96.18

Sobre o descarte e o desemprego de jogadores em tempos de futebol sustentável

Jogador de futebol é como motorista de táxi: não pode ficar parado, tem de estar sempre rodando.

Revista Placar, 4 de março de 1983.

A palavra descarte é comumente utilizada para referir-se ao ato de jogar algo fora, de desfazer-se de algum objeto. Essa palavra também tem sido utilizada na mídia esportiva especializada[1], por sindicatos[2] e até mesmo por profissionais do esporte[3], para situar a dispensa de jogadores pelos clubes.

Da parte dos clubes, a preocupação, relativamente recente, com o descarte de jogadores torna-se sutilmente visível no discurso de profissionais que trabalham na base, principalmente, dentre os psicólogos que lidam em seu cotidiano não somente com o rendimento esportivo do atleta, mas também com o preparo deste para ser dispensado do clube (DANTAS, 2011).

Essa preocupação vai ao encontro de práticas do capitalismo sustentável, nas quais o descarte consciente é também uma questão. No futebol profissional, a problemática da sustentabilidade, além de aparecer relacionada à gestão dos clubes, em campanhas que estimulam a reciclagem de alguns materiais[4], e em outras formas de convocação dos torcedores a se responsabilizarem por um (questionável) “mundo melhor”[5], também aparece dentre as formas de se conceber a produção/formação de jogadores, como explicita o então gerente das categorias de base do Botafogo de Futebol e Regatas[6]:

Porque o que a gente faz hoje na maioria dos clubes ainda, e eu me incluo, é descarte. E aí é descarte de sonho, é descarte de um indivíduo porque é uma família por trás, então a gente tem que ter uma responsabilidade nisso. E eu não sei se a gente está tendo essa responsabilidade. Eu, particularmente, acho que ainda não. A gente ainda está começando a ter essa preocupação, mas eu acho que a gente precisa dar mais luz a esse ponto” (Eduardo Freeland, Museu do Futebol, 2015) [7].

Como destacou o gestor, atualmente, não “pega bem” no mercado da bola o simples descarte de jogadores, sem “responsabilidade social (empresarial)”. Nesse discurso da sustentabilidade, os clubes são convocados a se responsabilizar pelo dano causado àqueles jogadores que produz e descarta. Convocados no sentido de serem demandados por pressão social, do Ministério Público do Trabalho e, principalmente, pelas tendências de um mercado internacional.

Não é novidade que no Brasil (e não somente), a quantidade de atletas que saem das categorias de base por ano ultrapassa em muito a capacidade de absorção pelo mercado. No entanto, muitos jogadores continuam circulando entre os clubes, ou por fora deles, em tentativas de se estabelecer na profissão.

De maneira geral, notam-se dois movimentos na circulação de jogadores que se conectam com base no valor de sua imagem: a circulação impulsionada pelo valor alto da imagem do jogador. É o caso não somente dos jogadores famosos, mas também das “promessas” – jogadores novos que se destacam em um clube ou campeonato e, por isso, são impulsionados no mercado pela probabilidade, pela aposta de um bom contrato porvir.

Há também a circulação produzida pela dispensa, pelo descarte, pelos jogadores que persistem na profissão apesar das adversidades. Esse segundo circuito é o lugar, embora não único, de jogadores que saem das categorias de base e “somem” no mercado, mas que ali estão para dinamizá-lo. Essa segunda forma de condução no mercado se intensifica no futebol neoliberal, uma vez que desligar-se de um clube torna-se mais simples.

Esses jogadores anônimos, em sua maioria, atuam em clubes considerados pequenos quanto ao número de torcedores, títulos, expressividade e de anos em atividade. São aqueles de valor de imagem baixo ou inexistente, que não circulam ou passam despercebidos nas grandes vitrines do futebol nacional e/ou mundial, são os que complementam sua renda com outras atividades por não conseguirem viver apenas do que ganham com o futebol profissional, atuando no futebol amador, como auxiliar de preparadores físicos, operadores de telemarketing, motoboys. Enfim, os que circulam entre ser e não ser jogador de futebol profissional, entre empreender-se ou não nesse mercado (DANTAS, 2017).

flafelipe_wr_270708
O goleiro Felipe já defendeu o Corinthians e o Flamengo e hoje circula por outros mercados futebolísiticos. Foto: Wander Roberto/Vipcomm.

No início, no meio ou no final da carreira, há, inevitavelmente, entre os anônimos, essa circulação entre o ser e o não ser: muitos recém-saídos das categorias de base, outros já saídos há algum tempo, mas que permanecem circulando em clubes e campeonatos de pouca repercussão midiática, e, ainda, aqueles que, após um período de breve fama, seguem no mercado, retornando a esse segundo circuito enquanto se preparam para exercer outras atividades. O mercado faz circular, produz visibilidades, define condutas, situa o “bom produto”. E o jogador empreendedor de si deve neste mercado organizar sua pequena, média ou grande empresa[8].

