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Diniz, a coragem e a covardia

Gabriel Said 20 de agosto de 2019

“Poucos conseguem criar, correr está ao alcance de todos.” – Marcelo Bielsa

 

Fernando Diniz foi demitido do Fluminense após derrota para o CSA, em partida válida pelo Campeonato Brasileiro de 2019. Foto: Divulgação/Fluminense.

Fernando Diniz foi demitido do Fluminense. Essa demissão é diferente das dezenas de outras que o futebol brasileiro gosta de proporcionar todos os anos. Na noite do dia 18 de agosto, o Campeonato Brasileiro teve a partida com recorde de finalizações de um dos times, com o Fluminense finalizando 33 vezes contra 5 do CSA e mesmo assim perdendo de 1×0. O prognóstico dado foi que a culpa era do treinador e no dia seguinte Diniz foi demitido.

Se o resultado fosse 1×0 para o time de Diniz os comentários sobre o jogo seriam totalmente diferentes. Algo parecido aconteceu paralelamente em Belo Horizonte, com responsabilização de culpa ao Sampaoli pela derrota do Santos, ignorando a expulsão do zagueiro santista aos 4 minutos. Sampaoli e Diniz são dois treinadores que tentam ganhar sempre, algo incomum no Brasil, com vários treinadores que mais parecem se contentar com empates e de vez em quando são agraciados com um gol decisivo.

A sensação é que poucos que trabalham com futebol realmente o entendem ou se esforçam. Provavelmente muitos poderiam seguir suas vidas normalmente se apenas comentassem o placar depois do jogo. Bastaria fazer o download de um aplicativo qualquer de resultado de jogos no celular e comentar o que vê. Duvido que mudaria muita coisa.

Imagina um jogo que um time tenha 5 finalizações, troque 166 passes e tenha 11% de posse de bola contra 23 finalizações, 955 passes e 89% de posse. Este jogo aconteceu em 2012 entre Celtic e Barcelona em que mesmo muito pressionado, o Celtic conseguiu a vitória. A grande questão nesse jogo é que os escoceses podem ter conseguido vencer jogando assim naquele dia, mas isso se sustenta? A história já mostrou que aquela noite em Glasgow foi incomum, obra de um acaso do futebol. Mas será que Guardiola teria sido poupado se trabalhasse no Brasil? Tenho certeza que o interminável debate sobre posse de bola seria pauta por uma semana.

Partida entre Celtic e Barcelona pela Liga dos Campeões em 2012. Foto: Reprodução.

Fernando Diniz foi inúmeras vezes equivocadamente comparado à Pep Guardiola. O catalão representa para muitos um futebol de posse de bola, ou juego de posición, como Pep diz. Ao fazer um trabalho marcado pela posse de bola, Diniz foi personificado por este estilo. Possivelmente por pobreza tática e de ideias futebolísticas no Brasil nas últimas décadas, se acredita que só existe uma maneira de se jogar com a posse de bola e que todos que tentam fazer isso imitam o Guardiola. A comparação em forma de elogio serve também como combustível para derrubá-lo, e tudo que ele representa junto.

O dia 19 de agosto de 2019 é um dia de vitória do conservadorismo do futebol brasileiro. Enquanto o treinador do CSA celebra sua primeira vitória no campeonato – uma vitória não merecida – e Luxemburgo vem de uma derrota humilhante em um clássico, ambos são poupados de maiores críticas e quem é atacado e perde emprego é o treinador do time que finalizou 33 vezes e dos poucos treinadores brasileiros que efetivamente fazem seus time criarem e não apenas correrem.

Marcelo Bielsa é apelidado de louco. Cada vez mais acredito que sua loucura seja ser sano em um mundo virado de cabeça para baixo e em um futebol-espetáculo. Em maio de 2013, ainda trabalhando no Athletic Bilbao, Bielsa deu uma coletiva genial. Logo no início disse que as avaliações devem ser feitas pelo o que se merece e não pelo o que se obtém. Para exemplificar isso contou como era no bairro que cresceu em Rosário, que o sonho das famílias era ter um carro próprio. Naturalmente, quanto mais caro e luxuoso o carro, maior era o reconhecimento. Mas existia uma distinção entre aqueles que conseguiam um carro como fruto de seus trabalhos e aqueles que o conseguiam fazendo trabalhos sujos ou porque ganharam na loteria. Uma família que conseguiu comprar um carro popular tem um pior do que aquele que ganhou na loteria e comprou um carro esportivo, mas quem trabalhou pelo carro tinha mais reconhecimento.

Para Marcelo Bielsa o jogo só pode ser analisado por três pontos de vista: a fidelidade ao estilo, o domínio e quantidade de chegadas. O gol mesmo sendo o mais importante não deve ser avaliado. A razão disso pode ser explicada pelo jogo de Fluminense e CSA. Pensando como Bielsa propõe é inegável que o tricolor carioca estava obtendo resultados aquém do que merecia, seja pelo o que fazia em campo e também por arbitragens muito questionáveis com apoio do VAR.

