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Deuses do Futebol – Paulinho, Exu e São Bento

Guilherme Trucco 25 de julho de 2021
Paulinho Exu
Paulinho. Fonte: Reprodução/Mídias sociais do jogador

Este é o artigo número 10 da série “Deuses do Futebol”, no qual o autor busca fazer o sincretismo de jogadores míticos brasileiros, com os santos e entidades cultuados no Brasil em diversas religiões.

Paulinho, atacante da base do Vasco da Gama, atualmente no elenco brasileiro que disputa o futebol masculino nas olimpíadas de Tóquio, tem consistentemente falado sobre intolerância religiosa. É difícil ver um jogador se expor na mídia falando sobre temas complexos e muitas vezes impopulares, e falar sobre as religiões de matriz africana é entrar em mais um dos preconceitos estruturais velados que existem no Brasil, difíceis de quebrar.

Paulinho ainda chega de frente, falando sobre o orixá mais controverso incompreendido pela maioria, que é Exu. Como é de prache na colonização, a cultura do escravizado foi sendo dizimada, junto com seus corpos. Sua religiosidade é colocada como algo a ser punido severamente, sendo Exu, talvez por suas cores, e também por suas características complexas, como um orixá que convive em igual medida com o bem e com o mal, e tira daí suas capacidades, saberes e aprendizados, foi logo taxado pelo catequizador como o equivalente ao diabo na religião católica. Logo, a prática do candomblé, ou da umbanda, que louvam Exu como um de seus orixás, são “tudo macumba”, são “coisa do demo”, e devem ser evitadas a todo custo. Esse é o discurso preconceituoso e proselitista que se entranhou em grande parte do povo brasileiro.

Eis que vem Paulinho é pede justamente para Exu iluminar o Brasil. Como assim?

Exu é mesmo um dos orixás mais complexos, e por isso mesmo talvez o mais interessante. Pego o toque de letra de Paulinho, e aproveito para falar um pouco mais sobre Exu. Quem sabe, desmistificar um pouco o senhor das encruzas.

Paulinho Exu
Fonte: Mídias sociais do atleta.

De tudo que já escutei no terreiro, li e pesquisei sobre Exu, o campo que acredito seja o mais interessante para compreender Exu, seja a capoeira. A prática da capoeira é exusíaca em si. Sua ética de uma arte que ao mesmo tempo é dança, é brincadeira, é cantoria, é fé e é luta, através da malandragem, da malícia e da gargalhada, compreendem bem as características de Exu.

A capoeira, através de sua ritualística e tradição, é um forte traço de resistência cultural. Apesar de passar por um processo irreversível de globalização, resultando em sua descontextualização, ainda assim, pontos importantes resistem, através do ritual da roda de capoeira, dos toques de berimbau, e das ladainhas, louvações e corridos cantados no proceder da roda jogada.

A roda de capoeira, de maneira resumida, possui três momentos em sua dinâmica: Inicia-se com o mestre, que comanda a roda, puxando o canto de ladainha. Ao seu pé, dois jogadores estão agachados, de cócoras, absorvendo a energia propagada pelo mestre durante a cantoria. Ao final da ladainha, canta-se a louvação, que são versos de chamada para o jogo. É neste momento que os capoeiras agachados ao pé do mestre utilizam de sua mandinga para fechar o corpo, e se preparam para entrar no jogo em si. Com o início da atividade, passa-se para os versos de corrido, também um jogo de pergunta e resposta, entre o mestre e os componentes da roda em torno dos jogadores. São os versos de corrido que garantem a energia da roda, enquanto ocorrem as trocas e substituições, pelo sistema de “compra” do jogo, entre os jogadores, e os capoeiras componentes da roda.

Mestre Pastinha
Mestre Pastinha entoando uma ladainha, com sua camisa do E.C. Ypiranga. Fonte: Fundação Palmares

A ladainha entoada pelo mestre é de uma poética e oralidade profunda, podendo possuir inúmeros significados. As ladainhas de capoeira são exemplos perfeitos da literatura oral popular. Até hoje cantam-se inúmeras ladainhas de autoria desconhecida, repassadas oralmente nas rodas, sendo adaptadas, modificadas, ressignificadas por cada mestre que a canta. De conteúdo geralmente cifrado, repleta de códigos que muitas vezes podem passar desapercebidos, iremos nos debruçar principalmente sobre três temáticas: ladainhas de contexto religioso, de contexto histórico, bem como a conexão das ladainhas com a literatura de cordel.