Enfim, por mais que se tente mapear esses momentos (e os movimentos) da vida desses indivíduos, não há como universalizá-los. Cada um tem suas histórias, particularidades, percorrem seus próprios caminhos nesse mapa. Caminhos que se cruzam a todo tempo aqui e ali e que não são traçados apenas por esses jogadores, com base, quer em sua habilidade, quer no seu assujeitamento às necessidades do futebol neoliberal.

No início dos anos 1970, Afonsinho conta que, durante o seu enfrentamento com a diretoria do Botafogo, que não o deixava jogar e nem liberava seu passe por questões políticas, o preparador físico do clube na época lhe emprestou uma bola e alguns cones para que continuasse a treinar. Ele continuou a treinar durante o tempo que esteve com seu passe preso ao Botafogo; treinando sozinho até conseguir a liberação de seu passe[9].

No ano de 2015, para não perder o preparo físico durante um período de desemprego, após ser despedido do Flamengo, o goleiro Luiz Felipe Ventura dos Santos, mais conhecido como Felipe, possuía um staff próprio, contratado para mantê-lo treinado e em forma, de maneira similar aos treinamentos do clube, para assumir prontamente a sua posição em alguma oportunidade de emprego. Naquele período, o goleiro contratou um técnico particular com auxiliares para treinos técnicos e físicos, quatro horas por dia, fazendo dieta e reeducação alimentar, chegando a estar mais em forma durante seu período sem clube do que quando atuava pelo Flamengo, segundo afirmou o preparador físico em reportagem[10].

Na época de Afonsinho, o preparo físico já era importante, embora o ritmo e as referências de jogo do futebol fossem outros. De Afonsinho até Felipe, a valorização e o investimento no preparo físico dentro dos clubes se intensificaram, assim como a necessidade de dedicação exclusiva ao futebol pelo aumento da competitividade. Afonsinho cursava medicina na UFRJ paralelamente à carreira de jogador de futebol de clube de primeira divisão, algo distante da situação de Felipe, jogador com dedicação exclusiva e condições de se manter em treinamento de alto rendimento mesmo sem emprego.

No entanto, a realidade de Felipe é uma exceção se comparada à da maioria dos jogadores da atualidade, que circulam mais entre os clubes e fora deles, em contratos de três meses, jogando no mesmo ano na segunda e na terceira divisão de campeonatos locais e em campeonatos amadores. Alguns jogadores nessa situação de desemprego sazonal recorrem às equipes de jogadores sem contrato, mantidas por sindicatos de atletas que oferecem treinamentos para jogadores profissionais (DANTAS, 2017).

felipe
Reação do goleiro Felipe quando jogava pelo Flamengo ao saber que time havia sido desclassificado da Libertadores de 2012. Foto: Vipcomm.

No jogo do futebol neoliberal e sustentável o jogador é convocado a aprender a se ver como capital humano[11], nesse sentido o jogador desempregado é convocado a estar sempre ocupado, em movimento. Cabe-lhe o aprimoramento constantemente de sua técnica e inteligência de jogo, e empreender-se nesse competitivo mercado em busca da sonhada oportunidade.

O jogador deve ser resiliente: saber se conduzir diante das adversidades, tornando-se adaptável às circunstâncias difíceis. Segundo Oliveira (2013), a resiliência se atrela à sustentabilidade e ao empreendedorismo, refazendo o lugar da “vítima” em “negociador”. É o suportar violências, dores, sofrimentos, sendo flexível e melhorando sua conduta esperada para ser incluído, enfim, saber manejar-se.

No caso do jogador desempregado, à sua conduta resiliente é acrescida a recomendação relativa à prevenção de degradação para continuar sempre pronto a servir (o que inclui as contusões, a boa conduta, os relacionamentos gerais dentro do clube e na sua comunidade). A sustentabilidade, a resiliência e a prevenção à degradação situam o empreendedorismo no qual se encontra capturado o aspirante a jogador.

O mercado exige do jogador desempregado a mesma conduta e cuidados do corpo que ele teria trabalhando em um clube. Mas os jogadores não fazem isso porque assim está escrito no contrato, o fazem porque sabem que sem isso as chances de voltar a jogar profissionalmente diminuem. Mesmo os jogadores mais ou menos famosos prestam contas em suas mídias sociais sobre como cuidam de seu corpo e o que fazem durante as férias para se manter em forma. Em suma, o desemprego é sempre eminente, mas estar desocupado é algo raro para quem quer manter-se na profissão.

Em tempos nos quais a liberdade de mercado é um imperativo (não somente para o jogador de futebol), cabe pensar que liberdade é essa que nos compele a viver para o trabalho e nos aprisionamentos que nos enlaçam de contrato em contrato com a desculpa de sermos livres.

Referências bibliográficas:

DANTAS, Marina de Mattos. Futebol de base e produção de subjetividade: o psicólogo do esporte e a formação do atleta contemporâneo. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Programa de Pós Graduação em Psicologia Social, Rio de Janeiro. 2011. 106f.

