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De Paulínia a Tóquio, fragmentos do futebol de 5

Samuel Ribeiro dos Santos Neto 9 de março de 2020

A bola tem um guizo dentro para que os jogadores cegos possam ouvi-la. Naquela partida de 2016, depois do gol brasileiro aos 12 minutos que o ala Ricardinho marcou, o staff do evento teve que pedir silêncio para a torcida brasileira mais de uma vez para que o barulho não camuflasse o rolamento da pelota.

“Nos unimos e fechamos para que, se não fizéssemos o segundo, não tomássemos o primeiro. Foi um jogo muito marcante pra gente”, relembrou Cássio Reis, 30 anos. A final era em casa, no Rio de Janeiro, e o Brasil ganhou por 1 a 0 contra a seleção iraniana, garantindo o ouro para o futebol de 5 pela quarta Paralimpíada consecutiva.

Cássio, que joga na defesa, é natural de Ituberá, litoral sul da Bahia. Perdeu a visão aos 14 anos, e como muitos atletas cegos iniciou a carreira esportiva por mais de uma modalidade. “Tive que ir para a capital. Chegando a Salvador, no Instituto de Cegos da Bahia, conheci o paradesporto. O futebol, o atletismo, a natação. Pouco a pouco o futebol foi se destacando na minha vida”, contou o jogador, que está em preparação para Tóquio, sua terceira participação em Paralimpíadas.

Ele esteve concentrado recentemente no Centro de Treinamento Paralímpico Brasileiro, em São Paulo, mesmo lugar onde assisti pela primeira vez a uma partida de futebol de 5. Eu queria conhecer sua trajetória e, claro, estava empolgado para entrevistar um atleta da seleção, mas precisava entender também a história brasileira na modalidade. É uma história marcada por vitórias: além do tetracampeonato paralímpico, são cinco mundiais e quatro ouros nos Jogos Parapan-Americanos.

Futebol de 5. Foto: Confederação Brasileira de Desportos para Deficientes Visuais (CBDV).

“Nunca me amedrontei por estar vestindo a camisa da seleção brasileira. Nunca pesou. Pelo contrário, é uma camisa que eu visto e me sinto muito bem, e sei que o meu papel aqui dentro fez com que essa história continuasse a ser construída. Essa é a sensação de todos os atletas que estão aqui”, afirmou Cássio, que também destacou o aumento do profissionalismo e da visibilidade do futebol de 5 nos últimos anos.

A modalidade, como tantas outras paralímpicas no Brasil, teve evoluções rápidas em um período curto de organização. O Wagner Xavier de Camargo já escreveu sobre isso aqui no Ludopédio. Além do protagonismo dos institutos de cegos em todo o território nacional na formação de atletas, alguns estruturadores do futebol de 5 – técnicos, preparadores, gestores – estiveram direta ou indiretamente envolvidos em projetos de universidades públicas.

Eu precisava conversar com alguém que tivesse testemunhado parte desse processo. Por isso marquei um encontro com José Júlio Gavião de Almeida, professor recém aposentado da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp e que participou da organização do primeiro mundial de futebol de 5, em 1998.

Gavião entrou na FEF em 1986, um ano depois que ela foi criada. Trabalhou muito tempo no Departamento de Estudos da Atividade Física Adaptada (DEAFA) com projetos de extensão e pesquisa ligados ao esporte paralímpico, ao lado de outros nomes referenciais como Edison Duarte, Paulo Ferreira de Araújo, José Luiz Rodrigues e Ana Isabel de Figueiredo Ferreira.

Treino de Futebol de 5. Foto: Confederação Brasileira de Desportos para Deficientes Visuais (CBDV).

“Quando eu entrei aqui, eu nunca pensei que ia trabalhar com pessoa com deficiência. Eu era professor de ginástica artística”, contou o docente. Um de seus primeiros desafios na área foi organizar um projeto de extensão para pessoas com deficiência visual, o que acabou virando sua tese de doutorado, defendida em 1995.

“No início do projeto, uma das coisas que os cegos tinham como uma cultura e gostavam de fazer era o futebol. Então, é lógico, a gente quis trazer coisas novas, mas também quis trazer coisas que eles já gostavam e já sabiam. Foi aí que eu percebi que a gente precisava ter o futebol de 5 aqui. Trouxemos pra cá um grupo que já existia, mas que não era tão organizado em termos de condicionamento físico, técnico e tático. Aí o que começou a acontecer? Começamos a acompanhá-los nos jogos. Quando tinha competição a gente ia, acompanhava as equipes, e aí o envolvimento foi fazendo uma bola de neve”.