As ladainhas e o contexto religioso

Se bem a capoeira não é uma religião em si, seu aspecto ritualístico, além de suas conexões com as expressões de fé dos povos da diáspora africana, estabelecem um campo fértil de significados religiosos. Além disso, sua prática e filosofia estão intrinsecamente ligadas a alguns aspectos destas fés. Surgida na Bahia, de grande incidência Jejê-Nagô, possui forte traço do culto aos orixás dentro dos terreiros de candomblé, ao mesmo tempo que seu desenvolvimento no Rio de Janeiro conectou-se também com o culto à ancestralidade advindo dos povos banto da região de Angola e Moçambique.

Sua cultura, ao mesmo tempo profana, dançada e religiosa, lhe garante uma forte conotação popular e religiosa. Assim como as fés advindas dos povos tradicionais foram perseguidas pelo colonialismo, também a capoeira foi, inicialmente, fortemente combatida pelas autoridades imperiais, e mesmo durante o início da república. Sendo assim, um importante paralelo entre as estratégias adotadas para a resistência da prática destas religiões, e a resistência da cultura e da prática da capoeira também pode ser traçado.

Uma das principais estratégias adotadas para a resistência do culto aos orixás, foi a utilização do sincretismo religioso. Neste contexto, paralelamente, dentro da prática da capoeira e das ladainhas, é interessante notar a figura de São Bento. Presente em diversas ladainhas, bem como sendo o próprio nome dado a ritmos de toques de berimbau. A presença deste santo específico não se dá por acaso, sendo uma importante chave para interpretar alguns códigos e o contexto religioso das ladainhas na capoeira.

São Bento de Núrsia
São Bento de Núrsia. Fonte Wikipédia

São Bento de Núrsia foi um monge nascido na região da Úmbria na Itália, e viveu entre os anos 480 a 547. Seu principal milagre, considerado para sua beatificação, foi o fato de ter sido oferecido, por seus adversários dentro da igreja, um cálice de vinho envenenado. Bento, ao fazer o sinal da cruz antes de consumir o vinho, fez com que uma serpente saísse de dentro do cálice, revelando seu veneno, e assim, conseguiu escapar da morte por envenenamento. Bento ainda escapou do envenenamento uma segunda vez, quando lhe ofereceram um pão envenenado, e o monge, novamente abençoando o alimento, ofereceu o pão à um corvo.

Dentro da prática do Candomblé, São Bento é majoritariamente sincretizado com Omulu, ou ainda com Obaluaiê, por serem os orixás relacionados com a cura. Entretanto, o sincretismo não se trata de uma regra, e sim de um conjunto de analogias criado através de traços de semelhança entre as crenças. Dessa forma, no contexto da capoeira, pode-se compreender melhor a relação com São Bento, e como este santo dialoga com a prática e a filosofia da capoeira.

Para começar a compreender este diálogo sincrético, devemos começar pelos toques de berimbau. Talvez os mais tocados dentro da capoeira sejam São Bento Grande, e São Bento Pequeno. Esta diferença entre “grande” e “pequeno” pode ser facilmente notada no ritmo. São Bento Pequeno, também referido por Mestre Pastinha como Toque de Angola, possui um ritmo mais lento, e é utilizado para o jogo da capoeira angola propriamente dita, que possui uma dinâmica mais gingada, ou dançada, mais “lenta”, priorizando o controle do corpo, e não tanto os movimento acrobáticos.

