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Do hooliganismo inglês às torcidas brasileiras

Este texto possui como principal objetivo apresentar alguns estudos realizados em relação aos confrontos entre os torcedores organizados, discorrendo sobre o hooliganismo inglês, primordialmente através das pesquisas de Eric Dunning – o principal precursor da Sociologia do Esporte – do qual dedicou seus estudos para compreender a violência entre os mais diversos torcedores de clubes de futebol na Inglaterra. Ele foi fortemente influenciado pela teoria do processo civilizador de Norbert Elias, consequência da “formação do Estado”; da “pacificação sob o controle do Estado”; da “crescente igualdade nas oportunidades de poder entre as classes sociais, homens e mulheres e entre gerações (velhos e jovens)”; e do “crescimento da riqueza” (DUNNING, 2014, p. 72). Assim sendo, Dunning destacou que a violência entre os hooligans ingleses seria decorrente dos processos descivilizadores, uma vez que o poder é concebido enquanto uma propriedade das relações sociais. Esse conceito foi formulado “para identificar o fato de que a formação do Estado não produz necessariamente consequências civilizadoras, e que os monopólios da violência por parte do Estado podem ser usados para finalidades ‘bárbaras’ e ‘não civilizadas’” (DUNNING, 2014, p. 125).

Uma das explicações formuladas pelo autor diz respeito ao ano que antecedeu a Copa do Mundo de 1966, realizada na Inglaterra. Para ele, a indústria jornalística estava altamente competitiva e, como estratégia, os redatores passaram a noticiar o mau comportamento do torcedor inglês de maneira sensacionalista para vender o maior número de exemplares, despertando os interesses dos agentes policiais para intervir nesses comportamentos. Isso ocasionou um aumento significativo do número de notícias sobre essas ocorrências envolvendo os hooligans do futebol inglês. Além do mais, o autor verificou que, desde 1880, as violências verbais e físicas já representavam estilos de vida entre os fãs de futebol, dado que “em todas as décadas houve arremesso de objetos, ataques contra árbitros, bandeirinhas e jogadores adversários, e brigas entre torcidas rivais” (DUNNING, 2014, p. 219). O interesse da mídia em reportar os comportamentos desordeiros dos torcedores propiciou que eles fossem vistos como “brigões”, obtendo visibilidade entre os pares, uma vez que os embates físicos passaram a ser noticiados pelas manchetes de jornais e revistas, disseminando o pânico moral pela sociedade inglesa e a exportação do hooliganismo para o exterior (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 385).

Através desses estudos, o autor ressalta que o hooliganismo é um problema mundial, dado que o comportamento violento dos jovens pode ser observado pelos mais diversos países do mundo como, por exemplo, na Argentina, no Brasil, na Colômbia ou na Itália[1]. Tendo isso em vista, Heloísa Helena Baldy dos Reis (2014) concorda com Dunning ao afirmar que existe um núcleo duro de jovens dispostos a confrontar com o outro nos dias destinados às partidas futebolísticas. A autora ressalta que o hooliganismo pode ser um conceito utilizado para nomear tanto as práticas de violência entre os jovens fanáticos pelos clubes de futebol, como também as que envolvem outros agrupamentos juvenis que utilizam da violência como forma de estabelecer relações sociais, resguardando as suas devidas distinções.

Com isso, Dunning (2014) destaca alguns acontecimentos que marcaram a violência no futebol como um problema mundial. Prova disso é que, para o autor, o “tumulto de Lima” pode ser considerado a maior tragédia ocasionada no interior dos estádios de futebol. Em 1964, em uma partida disputada no Torneio Pré-Olímpico entre Argentina e Peru, na cidade de Lima, os peruanos se revoltaram após a anulação de um gol. Consta que “a polícia começou a disparar suas armas de fogo, a briga entre torcedores e policiais passou para fora do estádio e o resultado final dessa combinação de tumulto no futebol, protesto contra a polícia e pânico em massa foi um total de aproximadamente 300 pessoas mortas” (DUNNING, 2014, p. 222). Neste sentido, um outro acontecimento que repercutiu mundialmente ocorreu na cidade de Buenos Aires, em uma partida de futebol disputada entre o River Plate e o Boca Juniors, realizada no Monumental de Nuñez, em 1968. Os torcedores do River Plate incendiaram a arquibancada e trancaram o portão 12, impedindo a saída de uma multidão de torcedores, conhecida como a “Tragédia da Puerta 12”. Em torno de 74 pessoas morreram asfixiadas e pisoteadas e 150 ficaram feridas.