DANTAS, Marina de Mattos. Cartografias de um campo invisível: os anônimos jogadores de futebol. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais., São Paulo. 2017. 252f.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

OLIVEIRA, Salete. Política e resiliência – apaziguamentos distendidos. In: Revista Ecopolítica n. 4. Revista quadrimestral do projeto temático FAPESP, PUC-SP, set./dez., 2012. pp. 105-129. Disponível em: < http://revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/article/view/13067/9568.pdf >. Acesso em: abr. 2016.

[1] É possível encontrar alguns exemplos desses usos pela mídia especializada nas seguintes reportagens:

“Thiago Silva e Jefferson são descartados por Dunga após reclamações públicas”. Disponível em: http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2016/03/03/apos-reclamacoes-thiago-silva-e-jefferson-sobram-com-dunga-na-selecao.htm;

“Manchester United pode arrecadar 92 milhões de euros em descarte de quatro jogadores”. Disponível em http://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/futebol-internacional/2016/07/16/noticia_futebol_internacional,339747/manchester-united-pode-arrecadar-92-milhoes-de-euros-em-descarte-de-quatro-jogadores.shtml;

“Base valorizada, craques descartados: grupo do Bota respeitará orçamento”. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/futebol/times/botafogo/noticia/2015/01/base-valorizada-craques-descartados-grupo-do-bota-respeitara-orcamento.html.

[2] “Sindicato define desemprego no futebol como “descarte de homens”. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/esportes/noticia/2015/07/sindicato-define-desemprego-no-futebol-como-descarte-de-homens-4794569.html.

[3] “Minha percepção sobre o futebol”. Disponível em: http://industriadebase.com/2016/06/17/minha-percepcao-sobre-o-futebol/.

[4] É possível encontrar exemplos dessa prática em alguns clubes. A dois anos a Federação Paulista de futebol estimula entre seus clubes a troca de ingressos por garrafas PET em alguns jogos através da campanha Futebol sustentável. Disponível em:  http://www.futebolpaulista.com.br/Noticias/Detalhe.aspx?Noticia=997

[5] Campanhas de doação de sangue também são ações bem comuns nos clubes.

[6] Desde o início de 2017, Eduardo Freeland é diretor das divisões de base do Cruzeiro Esporte Clube.

[7] MUSEU DO FUTEBOL. A formação integral do atleta. 10 ago. 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cDe6yrrEhh4&feature=youtu.be&utm_campaign=gt5_palestra_-_eduardo_freeland&utm_medium=email&utm_source=RD+Station.

[8] Sobre a relação do jogador anônimo com o empreendedorismo de si, ver: DANTAS, Marina de Mattos. Cartografias de um campo invisível: os anônimos jogadores de futebol. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais., São Paulo. 2017. 250f.

[9] Afonso Celso Garcia Reis, mesa “Engajamento, democracia e bom senso”, II Simpósio Internacional de Estudos sobre Futebol, Museu do Futebol, São Paulo, 2014. Parte dessa fala de Afonsinho está disponível em: http://www.ludopedio.org.br/entrevistas/afonsinho/

[10] Felipe passou cinco meses sem clube naquele ano, até ser contratado pelo Figueirense.

[11] Em Nascimento da Biopolítica, Foucault analisa o deslocamento da noção de trabalho como venda de uma quantidade de tempo e força em troca de remuneração, para a noção neoliberal do indivíduo como “sujeito econômico ativo” (FOUCAULT, 2008, p.308), portador de um capital humano que deve ser gerenciado, no sentido da expansão constante de seus potenciais, o que ampliará a sua possibilidade de renda. Tal capital é composto por elementos inatos e adquiridos desde a infância por intermédio dos investimentos em saúde, alimentação, afetividade, sociabilidade, entre outros. Dessa maneira, dimensões não quantificáveis da vida passam a ser entendidas como investimento.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 15 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Marina de Mattos Dantas

Psicóloga (CRP 04/28.914). Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP (com estágio pós-doutoral em Estudos do Lazer na UFMG) e mestre em Psicologia Social pela UERJ. Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisadora no Grupo da Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG), no Grupo de Estudos Socioculturais em Educação Física e Esporte (GEPESEFE/UEMG), no Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social do Esporte (GEPSE/UFMG) e no Grupo de Trabalho Esporte e Sociedade do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO). Compõe a diretoria da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP/2024-2025). É produtora no Programa Óbvio Ululante na Rádio UFMG Educativa e colunista no Ludopédio.

Como citar

DANTAS, Marina de Mattos. Sobre o descarte e o desemprego de jogadores em tempos de futebol sustentável. Ludopédio, São Paulo, v. 96, n. 18, 2017.
Leia também:
  • 171.6

    Futebol e Negritudes – voltando ao campo

    Bárbara Gonçalves Mendes, Danilo da Silva Ramos, Marina de Mattos Dantas, Natália Silva, Ricardo Pinto dos Santos
  • 163.15

    Família, paternidade e “o psicológico” na Copa do Mundo de 2022

    Gustavo Andrada Bandeira, Marina de Mattos Dantas
  • 144.34

    Até quando carreiras esportivas serão edificadas sobre o silenciamento e sofrimento de mulheres?

    Marina de Mattos Dantas, Mauro Lúcio Maciel Júnior