No contexto das ladainhas, existe aí um conteúdo cifrado, que é a diferenciação entre o santo “grande”, que corresponde à imagem do santo que existe dentro de igrejas, oficial, mais imponente, e o santo “pequeno”, que se refere às imagens dos santinhos de fora, das ruas, dos oratórios humildes. Neste cenário, o São Bento “não oficial”, o das ruas, é o mais confiável para os capoeiras, como podemos ver na ladainha abaixo:

Estava lá no pé da cruz
Fazendo minha oração
Quando apareceu um negro
Pintando imagem de um cão

Chamei por Nossa Senhora
Divina da Conceição
Chamei por São Bento Grande
São Bento Pequeno apareceu
Camarada

 

Exu e seu porrete, o Ojé
Exu e seu porrete, o Ojé. Fonte: Caribé

Na ladainha acima, o capoeira, na presença do cão (figura para o diabo), chama pela proteção de São Bento, ao ponto que se o “grande” não intercede por ele, quem aparece em seu socorro é o santo “pequeno”. Nesse ponto, um importante cruzo com o orixá Exu é possível de ser traçado. Exu é, por definição, o orixá das ruas. Ele é o orixá dos caminhos, das encruzilhadas, porque ele é aquele quem faz a conexão entre o mundo sagrado dos orixás, e o mundo dos vivos. Por essa característica, de caminhar entre os mundos, trata-se de um orixá ambíguo. Ao mesmo tempo profano e religioso, brincalhão, cheio de malícia, controverso. É preciso saber lidar com Exu, pois seus poderes podem ser utilizados tanto para o bem quanto para o mal, dado que Exu não faz juízo de valor, ele apenas é conhecedor dos caminhos. Uma das histórias que definem Exu, dentro da mitologia e fé iorubá, o define exatamente como o Orixá das ruas, das encruzilhadas:

“Exu não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha rio, não tinha profissão, nem artes, nem missão. Exu não tinha morada. Exu vagabundeava pelo mundo sem paradeiro. Então um dia Exu passou a ir à casa de Oxalá. Ia à casa de Oxalá todos os dias. Na casa da Oxalá, Exu se distraía, vendo o velho fabricando seus seres humanos. Muitos e muitos também vinham visitar Oxalá, mas ali ficavam pouco, quatro dias, oito dias, e nada aprendiam. Traziam oferendas, viam o velho orixá, apreciavam sua obra e partiam. Exu ficou na casa de Oxalá dezesseis anos. Exu prestava muita atenção na modelagem, e aprendeu como Oxalá fabricava as mãos, os pés, os olhos, o pênis dos homens, as mãos, os pés, a boca, os olhos, a vagina das mulheres. Durante dezesseis anos ali ficou ajudando o velho orixá. Exu não perguntava. Exu observava. Exu prestava atenção. Exu aprendeu tudo.

Um dia Oxalá disse a Exu para ir postar-se na encruzilhada por onde passavam os que vinham à sua casa. Para ficar ali e não deixar quem não trouxesse uma oferenda a Oxalá. Cada vez mais havia mais humanos para Oxalá fazer. Oxalá não queria perder tempo recolhendo os presentes que todos lhe ofereciam. Oxalá nem tinha tempo para as visitas. Exu tinha aprendido tudo e agora podia ajudar Oxalá. Exu coletava os ebós para Oxalá. Exu recebia as oferendas e as entregava a Oxalá. Exu fazia bem o seu trabalho e Oxalá decidiu recompensá-lo. Assim, quem viesse à casa de Oxalá teria que pagar também alguma coisa a Exu. Exu mantinha-se sempre a postos guardando a casa de Oxalá. Armado de um ogó, poderoso porrete, afastava os indesejáveis e punia quem tentasse burlar sua vigilância. Exu trabalhava demais e fez ali a sua casa, ali na encruzilhada. Ganhou rendosa profissão, ganhou seu lugar, sua casa. Exu ficou rico e poderoso, morando na rua. Ninguém mais poderia passar pela encruzilhada, sem pagar alguma coisa a Exu.”