Ao entrevistar Gavião, eu imaginava que ia encontrar a ligação entre a FEF e o futebol de 5 através da produção científica da faculdade. Afinal, a instituição é hoje uma referência nacional em pesquisas envolvendo pessoas com deficiência e esporte, acumulando artigos, teses e dissertações. Mas sua relação com as modalidades paradesportivas vai além e tem a ver também com um outro contexto acadêmico, aquele dos anos 1990, quando havia menos cobrança por métricas e publicações e mais espaço para a atuação dos professores centrada na extensão universitária.

Foi principalmente nos projetos de extensão e na atuação dos docentes do DEAFA que a FEF estreitou laços com o Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) e demais entidades de esportes para pessoas com deficiência. Num momento em que setores da Educação Física brasileira se afastavam do esporte de alto rendimento, Gavião topou colaborar na organização do primeiro campeonato mundial de futebol de 5, em 1998, na cidade de Paulínia/SP.

Na presidência do comitê organizador estava Vital Severino Neto, que era presidente da extinta Associação Brasileira de Desportos para Cegos (ABDC) e viria a presidir o CPB em anos posteriores. Outros nomes de destaque do movimento paralímpico brasileiro estiveram no campeonato, como Antônio João Menescal, que foi diretor técnico do evento, e Mizael Conrado, hoje presidente do CPB e, à época, pivô da seleção brasileira de futebol de 5.

Brasil e Argentina disputou a final do Futebol de 5 dos Jogos Parapan-Americanos Rio de Janeiro 2007, vencida pelos brasileiros. Foto: Wikipedia.

“A competição era pra ter sido feita no ginásio da Unicamp, mas foi bem numa época que deu uma ventania e destelhou todo o ginásio. Nós fomos até conversar com o reitor, mas ficou inviabilizado”, lembrou Gavião. Depois disso a comissão organizadora vasculhou a região e encontrou uma quadra recém construída na cidade de Atibaia, aparentemente perfeita, mas que não resistiu à medição do tamanho: estava fora dos padrões exigidos. A fita métrica mostrava uma diferença de cerca de 1 metro.

A solução, me contou o professor, veio pela intervenção de um aluno do projeto de extensão chamado Benedito Franco Leal Filho, o Neno, presidente da então Associação de Deficientes Visuais de Campinas (ADEVICAMP) e que mais tarde se tornaria você-presidente da ABDC. Neno vivia em Paulínia na época e era bastante envolvido no associativismo de deficientes visuais na cidade. Como lá havia um espaço adequado para o campeonato, acabou dando certo, e o Neno também atuou na organização.

“Era pertinho da Unicamp. Era pertinho do aeroporto. O hotel adequado não tinha em Paulínia, mas tinha em Campinas, que era ao lado. Então, foi muito gozado. O Neno era um aluno do projeto de extensão, tinha feito o curso de História na Unicamp, era um ex-aluno cego, e aí a gente acabou fazendo a competição aqui”, relembrou Gavião.

Com a derrota da Argentina na final daquele primeiro evento, o Brasil sagrou-se campeão, e nos anos seguintes o futebol de 5 foi se desenvolvendo, foi se organizando. As pesquisas do DEAFA com a modalidade, que surgiam em função das próprias atividades de extensão, ajudaram nesse processo. Mas a contribuição chave do departamento foi, ao lado de outras entidades públicas e privadas, ajudar a compor uma rede de instituições, profissionais e apoiadores para dispersar e capacitar o esporte no país.

Entre o campeonato de Paulínia e as Olimpíadas de Tóquio são 22 anos de diferença. O jogo evoluiu técnica e taticamente de lá pra cá, resultado do trabalho acumulado de muita gente, de dentro e de fora da academia. E se depender de Cássio Reis, o fixo da seleção que começou a jogar pelo Instituto de Cegos da Bahia em meados dos anos 2000, isso vai continuar. “Nosso objetivo é chegar na final e, chegando na final, botar tudo, meu velho. Porque são dois tempos de 20 minutos pra brigar pelo ouro”. Será difícil o silêncio da torcida.


Este texto faz parte do projeto “Histórias para narrar o corpo na ciência”, financiado pelo Programa José Reis de Jornalismo Científico da Fapesp (2019/18823-0) e coordenado pelo professor Bruno Rodrigues (FEF/Unicamp).

*A reportagem foi alterada no dia 12 de março de 2020 para incluir informações mais detalhadas sobre a organização do campeonato de 1998.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Samuel Ribeiro dos Santos Neto

Mestre em Educação Física e graduado em Ciências Sociais pela Unicamp. Doutorando em Educação, Especializando em Jornalismo Científico e Graduando em Educação Física pela mesma instituição. Realiza pesquisas nos temas de história do esporte e história da Educação Física. Desenvolve projeto de jornalismo científico com bolsa FAPESP no Departamento de Estudos da Atividade Física Adaptada (FEF/Unicamp).

Como citar

SANTOS NETO, Samuel Ribeiro dos. De Paulínia a Tóquio, fragmentos do futebol de 5. Ludopédio, São Paulo, v. 129, n. 10, 2020.
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