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Diego Armando Buendía Maradona: o Realismo Mágico em campo e na literatura

“A gente não é de lugar nenhum até ter um dos nosso enterrado nele”

Gabriel García Márquez (Cem Anos de Solidão)

Original da América Latina, com o seu próprio tempo, sentimentos, confuso e contraditório, feito por seu povo e para seu povo, sua gente, sua alma. Tão diferente, tão genial que encantou o mundo com sua magia.

A descrição se encaixa tanto para Diego Armando Maradona quanto para a literatura do realismo mágico ou real maravilhoso. Dois dos mais originais e apaixonantes produtos da cultura latino-americana e que trataremos aqui. 

Imagem: César Zárate

O mundo deu muito pouca atenção para a América Latina e sua história, digo, uma história contada a partir de sua própria perspectiva, valores e anseios, entretanto, essa história veio à tona a partir do chamado “boom” literário da década de 60 do século XX; “boom” esse agora não apenas de multiplicidade de escritores e formas de escrita, o que já vinha ocorrendo há algumas décadas, mas principalmente um “boom” de leitores. A partir desse momento irrompeu-se aos olhos do mundo uma nova América, até então esquecida pela historiografia oficial, pois estes literatos promoviam uma luta contra o esquecimento e assim, fazendo emergir aspectos do passado que haviam sido silenciados pelas representações oficiais. História essa que muitas vezes estava escondida em pequenas aldeias, povoados ou no mundo rural.

Assim, nós, latino-americanos, tivemos a oportunidade de nos reconhecer a partir de nós mesmos e o mundo pôde enfim nos conhecer. Hoje é inconcebível falar da América sem ouvir estas vozes, pois sabemos que é impossível conhecer a Colômbia sem lermos Gabriel García Márquez, ou será que é possível conhecer a Argentina sem ouvirmos o que diz Jorge Luiz Borges? Ou Cuba sem Alejo Carpentier? Ou a Guatemala sem Miguel Argel Astúrias? Como compreender o México e seu povo sem ouvir Otávio Paz e Carlos Góngora? Ou até mesmo como compreender o Brasil sem vislumbrarmos os brasis de João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos ou Lima Barreto?

As letras latino-americanas, como afirma Angel Rama (2001, p. 239), nasceram sob a influência da civilização ibérica, mas nunca se resignaram com suas origens e jamais se reconciliaram com seu passado ibérico.

O desígnio principal dos autores latino-americanos desde as independências políticas dos países da América Latina sempre foi tornar-se independente culturalmente. Essa busca incessante pela independência e, consequentemente, o reconhecimento de uma literatura singular fez com que, na tentativa de distanciamento da cultura ibérica, as letras latino-americanas sofressem uma influência das novas metrópoles colonizadoras. Buscaram criar uma realidade própria.

Sua principal criação é o Real Maravilhoso – expressão utilizada por Alejo Carpentier desde seu primeiro livro, Écue – Ymbá – Ó, para diferenciar esse movimento do realismo mágico europeu. –, que dá a possibilidade de representação para um continente tão diverso, servindo de suporte para uma maior representatividade de uma história local na literatura latino-americana, pois como expressa a indagação de Alejo Carpentier (1985, prefácio):

“Mas o que é a História da América senão toda uma crônica da realidade maravilhosa?” A realidade americana tem que ser vista de uma forma única.

Os novos esforços dos literatos latino-americanos levam essa literatura a um reconhecimento internacional, pois, ao tratarem de peculiaridades locais, acabam por resgatar um homem universal.

Essa literatura carrega algumas características marcantes, tais como: a exploração dos cotidianos locais em sua peculiaridade, simplicidade e paradoxalmente complexidade; um tempo que jamais é linear, ganhando formas diversas; um marcante reconhecimento do valor da memória; uma linguagem própria; o entrelaçamento de uma história oficial e uma história de pessoas simples e, principalmente, o vislumbre de um futuro em perspectivas próprias que reflete o exemplo dos antepassados. Tudo isso fazendo o uso do maravilhoso.

Concomitantemente ao “boom” literário dos anos 60, nascia em Lanús na periferia de Buenos Aires Diego Armando Maradona. Este que viria ser a mais sublime encarnação da literatura do Real Maravilhoso, por ser o mais sublime representante do que é o latino-americano comum. Com infância humilde, filho de operário, brincava de futebol na infância, brincou tanto que fez dele sua brincadeira por toda vida. Com 9 anos participou de seu primeiro time Los Cebollitas, depois brincou por Argentino Juniors, Boca Juniors onde é ídolo máximo, Barcelona, Napoli onde é ídolo, herói máximo e inigualável, Sevilla e Newell’s Old Boys. Mas é na seleção argentina que Maradona atinge o ápice que um ser humano pode atingir, a devoção. 