Mitologia dos Orixás – Reginaldo Prandi

Dessa forma, quando o capoeira prioriza o São Bento “da rua”, em detrimento do São Bento oficial da igreja, ele estaria falando do orixá da rua, ou seja, Exu. A filosofia e a prática da capoeira lidam com este código de conduta de Exu. Trata-se da ética da brincadeira, da malandragem, da mandinga, da gargalhada. O capoeira, como preto escravizado que necessitava de estratégias para fugir de seu cativeiro, atua pelos caminhos da finta, das frestas, da simulação. O capoeira lida com a ginga de corpo para ludibriar, não se sabe se está dançando ou aplicando um golpe, ele conhece todos os caminhos e possibilidades do corpo, e é através destes domínios que ele é capaz de vencer o poder maior opressor, dotado de armas e aparatos. Ainda sobre a passagem acima, percebe-se que Exu aprende o conhecimento de Oxalá não através de ensinamentos repassados de forma didática e racional, pelo contrário, Exu aprende através apenas da observação, da observação, através do conhecimento prático. Trata-se, portanto, da supremacia da esperteza como engenho do corpo, sobre a pretensa superioridade racional colonizadora.

Neste contexto, pode-se traçar um paralelo importante com São Bento, sincretizando-o com Exu. Ao enganar a morte, e escapar de um envenenamento, o santo católico mostra-se possuidor de malícia, da capacidade de reconhecer uma emboscada armada através do veneno, que por si só é um signo de malícia, de enganação, pois trata-se de uma arma dissimulada. Teríamos, portanto, o Toque de Angola, ou São Bento Pequeno, como um instrumento rítmico que louva a ética de Exu, o orixá das ruas, das encruzilhadas, ambíguo, possuidor de malícia, da brincadeira, do drible, da gargalhada, e capaz de fechar ou abrir o corpo de quem possuir a mandinga para tal tarefa.

Ainda para ilustrar esta conexão entre São Bento e Exu, podemos citar a ladainha abaixo, onde conclama-se o barravento de São Bento. No candomblé, o toque (de atabaque) de barravento, é usado para baixar o orixá de cabeça no terreiro (não necessariamente Exu, mas qualquer que seja o orixá de cabeça do babalorixá).

Olha valha-me Deus sinhô São Bento
Eu vou jogar meu barravento
Olha valha-me Deus sinhô São Bento (coro)
Eu vou jogar meu barravento

Em algumas gravações, Mestre Pastinha ainda adiciona os seguintes versos a esta ladainha:

eu tanto jogo para cima
também jogo para o chão

Algumas outras analogias importantes podem ser feitas entre São Bento e Exu. Dentro da iconografia de São Bento, está sua representação sempre portando seu cajado, bengala ou uma vareta de disciplina, ao passo que Exu possui como sua principal ferramenta seu cajado em tridente (na umbanda), que representa a encruzilhada, ou seu porrete chamado Ojó (no candomblé), que Exu utiliza para proteger a encruzilhada. Na capoeira temos o berimbau, instrumento que guarda toda a mandinga de seu mestre. Na ladainha abaixo, gravada por Mestre Pastinha, temos essa possível conexão entre o berimbau-ojó-cajado de Exu e São Bento:

Eu vou ler o bê-a-bá
bê-a-bá do berimbau
a cabaça e o caxixe
com dois pedaços de pau
aí está o berimbau
berimbau é instrumento
que toca numa corda só
faz tocar São Bento Grande
Toca Angola em som maior
agora acabei de crer
Berimbau é o maior

 

Medalha de São Bento. Fonte Wikipédia

Outra simbologia importante que conecta São Bento a Exu, é a Medalha de São Bento. Trata-se de uma medalha de origem incerta, à qual foi atribuído o poder de proteção de igrejas. Sabe-se que na Baviera, em 1647, por ocasião da condenação de algumas bruxas locais, elas relataram não possuir poder algum quando dentro da Abadia de Metten. As autoridades, intrigadas, verificaram a presença desta medalha atribuída a São Bento, entalhada nas paredes e pilares da abadia. Por outro lado, Exu é o orixá protetor dos terreiros, sendo geralmente colocado do lado de fora, à entrada das casas de santo e terreiros (assim como ficava do lado de fora da casa de Oxalá). Por sua vez, a cruz católica entalhada na Medalha de São Bento, é associada à encruzilhada, local de Exu. A encruzilhada como símbolo do conhecimento de todos os caminhos, pode ser compreendida no corrido abaixo:

Ai, ai, ai
São Bento me chama
Ai, ai, ai
São Bento me leva
Ai, ai, ai
São Bento me prende
Ai, ai, ai
São Bento me solta
Ai, ai, ai
Sinhô São Bento

Finalmente, a maior conexão entre São Bento e Exu se dá na característica de Exu mais conhecida como Legbara. Segundo conta a mitologia iorubá, Exu é o orixá que deve comer antes de qualquer outro, sendo assim Legbara a boca que tudo come.

