132.5

De carrinho no fascismo: o antifascismo e o futebol

Gabriel Said 2 de junho de 2020

A série “Futebol e política”, de Victor de Leonardo Figols, é excelente e a leitura é altamente recomendada. Seguem os links: Os fascistas querem a bola, O futebol resiste! e A revolução virá das arquibancadas.

O que é fascismo? No senso comum, parece ser um termo para quem é autoritário. Entendendo dessa forma rasa acaba criando falsas equivalências onde Hitler, Mussolini ou Franco entram no mesmo barco que algum líder das repúblicas socialistas, antigas ou contemporâneas, embora somente um desses lados seja de fato fascista. Para resumir, o fascismo é um conceito camaleônico e parasitário, que se apropria de símbolos, ícones, retórica e mitos para mobilizar a sociedade. Assuntos como corrupção, fraqueza de instituições, nação enfraquecida, tudo com uma perspectiva eugenista e civilizatória – no seu pior sentido, ou seja: monocultural e normatizadora, assumindo que existe uma cultura e costumes (sempre brancos e masculinizados) superiores. Por isso, é um escândalo a existência de diferentes povos e valores em uma nação. Por isso, eles odeiam o termo “povos indígenas”, “povos negros” ou “povos ciganos”. Se perguntar como podemos definir quem é fascista, não daremos uma resposta fácil, até porque raramente o fascista vai se declarar abertamente como é, preferindo beber um copo de leite e se esconder assim como o racista diz que não é racista porque tem amigos negros. O historiador Robert Paxton em Anatomia do fascismo apresenta a seguinte descrição:

O fascismo é uma forma de comportamento político marcado pela preocupação obsessiva com o declínio comunitário, humilhação ou vitimização e por cultos compensatórios de unidade, energia e pureza, em que um partido baseado em uma massa de nacionalistas militantes, trabalhando em uma inquieta, porém efetiva colaboração com as elites tradicionais, abandona as liberdades democráticas e persegue com violência redentora e sem qualquer limite ético ou restrições legais, objetivos de limpeza interna e expansão externa.

As revoluções fascistas nunca foram bem sucedidas, os fascistas sempre alcançaram o poder legalmente. A partir disso, é importante delimitar: o contrário de um fascista não é um liberal, assim como o contrário de regime fascista não é a democracia tal qual conhecemos (liberal burguesa). O movimento antifa costuma estar envolvido com os movimentos anticapitalistas (anarquismo e comunismo, como o símbolo com as bandeiras preta e vermelha mostra). Não existe antifascismo anticomunista, apesar de nem todo antifa ser comunista. Alysson Leandro Mascaro, em seu livro Crise e pandemia, recém publicado pela Boitempo escreve:

Nunca houve nem há nenhum limite moral, ético ou humanista ao capital: a sociedade capitalista é apenas a sociedade da marcha da acumulação. Nestes dias correntes as propensões de Trump e Bolsonaro e dos capitalistas, seus áulicos contra a quarentena, a favor da circulação de pessoas e do envio de pobres aos postos de trabalho são provas de que sequer questões de vida ou morte detém o interesse do capital. Nazismo, fascismo e genocídios não são pontos abomináveis do sistema; são suas margens extremas e possíveis.

No futebol o movimento contra o futebol moderno surgiu na década de 90 com a sua crescente mercantilização e espetacularização. Apesar de a modernização do futebol ser já um processo que estava em andamento, a partir dessa década acontece a hipercomodificação, jogando o esporte de vez na lógica mercadológica e o transformando em poderosa indústria do entretenimento, seu jogo em produto, os clubes em empresa sobrando aos torcedores o cargo de consumidores. Nesse contexto, surgiram – organicamente – vários coletivos e torcidas que criticam os rumos do futebol moderno. Movimentos estes como na torcida do Celtic, Marseille, St. Pauli, Union Berlin, Rayo Vallecano, Livorno e Hajduk Split que estão dispostos a encarar de frente o fascismo e o futebol moderno, a radicalização das rédeas capitalistas sob o futebol.

