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Dinho, o quase jogador

Leandro Marçal 24 de outubro de 2017

Dinho era o famoso da rua desde sempre. Craque, jogava muito, diziam. Era o primeiro a ser escolhido na montagem dos times valendo um refrigerante. Eu o acompanhava à distância.

Vivia com a mãe, o pai era um turista. Sua carreira iria deslanchar a qualquer momento, profetizavam os senhores mais velhos em cima de uma cadeira de balanço.

Desde pequeno, ele já copiava linguajar e personalidade dos boleiros. Era o mundo no qual ele gostaria de viver, estava nítido. Na oitava série, jogou fora o caderno para nunca mais abri-lo. Iria atrás de seu sonho e não queria saber dessas frescuras de estudar. Aos 15 anos já andava na ponta dos pés, como quem faz exercícios para as panturrilhas. As mãos nas fotos imitavam as mesmas poses de todo atleta bem sucedido no futebol. Seu estilo era inconfundível.

Foi pra base de um time grande depois de conversar com Riba, o empresário que seduziu a família com um contrato melhor do que o primeiro oferecido por um amador qualquer. Dinho não estava nem aí, só queria saber de jogar. Depois de ter ido a um cartório pela primeira vez para reconhecer firma, preferiu se distanciar dos antigos amigos.

Se ele já era uma lenda urbana depois de sumir da escola, seu folclore aumentou quando sumiu dos campos de várzea. Tinha de cumprir uma cláusula, segundo as fofocas. Sua estreia em uma competição de categorias de base juntou toda a vizinhança ao redor de um antigo televisor na rua. Quase ninguém tinha TV por assinatura quando ele sequer entrou em campo, mas fez valer um bom encontro regado a churrasco e muitos palpites em frente à tela.

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Dinho era bom demais no jogo aqui da rua. Foto: Vassilis Galopoulos (CC BY-NC-SA 2.0).

Os boatos entre vizinhos eram de que ele sempre estava por assinar com outra equipe, viajar para outro estado, era observado por olheiros da Europa. No dia em que sua família se mudou para um bairro melhor, a mãe carregava as malas usando raros óculos escuros e não se despediu antes de entrar no táxi. Era observada pela vizinhança lavando a calçada. Passávamos em frente a um prédio grande e alguém falava depois de olhar com admiração.

– O Dinho tá morando aí. Tá bem, questão de tempo pra ele se fazer na vida.

Seu status de celebridade do bairro cresceu e aumentava a cada nova postagem nas redes sociais, sempre com um olhar firme, dentro de campo, com o devido uniforme. Era impossível não ter uma história sua para contar quando havia uma câmera ligada e alguém com o microfone na mão em frente à velha casa.

Mas ninguém nunca o via em campo como titular. Eu disse que ele parecia um quebra-galhos, me olharam feio. O campeonato acabou. No campo da rua de trás, todos falavam que Dinho era bom demais para estar ali. E ele não aceitava as propostas para não engordar um pouco mais o bolso de seu empresário. Passou a não receber contatos. Nem a ser relacionado. Até o fim do contrato.

A espera da glória parecia eterna e ele voltou pra casa. Também voltaram os cheques e venceram faturas de cartão de crédito. Precisou vender o apartamento chique para voltar ao bairro antigo. Envergonhada, sua mãe passou a cumprimentar os vizinhos novamente. Discretamente. A barriga cresceu. O vício na cerveja e bebidas amigas também. Dizem até que esse foi o motivo de suas brigas com os presidentes e empresário no clube que não o quis mais. Aliás, reza a lenda que, dentro de campo, perceberam que ele não era tudo isso, não. Fora dele, difícil de conviver.

Dinho era bom demais no jogo aqui da rua. Dinho era um a mais no futebol profissional. Descobri que suas populares fotos com gente famosíssima da bola eram fruto da tietagem, não de amizade.

Dinho precisou voltar à várzea para não parar de jogar. Ali é tratado como uma subcelebridade. Quase um ex-BBB, sempre vivendo do quase. Ele quase foi um jogador profissional de sucesso, quase ficou no banco naquela decisão, quase estourou.

E quase foi preso por não pagar a pensão de um bastardo. E aí lhe ofereceram um trabalho no mercado, como repositor. Foi a pressão da pensão que lhe fez virar um subalterno qualquer, no mesmo patamar daqueles fracassados para os quais perguntava “jogou naonde?” quando questionado sobre qualquer assunto. Mas não havia nada melhor para quem sequer entende pouco mais do que cinco linhas. Estudar não era bem uma frescura, percebeu. Aos poucos, perdeu o patamar de homem da bola.

Chegaram a cogitar uma depressão, mas não sei. Dinho ainda sonha em voltar a ser tudo aquilo que não foi. Uns dizem que ele foi injustiçado. Para outros, seu destino é uma das poucas regras claras do futebol.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Dinho, o quase jogador. Ludopédio, São Paulo, v. 100, n. 24, 2017.
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