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De franquias e escolinhas de futebol

No segundo domingo de agosto comemora-se o dia dos pais e, por conta desta data, os filhos e filhas passam a ter uma rotina toda voltada para este dia. Na escola são estimuladas a fazer um presente autoral para o pai e nos outros espaços que ela possa circular alguma atividade estará voltada para este fim.

Com os meus filhos não foi diferente. Naquele sábado que antecedia o dia dos pais era a segunda aula deles na escolinha de futebol. Embora em algum momento da minha vida eu tenha sonhado em ser um jogador de futebol não coloco em meus filhos esta prerrogativa para a vida deles. Desde a Copa do Mundo de 2018, meu filho mais velho foi dragado pela paixão futebolística e socializado ao mundo do futebol por meio do álbum de figurinhas. O meu filho mais novo, com dois anos e meio a menos, foi socializado no embalo.

Ambos fazem há um ano uma aula chamada de Esportes Coletivos que acontece na Faculdade de Educação Física da Unicamp. Em que pese eu ser o coordenador da atividade, os dois gostam muito de fazer várias atividades esportivas sem ficar o semestre todo jogando uma mesma modalidade.

Apesar de gostarem, o mais velho, há algum tempo, começou a pedir para ingressar nas aulas de futebol. Era claro no seu pedido: queria jogar em uma escolinha de futebol. Perto de nossa casa não são muitas as opções e a escolha acabou sendo pela praticidade – já somos sócios do clube – e o preço. Mais à frente falarei da política de preços. Antes, porém, precisamos voltar ao segundo dia de aula.

O futebol e suas marcas. Foto: Hal Gatewood/Unsplash.

Ao chegarmos para a segunda aula procurei o coordenador do projeto e confirmei a participação do meu filho mais novo, pois no primeiro dia de aula ele saiu na metade da aula e não queria mais fazê-la. Na semana seguinte estava disposto a compor o quadro de alunos da escolinha e, acredito, que por influência da participação do irmão.

Logo fui avisado que os pais deveriam participar da aula como parte da comemoração do “dia dos pais”. Como eu não havia sido informado com antecedência não levei roupas e calçados para a prática, mas resolvi jogar do jeito que estava e descalço. Enquanto o meu filho mais velho vestia o uniforme da escolinha de futebol – item obrigatório para todo aluno(a) que queira participar do projeto – o professor já preparava a primeira atividade da aula.

Colocando cones de modo a dispor duas colunas muito bem definidas logo passou a instrução: pais para o lado esquerdo e filhos para a direita. Pegou uma bola e demonstrou o que deveria ser feito: passar a bola de um lado para o outro e ir para o final da fila após a execução do fundamento solicitado. Apesar de ter feito várias colunas e ter uma rápida rotatividade entre as pessoas que faziam os movimentos eu me perguntava se a aula não poderia ser pensada de outro jeito. Afinal, era para colocar em interação pais e filhos. Mas precisava ser deste modo?

Foram feitas algumas variações: conduz a bola e passa, leva a bola até o outro lado. Em minha opinião esta atividade funcionava como a chancela para muitos dos pais no sentido de que ela traduz o que os pais esperam quando pensam em uma aula de futebol, aprender os fundamentos como parte essencial. Afinal, na opinião de muitos é preciso ter técnica para poder jogar.

Realizada esta primeira atividade seguimos para a parte mais importante daquele dia: colocar em interação as pessoas que estavam ali. Os times foram divididos de forma aleatória e os pais ficaram nos times do filhos. Foi gostoso, as crianças e adultos se divertiram.

Faltando cerca de 10 minutos para acabar a aula esta atividade foi interrompida e todos foram convidados a bater um pênalti. Por que haveria de parar o que estava integrando todos para colocar apenas duas pessoas em ação? Qual a finalidade disto após promover um jogo? São perguntas que talvez não tenham uma resposta clara por quem a propõe, mas me parece que há uma ideia de finalizar a aula com um “volta à calma”.

