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Entre Índios e Macacos: a volta do dérbi campineiro

Fabio Perina 30 de julho de 2018

O último dia 5 de maio marcou o retorno do tradicional dérbi (para muitos o único clássico do Brasil digno de levar tal nome tão único) do interior paulista. Após cinco anos de ausência, como da última vez houve uma nova vitória pontepretana na casa bugrina. Ambas as equipes vinham com a motivação extra de duas taças nas últimas semanas, ainda que de menor expressão: a de campeão do interior foi para o Moisés Lucarelli e a de campeão paulista da A2 foi para o Brinco de Ouro.

A virada dos anos 1970 a 1980 foi considerada a época de ouro do dérbi diante de tantos craques e decisões que confrontaram. Porém o habitual é que muito pouca atenção lhe seja dedicado pela imprensa paulistana. O pouco que se sabe fora de Campinas sobre o dérbi é da enorme proximidade (cerca de 800 metros) entre os dois estádios. Algo muito raro em outros clássicos pelo Brasil. Uma cidade muito grande, a mais importante do interior do país, mas com uma rivalidade no dérbi como se fossem bairros vizinhos. Nenhum detalhe passa batido. Nenhum pedaço de território passa batido.

Proximidade dos estádios da Ponte Preta (esquerda) e Guarani (direita). Imagem: Google Maps (reprodução).
Proximidade dos estádios da Ponte Preta (esquerda) e Guarani (direita). Imagem: Google Maps (reprodução).

Após um grande desempenho no Brasileirão de 1999, no qual Guarani e Ponte perderam para Corinthians e São Paulo nas quartas de final, respectivamente, ambos os clubes padeceram de seguidos rebaixamentos a partir dos anos 2000. Se hoje já é difícil concorrer com clubes europeus pela preferência das crianças do interior, naquela época a concorrência dos clubes da capital já era uma realidade. Algo marcante na rivalidade campineira que cada torcida tenta empurrar para o outro lado o rótulo de ‘misto’, ou seja, dupla filiação clubística. Como se a sua própria torcida pudesse ser a mais vibrante e até mais ‘pura’.

Mas suas comunidades torcedoras são resistentes e, mesmo na falta recente dos craques e decisões do passado, ainda dão ao dérbi um gosto como de antigamente. Não se enganem os que pouco acompanham essa rivalidade em pensar que ela esfriou, mas o dérbi sempre rende episódios de provocações e polêmicas memoráveis. São esses alguns ‘causos’ que quero contar aqui. Mesmo vindo de quem nunca tomou lado no dérbi.

Curiosamente algumas expressões popularizadas pelo filme “Tropa de Elite” (2007) foram sendo adaptadas ao ritmo dessa rivalidade, principalmente pelos torcedores mais jovens. Os bugrinos dizem aos pontepretanos “Nunca serão”, diante da ausência de títulos de expressão em mais de 100 anos de história. Inclusive há uma pixação na entrada visitante do Brinco: “AAPP campeã? Só na gestão do próximo Deus”. Enquanto os pontepretanos respondem com um “Não vai subir ninguém”, diante dos vários anos que o rival padeceu nas divisões inferiores.

O Guarani se orgulha de ser o único campeão brasileiro do interior do país (1978). O clube tem seu nome em homenagem à ópera “O Guarani” do músico campineiro Carlos Gomes, por isso a associação com o mascote do índio. Enquanto a Ponte Preta se orgulha de ter sido um dos primeiros clubes responsáveis pela inclusão dos negros no futebol. Isso sempre marcou o imaginário popular de associar o Guarani com a elite. Daí o apelido pejorativo de ‘galinhas’. Inclusive já foi frequente haver milho esparramado pelo chão da entrada visitante do Majestoso para ‘receber’ os bugrinos. Por outro lado, a Ponte Preta sempre foi associada com as classes populares. Por isso o apelido antes pejorativo de ‘macacos’. Mas que passou a ser assumido pela torcida e até pelo clube de forma oficial.

