreciam o comparecimento das multidões. E era também a fase de euforia nas torcidas situados fora do “eixo central”, movida pela recente inclusão de clubes no campeonato brasileiro. Vários recordes de público foram batidos naquelas primeiras edições do “brasileirão”, quando Pelé, Jairzinho, Rivelino, Paulo César Caju, Gerson, Tostão e tantos outros craques desfilavam “ao vivo” pelos mais diversos gramados deste imenso Brasil.

No período anterior (pré-1970), após décadas de exclusiva vivência de campeonatos citadinos ou estaduais de curto alcance territorial (restritos a capital de cada estado e cidades mais próximas), a maior parte da população brasileira desenvolveu senso de pertencimento clubístico atrelado aos clubes locais. Por isso Fortaleza, como tantas outras cidades, possuía seus animados certames envolvendo mais de uma dezena de clubes locais, tais como Calouros do Ar, Maguari, Ferroviário, Uniclinic, Terra e Mar, América, Tiradentes e Messejana.

O advento do Campeonato Nacional impactou de forma acentuada o cenário periférico de nosso futebol. Para além das grandes arenas na paisagem urbana, uma nova era apontava para a desvalorização progressiva dos certames estaduais. Ao mesmo tempo, os clubes mais tradicionais destas cidades, agora aditivados pelas polpudas bilheterias, adquiriram novo patamar financeiro e assim ampliaram sua superioridade no cenário local. O exame dos campeonatos estaduais demonstra que os clubes “pequenos” foram paulatinamente perdendo força a partir de 1970, tornando tais certames um verdadeiro “monópolio” de uma elite local de clubes. Apenas no século atual, mediante a enorme desvalorização dos certames estaduais (considerados um fardo e prejuízo para os “grandes” clubes), os “pequenos” voltaram a disputar títulos, simplesmente devido ao menor investimento dos grandes nestes campeonatos.

No futebol baiano, por exemplo, tivemos cinco clubes campeões na década de 1960, mas nos trinta anos seguintes a dupla Ba-Vi estabeleceu completa hegemonia. No campeonato cearense, hoje dominado pela dupla Ceará e Fortaleza, a mesma década de 1960 ainda assistiu a quatro distintos clubes campeões, e a cinco outros nos anos 1950. Em linhas gerais, o período 1970-2000 atesta o processo de falência dos pequenos clubes. Ao mesmo tempo, o “brasileirão” foi reduzindo seu porte a partir do final dos anos 1980. Conjugando este processo com a exportação massiva de nossos melhores jogadores, é fácil compreender a redução de público (e progressivo abandono) dos grandes estádios construídos na “periferia” do sistema nacional a partir dos anos 1990. Uma geração de gigantes de concretos condenados à obsolescência, dentre eles, o Castelão.

O progressivo desgaste das estruturas propiciou uma primeira reforma em 2002, quando também foram instalados assentos em todos os setores do estádio. Dez anos mais tarde, adveio a grande reforma para a Copa do Mundo. Cumpre registrar que o Castelão não demandou gastos exorbitantes. Ao contrário, considerando o custo por assento, foi o estádio mais barato da Copa 2014. Visitamos o estádio há poucos dias, em 23 de julho último, e constatamos a simplicidade da estrutura interna, se comparada ao Maracanã e outras arenas

A capacidade de público se aproxima dos 64 mil lugares, que elevam o castelão à destacada posição de quarto maior estádio do Brasil. Confesso que logo após sua inauguração apostei, em entrevistas e artigos, que seria forte candidato a mais um elefante branco no país. Mas a média de público verificada desde então, mediana para os atuais padrões nacionais, não nos autorizam tal acusação. O baixo custo dos ingressos, sobretudo através de programas sócio-torcedor, tem viabilizado em certa medida a nova arena, ainda que notoriamente contando com farta ajuda governamental. Pela brevidade da estadia (participação em banca na Universidade Federal do Ceará) não foi possível assistir uma partida, tampouco tivemos acesso a torcedores assíduos e movimentos organizados em torno da luta pelo direito ao estádio, o que reduz nossas pretensões neste texto.

Grandes eventos vinham sendo realizados no início das operações, até o ano 2014, como as apresentações de Paul McCartney, Beyoncé e Elton John, mas o Centro de Eventos do Ceará, magnifica estrutura mais bem localizada, reduziu a atratividade da Arena Castelão.

Para o futebol, os dois grandes clubes locais alternam seus jogos entre a arena o já citado Presidente Vargas, que também visitamos. Com capacidade para 18 mil assistentes confortavelmente instalados, o estádio municipal encontra-se em excelentes condições de manutenção (exceto a iluminação) e garante aos clubes custos bem inferiores de uso do equipamento, além de estar muito bem localizado. Nos certames estaduais, apenas o clássico local elege o Castelão como palco.

A Copa 2014 não produziu contentamento para a população fortalezense, especialmente para os segmentos marginalizados. O ousado projeto de melhorias na mobilidade urbana, principal legado previsto, encontra-se inconcluso até hoje, e com traçado polêmico. Violentas e volumosas remoções foram promovidas com reassentamento dos moradores em periferias longínquas e/ou desassistidas, como o bairro José Walter. Conforme os estudiosos do Observatório das Metrópoles[1], o maior legado da Copa foi aprofundar a segregação social e favorecer grandes interesses imobiliários em Fortaleza. Mas no futebol podemos talvez dizer que os impactos negativos foram muito menores que na média das cidades brasileiras que sediaram o evento.


[1] PINHEIRO, V. et al. “Os impactos da Copa do Mundo FIFA 2014 em Fortaleza”. In SANTOS Jr, O. e outros (org.) Brasil: os impactos da Copa do Mundo 2014 e das olimpíadas 2016. Rio de Janeiro: E-papers, 2015

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Gilmar Mascarenhas

Professor Associado do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Como citar

MASCARENHAS, Gilmar. Das cidades atingidas pela Copa: Fortaleza. Ludopédio, São Paulo, v. 109, n. 35, 2018.
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