Exu era filho de Iemanjá e Orunmilá, irmão de Ogum, Xangô e Oxóssi. Exu comia de tudo, e sua fome era incontrolável. Comeu todos os animais da aldeia em que vivia. Comeu os de quatro pés e comeu os de pena. Comeu os cereais, as frutas, os inhames, as pimentas. Bebeu toda a cerveja, toda a aguardente e todo o vinho. Ingeriu todo o azeite de dendê e todos os obis. Quanto mais comia, mais fome Exu sentia. Primeiro comeu tudo o que mais gostava, depois começou a devorar as árvores, os pastos, e já começava a engolir o mar. Furioso, Orunmilá compreendeu que Exu não pararia e acabaria por comer até mesmo o Céu. Orunmilá pediu a Ogum que detivesse o irmão a todo custo. Para preservar a Terra, os seres humanos e os próprios orixás, Ogum teve que matar o próprio irmão.

A morte, entretanto, não aplacou a fome de Exu. Mesmo depois de morto, podia-se sentir sua presença devoradora, sua fome sem tamanho. Os pastos, os mares, os poucos animais que restavam, todas as colheitas, até os peixes iam sendo consumidos. Os homens não tinham mais o que comer e todos os habitantes da aldeia adoeceram de fome, um a um, foram morrendo. Um sacerdote da aldeia consultou o oráculo de Ifá e alertou Orunmilá quanto ao maior dos riscos: Exu, mesmo em espírito, estava pedindo a sua atenção. Era preciso aplacar a fome de Exu. Exu queria comer. Orunmilá obedeceu ao oráculo e ordenou: – Doravante, para que Exu não provoque mais catástrofes, sempre que fizerem oferendas aos orixás deverão em primeiro lugar servir comida a ele. – Para haver paz e tranquilidade entre os homens, é preciso dar de comer a Exu, em primeiro lugar.

Se temos em Mestre Pastinha, o conhecido epíteto “Capoeira é tudo que a boca come”, temos no mito de São Bento desvendando o veneno no vinho, e no pão, uma relação muito próxima com o significado da comida como fonte de energia vital, do Axé, e como portal para outros mundos. A relação do milagre de São Bento em antecipar o veneno no vinho é relatada no corrido abaixo:

Esta cobra me morde
Sinhô São Bento
Oi o bote da cobra
Sinhô São Bento
Oi a cobra mordeu
Sinhô São Bento
O veneno da cobra
Sinhô São Bento
Oi a casca da cobra
Sinhô São Bento
õ que cobra danada
Sinhô São Bento
ô que cobra malvada
Sinhô São Bento
Buraco velho
Sinhô São Bento
Tem cobra dentro
Sinhô São Bento
Oi o pulo da cobra
Sinhô São Bento
Ê cumpade.

Exu, como o orixá que deve comer antes de todos, só trabalha mediante a presença de um ebó (prática do candomblé de ofertar aos orixás um despacho com as comidas de preferência de cada entidade), sendo no caso de Exu o ebó preferido a galinha preta com farofa, e marafo, que deve ser despachado em uma encruzilhada. Como narra Waldeloir do Rego em uma passagem sobre Mestre Canjiquinha:

“Já desde administrações anteriores, quem primeiro montou exibição no referido local foi o capoeira Canjiquinha (Washington Bruno da Silva), que é de Iansan, sem contudo “ser feito”, mas descende de avós africanos, com tia e irmã mães de santo e em plena atividade litúrgica. Pois bem, uma vez montada a sua capoeira, com exibições com dias e horas marcados e também sendo o escolhido para as exibições oficiais, começou então a “queima do ponto”, o envio de ebós e a presença de Exu em tôdas as exibições, de modo que à hora do jôgo havia sempre um aborrecimento. Pressentindo o que estava acontecendo, Canjiquinha corre à sua irmã Lili (Carlinda da Silva Sá) que é mãe de santo e pede para “olhar”, o que foi feito através do “jôgo”, que descortinou tudo, indicando o caminho a seguir, também por meio de um ebó. Com isso se inicia a troca de ebós, pois o capoeira que deu comêço à coisa, que eu me reservo declinar seu nome, queria derrubá-lo a todo custo.”