O fascismo não se trata de uma escapulida histórica, nem se trata de um embate entre civilidade e barbárie, pelo contrário: a barbárie – altamente civilizada – manda e desmanda de acordo com seus interesses; fascismo, holocausto, guerras, ditaduras, golpes e genocídios dos últimos dois séculos sempre encontram justificativas técnicas, às vezes mais sofisticadas, mas nem sempre. Na frente antifascista das torcidas, podemos lembrar Brigate Autonome Livornesi, torcida do Livorno que é declaradamente comunista e faz frente às torcidas de extrema-direita na Itália, em especial à do Pisa. St. Pauli e Union Berlin também podem facilmente ser lembrados nesse ponto, aliando sempre a luta anticapitalista à antifascista, pois são historicamente entrelaçadas.

Manifestação de torcedores antifascistas na Avenida Paulista, São Paulo, 31 maio 2020. Foto: Pam Santos/Fotos Públicas.

No Brasil, a Gaviões da Fiel, com todo o peso histórico que já carrega pela luta democrática do Corinthians na época da ditadura empresarial-militar, recentemente vem se posicionando na luta ANTIFA, além de denunciar escândalos dos governos paulistas, serem contrários ao golpe sofrido pela presidenta Dilma e expor mandos e desmandos da CBF, Globo e FPF. A continuação da espetacularização e mercantilização do futebol, essa evolução neutra e consequência natural do que era antes, sem levar em conta todos os interesses poderosos por trás da construção histórica, em termos benjaminianos é, ao fim, a permanência da barbárie que expulsa e mata torcedores tradicionais nos estádios em detrimento do consumismo, que levam clubes à falência em nome da privatização, desconfigura campeonatos, cria superclubes, estrangulas clubes menores que perdem torcedores e estádio, cria arenas e demole gerais, etc. Os torcedores do Liverpool sabem bem que Hillsborough não foi uma tragédia, mas sim uma farsa histórica. Por isso, Walter Benjamin escreveu com toques irônicos sobre a ideia genérica de progresso como a continuidade das forças hegemônicas:

Pessimismo em toda a linha. Sim, na verdade, e totalmente. Desconfiança quanto ao destino da literatura, desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do homem europeu, mas sobretudo desconfiança tripla diante de qualquer acomodação: entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos. E confiança ilimitada apenas na I. G. Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe.

Dando continuidade à ideia de Benjamin, podemos pegar o que Luiz Antonio Simas escreveu em sua conta do Twitter no dia 31 de maio:

A PM de São Paulo tem origem distante, em 1831, como Corpo de Guardas Municipais Permanentes, durante a Regência. Guardas similares foram autorizadas nas províncias do Brasil, num contexto regencial marcado por rebeliões as mais diversas. A defesa armada da propriedade (de terras e de gentes) e do poder instituído estão na origem da questão. São tempos da Cabanagem, da Balaiada, da Revolta dos Malês, dos levantes de Pernambuco, da Sabinada e da Guerra dos Farrapos. O brasão da PM paulista é composto de 18 estrelas, representando rebeliões e guerras em que o corpo militar paulista, mesmo tendo sido reformado e modificado ao longo do tempo, se envolveu. Exemplifico: a 8ª estrela representa a campanha contra Canudos, a 9ª representa a campanha contra a Revolta da Chibata, a 10ª representa a repressão à greve operária de 1917 e a 18ª estrela comemora o triunfo do que a PM chama de “Revolução de março de 1964”. Um massacre de camponeses, uma luta contra marujos que combatiam pelo fim de castigos corporais, um cacete contra grevistas e o apoio ao golpe de 1964, com posterior envolvimento na máquina de tortura dos porões. Repito o que insistentemente afirmo: a discussão sobre o que deu errado na polícia parte de um pressuposto equivocado. O problema das PMs não é ter dado errado. É até hoje ter dado certo na defesa do status quo, das “famílias de bem”, da propriedade.

Não é exatamente isso que aconteceu no último dia 31? De um lado o movimento fascista, do outro os Antifas e a polícia reprimiu o segundo. É a história se repetindo: em Cable Street, Londres, no ano de 1936, a União Britânica dos Fascistas organizou uma marcha para o domingo, dia 4 de outubro no centro de East End, onde havia muitos judeus. Os habitantes da área, que somavam cerca de 100 mil residentes, organizaram uma petição ao governo para banir a marcha, mas em resposta a marcha manteve sua permissão – liberdade de expressão, né – e a polícia foi enviada para protegê-la de manifestantes antifascistas. Os Antifas, organizados entre comunistas, socialistas, anarquistas, judeus, irlandeses e o Independent Labour Party (antecessor do atual Labour Party) somaram 20 mil e enfrentaram os 7 mil policiais e 3 mil fascistas camisas-negras forçando o final da marcha. O feito virou música, chamada The Ghosts of Cable Street.