Desde a primeira aula eu havia ficado incomodado pela forma como a aula é pensada. Veja, estou falando de uma aula para crianças com menos de 7 anos e não raramente são montadas atividades que não dialogam com o que vem na sequência da aula.

Especialmente nestas atividades que travam de alguma maneira a dinâmica da aula a leitura que faço é a da necessidade em marcar, e muito bem, o diálogo com o futebol profissional. Por exemplo, as crianças já tiveram que correr em círculo como parte do aquecimento da aula. E tudo isto sem bola. Primeiro para um lado e depois para o outro. Não ouvi a explicação sobre o motivo da atividade para as crianças.

Em outro momento, elas devem conduzir a bola em zigue-zague que está demarcado com cones e parar a bola antes de chutar para o golzinho. Será que a presença do cone garantirá a mudança de direção automaticamente? Por que devem parar a bola antes de chutar? Por que fazer esta atividade?

Nas três aulas em que estiveram apenas em uma houve uma maior concentração de atividades que envolviam brincadeiras com bola como, por exemplo, um pega-pega em que o pegador não tinha a bola e os demais tinha que fugir tendo como espaço delimitada a grande área. Ou em jogos de um contra um ou dois contra dois que foram realizadas em um determinado momento. Esta última foi utilizada em duas aulas.

É preciso ressaltar que nenhum outro pai ou mãe que assistem as aulas parecem se incomodar com o que veem. Arrisco a dizer que muito do que assistem lá é exatamente o que esperam de uma aula de futebol. Muitos cones, muitas correções e muitos direcionamentos por parte do professor.

O que me questiono a partir desta experiência como pai é qual futebol a escolinha quer ensinar. Como ela, sendo a representante de uma marca de um clube de futebol brasileiro, perde a chance de fazer algo significativo e diferente para crianças que estão aprendendo a gostar de futebol e que amam brincar.

Crianças de olho no jogo. Foto: Bruno Kelzer/Unsplash.

Trazer para este espaço os códigos que são validados no futebol profissional é uma forma como as franquias garantem a legitimidade do seu negócio. Sim, o que está posto é uma relação comercial. As crianças são obrigadas a comprar o uniforme completo do time da franquia. O valor de 200 reais pode até ser parcelado em três vezes, mas não pode deixar de ser pago. Sem contar a mensalidade. Para nós que somos sócios do clube temos um desconto de 50% da mensalidade e não tem que pagar a matrícula; quem não é sócio paga integralmente os 120 reais por mês e ainda em uma taxa de matrícula de 70 reais.

No dia em que pegamos o uniforme do meu filho mais velho – o do mais novo ainda não chegou e não há previsão, pois só tem ele com pedido e para o coordenador solicitar na central é preciso comprar 15 uniformes como mínimo – fui interpelado com uma pergunta que para mim não faz o menor sentido: “seu filho vai jogar no gol ou na linha?”. Respondi que era na linha, mas deveria ter dito para o coordenador que não deveria fazer uma pergunta deste tipo para uma criança. Afinal, deixa ela jogar, experimentar as diversas posições que o jogo pode oferecer.

Das três aulas, em duas o meu filho menor saiu no meio e a empolgação do maior já diminuiu. Tanto é que neste final de semana, por conta do feriado do dia 7 de setembro, ambos ficaram felizes porque não haveria aula de futebol. O sentimento deles revela o quanto as aulas não tem olhado, de fato, para as crianças. Dizem o quanto as aulas que priorizam a “aprendizagem dos fundamentos” acabam por isolar o contexto de sentido necessário para a própria aprendizagem.

Enfim, se as franquias e suas respectivas escolinhas perceberem que precisam fazer com que as aulas sejam significativas para as crianças pode ter a certeza de que a demanda de interessados irá aumentar exponencialmente e, por ironia do destino, será muito mais interessante para a relação comercial que lá existe, pois será estabelecida por meio da confiança e lealdade dos pais perante uma proposta que tenha sentido e significado para além da manipulação do sonho de ser jogador de futebol.

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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. De franquias e escolinhas de futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 123, n. 10, 2019.
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