Dessa forma, constitui-se um paralelo sincrético entre São Bento e Exu, como forte fio condutor da religiosidade dentro das ladainhas de capoeira. Entretanto, não apenas as ladainhas que citam São Bento possuem a conotação religiosa com Exu. De fato, um grande número de ladainhas possui algum aspecto de malandragem, astúcia e malícia, dentro de seus códigos, e dessa forma, possuem de maneira intrínseca a louvação à ética de Exu.

Eu comprei uma galinha
Por quatro mil e quinhento
Na ladêra de São Bento
Não bem peguei na galinha
Já os pinto piava dento.

Aqui, a ladeira de São Bento é mesmo o nome de uma rua da cidade do Salvador. Chama-se assim por ser uma pequena ladeira, que dá a cesso ao Mosteiro de São Bento.

Waldeloir do Rego faz a distinção das ladainhas de sotaque e desafio, nelas temos a mensagem cifrada, “sob várias maneiras, às pessoas que não se envolvam onde não podem, sobretudo mostrando que o tamanho e a força não funcionam muito, valendo apenas a inteligência, a habilidade”. Aqui temos alguns exemplos:

1.


Oia lá siri de mangue
Todo tempo não um
Tenho certeza qui você não güenta
Com a presa do gaiamum
Quando eu entro você sai
Quando eu saio você entra

2.

Era eu era meu mano
Era meu mano mais eu
Eu vi a terra molhada
Mas não vi quando choveu
Era eu era meu mano
Era meu mano mais eu
Ele alugô uma casa
No fim do mês
Nem ele pagô nem eu.

3.

Anu não canta in gaiola
Nem bem dentro nem bem fora
Só canta no formiguêro
Quando vê formiga fora
Camarado
Camaradinho ê
Camarado

4.

Não se mêta meu irmão
Qui êsse home é valente
Na usina Caco Velho
Já matô Chico Simão
Vamo imbora camarado
Vamo saí dessa jogada
A festa é muito boa
Mas vai tê muita pancada.

5.

Camaradinho é hora, é hora
Ê é hora, é hora camarado
Aquinderréis ê âquinderréis
Camarado
Querem me pegá
Ê querem me pegá.
Camarado.

Neste último caso, o termo “aquinderréis” trata-se de uma corruptela para de “aqui del-Rei”. Trata-se de uma oração elíptica, onde falta o verbo acudam, que formaria “acudam aqui del-Rei”. Era a maneira de se pedir socorro antigamente, por se entender el-Rei o único capaz de socorrer e dar proteção armada a alguém. Trata-se, portanto, de uma ladainha ou corrido em que o mestre avisa sobre a chegada da repressão, e deve-se interromper a roda, adotando a fuga “é hora, é hora”.

Outro personagem louvado nas ladainhas de capoeira que ilustra o caráter de malandragem astuta de Exu é o Rei Salomão, sempre enfatizando sua esperteza como grande vantagem. Algumas ladainhas:

1.
Minino quem foi seu meste
Meu meste foi Salomão
Andava de pé pra cima
Cum a cabeça no chão

Fui discipo qui aprende
Qui in meste eu dei lição
O segrêdo de São Cosme
Quem sabe é São Damião

Minino quem foi teu meste?
Minino quem foi teu meste?
Meu meste foi Salomão
Eu sô dicipo qui aprendo

Sô meste qui dô lição
O meste qui me insinô
Stá no Engenho da Conceição
A êle só devo é dinhêro

Saúde e obrigação
O segrêdo de São Cosme
Quem sabe é São Damião
Camarado.

2.