Maradona carrega, da mesma maneira que a literatura do Real Maravilhoso, algumas características marcantes, tais como: ganhou o mundo, porém jamais deixou de ser um “pibe” local, simples e complexo; uma vida com um tempo que jamais foi linear, ganhando formas diversas; um marcante reconhecimento do valor da memória, levando com ele a memória de sua gente, a ressignificando e gerando novas memórias; uma linguagem própria, não com as letras, mas com as pernas, com dribles; dando sentido para a via e para a história de pessoas simples e, principalmente, o vislumbre de um futuro em perspectivas próprias que reflete o exemplo dos antepassados. Tudo isso fazendo o uso do maravilhoso, do impensável.

É possível, sem cometer exageros ou qualquer tipo de insensatez contemplar vida e obra de Maradona a partir da literatura, afinal, sua obra se aproxima muito da Arte. Seria possível uma aproximação com o uruguaio Eduardo Galeano, que tanto amou o futebol e admirou Maradona, rendendo a ele algumas homenagens; Borges seria também natural, expoente máximo da literatura de sua terra, quiçá de nossas terras, com sua fantástica escrita; o chileno Pablo Neruda um poeta boêmio e militante, tal como você, Dieguito; ou também Octavio Paz, da terra que Diego nos deu sua obra prima contra os ingleses, tal como Paz, por labirintos de homens e tempos. Entretanto, aqui se faz na obra do colombiano Gabriel García Márquez, mais especificamente sua obra mais importante, Cem Anos de Solidão.

O livro, tal como Maradona nos traz a inquietação, “será o maior de todos os tempos?” para muitos sim, para outros não, mas indiscutivelmente mexe com todos que se permitem ser tocados por sua magia.

Um livro que conta a história de uma aldeia fictícia, Macondo, fundada pela família Buendía. A história se passa em torno da própria família, que na medida que as gerações passam, a história se repete, com uma realidade repleta de magia e cores, com sofrimentos e paixões, um tempo que tem sua própria proporção e peso.

A incrível história dos Buendía é uma espécie de enciclopédia do imaginário latino-americano, distante das imposições europeias, toda sua magia é inacreditável para os outros e é cotidiano nestas terras. Aqui o mágico é normal e é de uma magia viver nas Américas. Mas nossa condição de latino-americanos nos faz prisioneiros de nossos múltiplos tempos.

Diego Armando Maradona, um autêntico latino-americano, um autêntico cidadão de Macondo, um de seus filhos mais legítimos, um de seus filhos mais ilustres. Viveu em seu próprio tempo, nem linear e nem cíclico, uma espécie de espiral, os acontecimentos de sua vida o jogaram contra, mas em outros momentos, a favor, algo que só cidadãos de Macondo conseguem entender. Uma vida com acontecimentos mágicos, que se fossem contadas sem imagens para provar, ninguém acreditaria, uma magia que só tem sentido nessas terras. Foi o herói máximo de seu povo, quando este povo se sentia derrotado e humilhado, em uma vitória improvável, de forma duplamente mágica, um gol driblando todo o time adversário, como se cada um que se jogava ao chão fosse um monstro que assolava seu povo, o outro, tão maravilhoso quanto, com a mão de Deus. Aqui o mágico é normal e é de uma magia viver nas Américas.

Resumo gráfico de “Cem anos de Solidão”. Imagem: Wikipédia

De todas as cores de Macondo, o azul e branco ressoou mais forte por conta da magia, de Diego Maradona. Um filho tão ilustre que poderia ser chamado de Diego Armando Buendía Maradona. Mas como nossa condição de latino-americanos nos faz prisioneiros de nossos múltiplos tempos, Buendía Maradona nos deixou, órfãos de presença, mas ricos em memória e esta, com o poder de nos transportar no tempo, para sermos agraciados com sua magia.

Obrigado Diego! Obrigado por me fazer acreditar na magia!

       

Referências

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Makchwell Coimbra Narcizo

Doutor em História pela UFU, Graduado e Mestre em História pela UFG. Atualmente professor no IF Goiano - Campus Trindade. Desenvolve Estágio Pós-Doutoral na PUC Goiás. Membro do GEPAF (Grupo de Estudos e Pesquisa Aplicados ao Futebol - UFG). Coordenador do GT Direitas, História e Memória ANPUH-GO. Autor dos livros: A negação da Shoah e a História (2019); A extrema direita francesa em reconstrução - Marine Le Pen e a desdemonização do Front National [2011-2017] (2020) dentre outros... isso nas horas vagas, já que na maior parte do tempo está ocupado com o futebol... assistindo, falando, cornetando, pensando, refletindo, jogando (sic), se encantando e se decepcionando...

Como citar

NARCIZO, Makchwell Coimbra. Diego Armando Buendía Maradona: o Realismo Mágico em campo e na literatura. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 9, 2020.
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