Antifascismo é uma teoria ético-política prática. Não é uma organização, não é exatamente algo que uma pessoa é, mas sim o que ela pode fazer para se opor ao fascismo por quaisquer meios necessários e aqui está a chave. Exatamente nesse “quaisquer meios necessários” poderíamos separar mais claramente quem é contra o fascismo e quem entra no campo do antifascismo. Falar de antifascismo significa abandonar a absurda teoria da ferradura inspirada em Hannah Arendt que joga os supostos extremos no mesmo saco sem qualquer avaliação qualitativa. Em outras palavras, ao fim e ao cabo é necessário compreender e sustentar a necessidade de, em última instância, dar voadora em fascista até a suástica virar cata-vento. Um exemplo: os fascistas de Londres em 1936 defendiam o extermínio de todos os judeus enquanto que do outro lado os movimentos Antifa eram radicalmente contrários a isso. Existe possibilidade moral e ética de debater um meio termo? Seria um pouquinho de genocídio? Ainda nessa linha fica uma pergunta provocadora: já não estaria o mundo então dialogando com ideias fascistas? Existe uma diferença gigantesca entre um ato como o do dia 31 de maio com as torcidas organizadas e o ato organizado na noite do dia 30 em Brasília. Ambos atos usaram de violência, mas por meios e motivos muito distintos e exatamente por isso apenas um deles pode ser chamado de fascista.

Fla-Antifa. Foto: Reprodução/Twitter.

 

Em abril de 2018, Sara Winter, que está com notoriedade por seu grupo supremacista em Brasília (sobre isso vale a leitura desse artigo d’A Pública), faria uma palestra na Universidade Federal Fluminense, mas foi impedida e ainda ficou presa em um prédio do campus por algumas horas. Isso foi um ato antifascista. A ação feita pelo coletivo Sleeping Giants de pressionarem empresas a retirarem anúncios de páginas de extrema-direita também poderia entrar como ato ANTIFA. Impedir que supremacistas brancos se reúnam, se organizem ou se manifestem é uma ação antifascista, assim como rasgar seus pôsteres ou pedir para livrarias não vendam seus livros. Outras ações são a defesa da classe trabalhadora e dos oprimidos, protegê-los da violência policial ou criar abrigos para quem precisa. Essas últimas atividades, além de ajudar as pessoas, afastam os fascistas que se aproveitam do abandono para recrutamento. O que vimos no dia 31 de maio pelas torcidas organizadas foram ações antifascistas.


O caso do Hajduk Split

‘Torcida’ do Hajduk Split. Reprodução: hajduk.hr

Em 1941, com a anexação italiana na Croácia, o time da cidade de Split, o Hajduk (que, por curiosidade, sua principal organização de torcedores se chama Torcida em homenagem ao termo brasileiro) foi convidado a participar da Serie A com o nome de AC Spalato, mas se recusou a participar. Split livrou-se dos fascistas em 1943, mas logo depois os alemães ocuparam a cidade, também propondo a participação do Hajduk na liga alemã e com o clube recusando de novo, com todos os jogadores se juntando às tropas partisans de Marshall Tito por um breve momento, até o Hajduk começar a receber convites de todas as partes, desde o Egito até a Inglaterra para jogar partidas amistosas e levantar a bandeira antifascista, chegando a reunir um público de 40 mil em plena Segunda Guerra Mundial em partida contra soldados britânicos na Itália. Como se agradece em croata: Hvala, Hajduk Split!


Como Victor de Leonardo Figols lembra em Futebol e política: a revolução virá das arquibancadas das torcidas rivais de Galatasaray, Fenerbahçe e Beşiktaş uniram-se em protestos em 2013 que começaram contra a demolição do Parque Gezi e cresceram até críticas ao partido AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento) de Recep Tayyip Erdoğan. A partir daí, vamos pensar a potencialidade do amor, que, assim como é capaz de unir milhões em torno de um clube, também pode fazer muito mais.