Se toda grande clássico apresenta algum grande tabu, no dérbi não seria diferente. O Guarani teve entre os anos 1980 e 1990 mais craques e presença mais assíduas na primeira divisão. O lado verde ficou mais de 15 anos sem perder para o lado alvinegro. Foi aí que as provocações foram muito fartas. Diziam que “a Ponte dançou valsa”. E cantavam “Não é mole não, o Bozó comeu a Conceição!” (ou seja, um torcedor símbolo bugrino e uma torcedora símbolo pontepretana).

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Torcedor da Ponte Preta provoca os torcedores do Guarani. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

O fim do sofrimento alvinegro terminou em 2002. Justamente numa vitória na casa do rival do 4×2. Uma confusão marcante desse jogo foi que o sistema de som do Estádio Brinco de Ouro provocou os pontepretanos que na confusão se apoiaram numa grade que desabou e resultou em vários feridos.

Situação inversa ocorreu no dérbi de 2011, com vitória da macaca por 2×0, no qual o sistema de som do Estádio Moisés Lucarelli provocou os bugrinos que chegaram a incendiar o setor visitante. Fato até hoje inédito na história recente do futebol brasileiro.

A provocação tem elementos marcantes fora de campo e outros dentro de campo também. Jogadores medianos são eternamente recordados por gols históricos nos rivais. Como o argentino Gigena, que em 2003 marcou três gols nos bugrinos. Do outro lado, Medina, que em 2012 marcou um gol na semi-final do Paulistão conhecida como “o dérbi do século”, ajudando na vitória bugrina por 3×1. Jogo que teve o confronto de dois dos melhores camisas 10 recentes: Fumagalli do lado verde e Renato Cajá do lado alvinegro.

Por um lado os bugrinos vibraram muito com a vaga na final com a grande campanha do time treinado por Osvaldo Alvarez, o Vadão. Considerado “o rei do dérbi” por tê-lo disputado em ambos os lados e nunca tendo sido derrotado. Mas por outro lado os pontepretanos exaltam que levam vantagem no retrospecto recente com maior número de vitórias. Inclusive as duas últimas na casa do rival: 3×1 em 2013 e 3×2 desse ano.

Um último causo completamente extracampo que incendiou a rivalidade entre as torcidas foi durante o ano passado (portanto, mesmo sem dérbis o clima esquentou). Tudo começou quando a empresa de bebidas “Schin”, patrocinadora da Ponte Preta, divulgou uma suposta pesquisa de preferência clubística na cidade de Campinas. O resultado acusou 20% de pontepretanos e apenas 3% de bugrinos. A resposta da diretoria bugrina veio sem rodeios. No jogo seguinte no Brinco de Ouro o placar eletrônico acusava: “Não beba Schin”.

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Torcedores do Guarani. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Essa foi uma pequena lembrança de alguns acontecimentos que compreendem a rivalidade como um sentimento contínuo entre torcedores e jogadores, e algumas vezes até dirigentes. O torcedor fora de campo precisa se sentir representado pelos jogadores dentro dele. Não faz sentido haver dois times em campo se não houver também duas torcidas no estádio para representá-los. Depois de cinco anos de espera, o retorno do dérbi rendeu menos estórias do que poderiam. Por culpa da confissão de falência da segurança pública paulista e de seu aparelho judiciário ao ter copiado dos clássicos da capital a proibição aos torcedores visitantes nos estádios. Perdem muito as duas torcidas campineiras. E perde ainda mais a torcida pontepretana privada nos últimos meses de acompanhar seu time (muitas vezes no próprio estádio) por culpa de punições arbitrárias.

E vocês, que outros causos mais se lembram?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Entre Índios e Macacos: a volta do dérbi campineiro. Ludopédio, São Paulo, v. 109, n. 40, 2018.
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