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Diário de uma Lombardia sem futebol

Mariana Vantine de Lara Villela 19 de março de 2020

Era dia 19 de fevereiro em Milão. Um dia ensolarado, a espera de uma noite estrelada pela equipe da Atalanta, que é de Bérgamo, mas realiza seus jogos da sua primeira Champions League no estádio San Siro. Nem o mais otimista esperava tantos gols, 4 a 1! E no dia seguinte, era La Dea (como é conhecida a equipe azul e preta na Itália) que estampava todas as capas dos jornais esportivos. 

Enquanto isso, os torcedores da Internazionale, lamentaram a derrota do fim de semana para a Lazio, pois em um campeonato totalmente aberto, viram a líder Juventus se distanciar, e o time de Roma se aproximar. Por sinal, a Juve, que nessa mesma rodada, não teve piedade do Bréscia, grande rival da Atalanta. Certamente, uma semana para o torcedor do Bréscia esquecer. E o rubro-negro de Milão? Bem, esse respirou aliviado com o 1 a 0 no Torino e viu a vaga para a Liga Europa mais perto.

Naquela semana também foram confirmados os primeiros casos de COVID-19 na Itália. Até dia 20, eram apenas 3 infectados. Tudo sob controle, vida que segue. No dia seguinte, 16. Até que no dia 22, o número chegou a 79, e as autoridades decidiram cancelar o carnaval e adiar os jogos que seriam realizados nas regiões da Lombardia e Veneto, para tentar conter a propagação do vírus. 

Naquele momento, a maioria da população achava a preocupação com o Coronavírus uma “histeria” e acreditavam ser apenas uma gripe. A situação foi piorando. As medidas do Governo da Lombardia por sua vez, foram ficando mais rígidas. E, portanto, as pessoas passaram a acreditar que além de um exagero, estariam tentando tirar a alegria do povo. “E o meu futebol, como vai ficar?”

Limpeza da cidade de Veneza com esterilização por profissionais especializados para barrar a pandemia do Coronavírus na Itália. Foto: GruppoVerita.

Houve ainda uma semana de rodada da série A, com portões fechados, assim como uma parte da rodada da Champions, que consolidou a classificação da Atalanta para as quartas de finais. Sem poder ir aos estádios, os cidadãos passaram a ocupar mais ainda os bares e se reunir em casa para assistir os jogos, crianças ocuparam os parques para jogar. Sem o futebol não dá pra viver.

E a situação piorou mais ainda. Os números passaram a assustar. A declaração de Balotelli na última rodada disputada, faz cada vez mais sentido 

“Eu amo futebol mais do que você, mas jogar significa viajar de ônibus, trem, avião, dormir em um hotel, entrar em contato com outras pessoas fora de sua sociedade de convivência (…) com certeza eu nunca iria querer que minha mãe, que eu vejo todos os dias e não tem a minha idade (acabasse infectada) e, por mais que posso amar o futebol (ao qual devo tudo), não gosto e absolutamente não vou arriscar vê-la doente! E por que? Para divertir alguém? Ou para não perder dinheiro? Vamos lá, suspenda. Não brinque com a saúde”

É difícil para um apaixonado por futebol, ter que vê-lo parar. Dói. Mas o que é o futebol para além de um jogo? Não é uma bela exposição de ações coletivas? Algo que transcende os gramados e mobiliza as massas?

Que existem pessoas querendo minimizar esse esporte a uma oportunidade de obter lucro, já sabemos. O erro foi nós, cientes de que o futebol representa bem mais que isso, termos negado por um tempo a essência do mesmo. Vivemos no coletivo e nosso entretenimento individual nunca deve estar acima da vida de outras pessoas. Inclusive, pela visibilidade do futebol, deveria ser o primeiro a dar o exemplo de como cooperar para conter uma epidemia (que veio a se tornar uma pandemia).

Hoje a província de Bérgamo, vive uma condição catastrófica. Faltam leitos, os profissionais da saúde estão nos seus limites da exaustão física e mental. Quantos torcedores da La Dea não vão poder ver seu time fazer história? Como deixamos chegar a esse ponto?

Não está fácil, mas a Lombardia tenta se recuperar. A alegria do futebol agora fica por conta das reprises nos canais esportivos de jogos históricos, e nos cantos de torcida entoados nas sacadas dos prédios. Agora mais conscientes, estamos contando os dias para descobrir até onde vai a Atalanta do brilhante Ilicic, se a Inter vai conseguir encostar na Juve, se o irreverente Ibrahimovic vai conduzir uma recuperação do Milan, e se o Bréscia vai conseguir dar algum alívio no coração do seu torcedor. 

E que nunca saia de nossas cabeças, as palavras de Gramsci sobre o futebol: “o reino da lealdade humana exercida ao ar livre”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mariana Vantine

Pesquisadora de Futebol e Políticas Econômicas.Membro do coletivo internacional Football Collective.

Como citar

VILLELA, Mariana Vantine de Lara. Diário de uma Lombardia sem futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 129, n. 20, 2020.
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