Riachão stava cantando
De Coité a Pimentêra
Quando apareceu um nêgo
Dizendo desta manêra

Você disse que ama a Deus
O teu Deus te enganô
Salomão êle fêz rês
São Pedro sempre soldado

Fêz um rico outro pobre
Outro cego, outro alejado
Salomão êle fêz rês
Porque êle merecia

São Pedro um simples soldado
Porque a êle lhe cabia
Fêz um rico, outro pobre
Disso tudo Deus sabia.

Neste caso, por sua sabedoria e astúcia, Salomão também seria uma espécie de Exu. Um símbolo muito difundido dentro da capoeira é o Signo Salomão, ou mais popularmente conhecido com Cinco Salomão (corruptela). Adaptado da bíblia, é uma medalha com uma estrela seis pontas, ou em alguns casos de cinco pontas. Este símbolo é muitas vezes riscado no chão por capoeiras no momento da louvação antes de entrar na roda, para fechar o corpo. Trata-se, portanto de um ponto riscado de Exu.

Para finalizar, a malandragem da capoeira também está muito associada à brincadeira, podendo ser encontrada em algumas ladainhas em referência a Cosme e Damião, santos católicos sincretizados no Candomblé e na Umbanda com os Ibejis (orixás crianças).

“Nas residências familiares, há o célebre caruru de São Cosme, qué em algumas casas se dá um tom meio ritualístico, dentro do espírito africano. Assim, antes de tirar a comida para colocar no alguidar dos santos, tira-se um pouco de cada coisa, embrulha-se em fôlhas de bananeira e se joga numa encruzilhada para Exu. Após então é que se tira a do santo e a dos sete meninos, que é colocada numa bacia de alumínio no chão, vindo os referidos meninos, levantando e arriando três vêzes com o seguinte canto:

Vamos levantá
O Cruzêro de Jesus
Aê, aê
Aos pés da Santa Cruz.

Fiado isso, servem-se do que há na bacia, ao som das seguintes cantigas:

Dois’ dois
É minino vadio
Dois dois
Ele quelé vadiá

Quando eu vim
De lá de cima
Encontrei São Damião
Carregadinho de cabaça
Com as cabaças na mão
Underê Damião
Com as cabaças na mão

Underê Damião
Com as cabaças na mão.

Cosme Damião
Doum e Alabá
Ajude a vencê
Essa batalha riá.”

Para fechar, uma ladainha com o galo preto, símbolo referência de Exu:

Ê aquinderreis
Ê aquinderreis
Camarado
Ê galo cantô
Ê galo cantô
Camarado
Ê cocorocô
Ê cocorocô
Camarado
Ê vamo imbora
Ê vamo imbora
Camarado

Paulinho
Paulinho em ação nas Olimpíadas. Fonte: Reprodução/mídias sociais do atleta

Paulinho, como o atacante que tem a brincadeira, a gargalhada e a malandragem de Exu, que abre os caminhos nas encruzas para que o brasileiro conheça mais sobre sua cultura, já faz parte dos Deuses do Futebol.

 

Referências bibliográficas

Livros

Waldeloir do Rego – Capoeira Angola Ensaio Sócio-Etnográfico

Reginaldo Prandi – Mitologia dos Orixás

Luís Camara Cascudo – Literatura Oral no Brasil

Edison Carneiro – Folguedos Tradicionais

Mário de Andrade – Cantos de Feitiçaria no Brasil

Publicações Acadêmicas

Ana Paula Rezende Macedo – O Misticismo e sua (re) significação – um estudo através das Cantigas da Capoeira Angola

Pedro Paulo de Freitas Braga – Capoeira Angola: mandigas de criação e representações de luta

Carla Alves de Carvalho Yahn – A mandinga versada da Capoeira Angola

César Paulo Silva – As ladainhas e os corridos da capoeira Angola: Uma das formas de resistência do canto negro

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Guilherme Trucco

Escangalho a porosidade das palavras. Rabisco um Realismo de Encantaria e futebol. Filho de Xangô e Iemanjá.

Como citar

TRUCCO, Guilherme. Deuses do Futebol – Paulinho, Exu e São Bento. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 50, 2021.
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