Fernando Diniz não é nenhum revolucionário como alguns apontam ironicamente. É um treinador que tenta fazer seus times jogarem de uma forma diferente à maneira hegemônica no país e lhe atribuíram as ideias contra-hegemônicas, como futebol ofensivo, posse de bola, defesa ruim, time exposto ao contra-ataque, etc. A derrota para o CSA foi com gol de contra-ataque, o que ajuda a criar essa ilusão enquanto a verdade é que foi apenas o segundo gol sofrido de contra-ataque no campeonato.

A demissão de Diniz é simbólica, representa a derrota de uma ideia. O trabalho de Diniz não é debatido, e sim suas ideias e resultados. A discussão sobre o trabalho dele pode ser sobre os problemas que o time tinha em jogadas dos adversários pelas laterais e bolas paradas, pode ser sobre os laterais direitos do time que frequentemente ficavam isolados ou sobre os problemas defensivos do time com linha defensiva média-baixa como em jogos contra Grêmio e Atlético Mineiro. Erros de arbitragem, falhas individuais e falta de pontaria não são culpa de treinador. E o Fluminense ainda assim é um dos times que mais faz gol no Brasil. O debate sobre o trabalho deve levar em conta os meses de salário atrasado, as intermináveis contratações e saídas de jogadores, o bom futebol apresentado, os jogadores individualmente conseguirem alcançar seus potenciais, a fidelidade ao estilo de jogo, etc.

Fernando Diniz, agora ex-treinador do Fluminense. Foto: Divulgação.

A comemoração conservadora pela sua demissão demonstra uma cultura satisfeita com o que é jogado no país. Discursos repetindo “falta material humano para jogar ofensivamente” servem como escudo falacioso para não evoluir e fazer algo diferente. Diego Lopez, treinador do Peñarol reconheceu que o Fluminense era superior ao Flamengo do primeiro semestre, a equipe tricolor foi injustamente eliminada na Copa do Brasil e jamais foi dominado como o Vasco foi contra o Flamengo e nunca agonizou como o Cruzeiro nos últimos meses. Demitir o treinador pelo jogo contra o CSA é abraçar a mediocridade resultadista. O futebol é muito maior do que isso.

“Eu sempre digo aos jogadores: o ângulo de 90 graus. Quem cruza o jardim evitando o ângulo de 90 graus pisa nas flores e chega mais rápido. Já quem recorre ao ângulo de 90 graus demora mais, mas não pisa nas flores.” – Marcelo Bielsa

Por sorte, Sampaoli e Jorge Jesus simbolizam algo muito mais radical, começando por suas formações muito mais qualificadas na Argentina e em Portugal, respectivamente, do que os cursos oferecidos pela CBF. O Brasil faz força para manter as coisas como estão, isso inclui atrapalhar quem ameaça o status quo, relativizar bons trabalhos, fazer corporativismo com a Federação Brasileira dos Treinadores de Futebol, ataques xenofóbicos, etc.

Em um texto anterior escrevi sobre a característica quixotesca de Diniz e ele deve realmente ser louco por ser um treinador de futebol que gosta da bola. Ele pode e deve ser criticado por todos os erros, mas não por suas ideias. O futebol brasileiro é dominado por dança de cadeiras e resultados. Se o treinador é demitido freneticamente não há a necessidade de contratar um, e se apenas os resultados importam não precisamos assistir aos jogos. Quando um time de resultado ganha alcança o seu ápice, mas quando perde também nada presta.

O debate não deveria ser sobre a posse de bola. Se o debate é errado, as perguntas feitas são erradas. “Perder jogando bonito ou ganhar jogando feio?” é uma pergunta sem sentido e recorrente como definidora para a identidade do futebol brasileiro. Jogar bem deveria ser imperativo; jogar bem para ganhar. Quem joga bem está mais próximo da vitória. Outra questão fundamental é sobre a “falta de material humano”, que no fim nos leva a crer que é preciso um time individualmente mais habilidoso para jogar um futebol ofensivo. Essa linha de raciocínio no fim nos leva a crer que tática só se trata de se defender, e não de atacar, pois o ataque seria pura inspiração individual dos jogadores. Isso explica a dificuldade de tantos times brasileiros em organizar coletivamente um ataque, fazendo a imensa maioria dos gols em contra-ataques, bolas paradas e chuveirinhos na área.

Se me perguntarem sobre o Diniz no Fluminense, direi que não gostava dos resultados dos jogos, mas o trabalho era bom. Recentemente no Flamengo os resultados eram bons, mas o trabalho não era. Somente um deles acertou na demissão do técnico.

 

PS: O pessoal do Conexão Fut publicou no Twitter um excelente resumo da entrevista do Bielsa. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. Diniz, a coragem e a covardia. Ludopédio, São Paulo, v. 122, n. 22, 2019.
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