Arrancar cadeiras de estádio ou acabar com manifestações, apesar de serem atos que se abordados levianamente sejam ruins, fazer como torcidas alemãs fizeram após a Copa de 2006 quando lhe foram impostas o “padrão FIFA” em seus estádios, ou como os gigantes de Istambul se uniram, ou como torcidas organizadas fizeram no Brasil no final de maio, ou como o movimento negro está fazendo nos Estados Unidos em reação ao assassinato de George Floyd, são em sua essência atos fraternos, democráticos e feitos a partir da vulnerabilidade de uma casa desconfigurada, do genocídio e da opressão. Na verdade, como escreveu C. L. R. James em Os jacobinos negros:

Quando a história for escrita como deve ser, os homens ficarão admirados do comedimento e da grande paciência das massas, e não da sua ferocidade.

Stacy Clifford Simplican, em seu livro The capacity contract, faz a distinção entre dois tipos de comunidades políticas. A primeira é comum no liberalismo e ideias à direita, e tem sido dominante nos últimos milênios da humanidade: se chamam Comunidades de Força. É uma abordagem utilitarista e de valoração quantitativa das pessoas; o quanto elas podem contribuir por uma causa. Por exemplo, qual é a contribuição que um torcedor pode dar – financeiramente – ao seu clube? Aí está o seu valor, como consumidor. Vale prestar atenção nas falas de Paulo Nobre, então presidente palmeirense, no documentário Adeus, Geral para perceber como isso é colocado. Por outro lado, o torcedor tradicional tem o potencial de formar – e consequentemente extrapolar as barreiras futebolísticas – um modelo de comunidade oposto ao hegemônico, as Comunidades de Vulnerabilidade. Nelas, as pessoas se juntam não por suas diferentes perícias, excluindo os que não têm as qualidades desejadas, mas sim porque reconhecem interesses em comum: abrigo, comida, saúde; ou melhor, reconhecem suas vulnerabilidades e que precisam da empatia de outros sempre. Como o amor por um clube basta para ser reconhecido como torcedor e o apoio nas situações mais difíceis são mais valorizados. Não se faz torcedor, se é.

Margaret Mead, antropóloga americana da cultura, tem uma história que uma vez um aluno perguntou qual seria o primeiro relato histórico da civilização. Mead teria respondido que o primeiro dado da civilização seria o primeiro fêmur humano cicatrizado, pois isso implicaria que uma comunidade humana possibilitou um ser humano ficasse sem caçar, pescar, ou coletar, ou seja, em repouso por no mínimo seis semanas, com gente para cuidar dele durante esse tempo. O maior sinal de civilidade é a fraternidade, a dádiva.

Salah no desfile do troféu da Liga dos Campeões nas ruas de Liverpool no dia seguinte à final, 2 de junho de 2019. Foto: Wikipedia.

Para terminar dentro de campo, vamos pensar em dois casos: no egípcio Mohamed Salah, que sua influência vem sendo tão positiva que pesquisa da Universidade de Stanford o identificou como responsável pela redução considerável de crimes de islamofobia em Liverpool. Salah, como Mariana Vantine coloca, é o ídolo que o mundo precisa, responsável por quebrar estereótipos islamofóbicos e fazer o ocidente ovacionar um árabe muçulmano.

De uma cidade portuária para outra, falemos do Santos Futebol Clube. Em campanha de lançamento de sua linda camisa negra em outubro de 2019, o clube do litoral lembrou – com reforço pesado de Emicida e Mano Brown – que a história santista foi construída com pés negros. Mano Brown fala que torcer para o Santos é uma causa política pelo clube ter raízes populares (e com fundamento, como a pesquisa da Placar de 1971 mostra), da sua fundação na Rua do Rosário e de sua conexão com a história negra no Brasil pela Nossa Senhora do Rosário e da capacidade única do Santos de conseguir reunir todos para assistir o Santos, por conseguir colocar em campo fundamentos das periferias e favelas, transportar a várzea para o relvado, encarnando no drible a sobrevivência do negro diante do racismo. Aí está a essência do Santos: “Enquanto um negro desafiar o sistema com a bola no pé, o Santos viverá”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. De carrinho no fascismo: o antifascismo e o futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 5, 2020.
Leia também:
  • 177.18

    Sobre o papel dos pais e professores no futebol infantil

    Gabriel Said
  • 163.3

    Hay que jugar bien y con pasión: o futebol portenho como expressão da argentinidade

    Gabriel Said
  • 162.21

    Para Roberto, com carinho

    Gabriel Said