Tragédia da Puerta 12
Tragédia da Puerta 12. Foto: Reprodução

Apesar desses episódios ocasionados em países da América Latina, dois acontecimentos localizados na Europa exerceram importância considerável no futebol brasileiro, visto que marcaram as transformações no futebol inglês que acabaram influenciando no movimento de reformas dos estádios brasileiros para receber os jogos da Copa do Mundo de 2014. O primeiro deles ocorreu no ano de 1985, durante a final da Liga dos Campeões da Europa (precursora da UEFA[2] Champions League[3]), em uma partida de futebol entre o Liverpool da Inglaterra e Juventus da Itália: os hooligans ingleses se confrontaram com os italianos no interior do Estádio do Heysel, em Bruxelas. Esse conflito, conhecido por “tragédia de Heysel”, resultou em 39 mortes e cerca de 450 feridos. Os hooligans ingleses foram responsabilizados pelo tumulto e, por conseguinte, os clubes ingleses foram proibidos de participar dessa competição por um período de cinco anos (D’ornellas, 2014). Já, em 1989, em um jogo entre Liverpool e Notthingham Forest no Estádio Hillsborough, em Sheffield (Inglaterra), a superlotação de um espaço cercado por grades resultou no esmagamento e na morte de 96 pessoas e 766 feridos. A “tragédia de Hillsborough” foi considerada “o maior desastre do futebol inglês” (D’ornellas, 2014, p. 164).

Tragédia de Heysel
Tragédia de Heysel. Foto: Reprodução Twitter
Esse último acontecimento foi o marco para que o governo de Margaret Thatcher[4] adotasse medidas de segurança pública, visando diminuir o número de ocorrências no interior e nos arredores dos estádios de futebol inglês, conhecido por Relatório Taylor[5]. Dentre essas medidas, destacam-se a proibição do uso de bebidas alcoólicas nas dependências dos estádios, a transformação da “conduta desordeira” em crime, além da obrigatoriedade de assistirem às partidas futebolísticas assentados nas cadeiras numeradas e o aumento no valor dos ingressos (ALVITO, 2014). Entretanto, cabe ressaltar que esse relatório interveio na organização do futebol profissional para além da Inglaterra, influenciando, inclusive, as reformas e as construções dos estádios de futebol brasileiros para receber os jogos da Copa do Mundo de 2014, incidindo diretamente no comportamento dos jovens pertencentes às torcidas organizadas brasileiras.
Tragédia de Hillsborough
Tragédia de Hillsborough. Foto: Reprodução ESPN

Com esse histórico de conflitos e confrontos no interior e nos arredores dos estádios, Dunning (2014) realizou um levantamento das mortes de torcedores em decorrência da violência no futebol através dos jornais ingleses, entre os anos de 1996 e 1999. Nesse estudo, o autor destacou a Argentina e a Itália como os países que possuíam o maior número de homicídios ocasionados entre os torcedores, principalmente, através do uso de armas de fogo (DUNNING, 2014, p. 222). Enquanto a Argentina ocupava o ranking com 39 mortes, a Itália se destacou com 5 homicídios, durante o período investigado.

No que diz respeito aos estudos brasileiros, Maurício Murad (2013) investigou os números de homicídios ocasionados por confrontos físicos ou armados entre os torcedores através dos boletins de ocorrência registrados pela polícia militar, entre os anos de 1999 a 2008 (MURAD, 2013, p. 37). Nesse intervalo de tempo, o autor apontou que 42 mortes ocorreram no país durante o período estudado, isto é, uma média de 4,2 mortes por ano. Porém, entre os anos de 2004 e 2008, a média do número de mortes aumentou para 5,6 por ano e, entre 2007 a 2008, a média foi de 7 homicídios por ano, ultrapassando “a Itália e Argentina, que estavam à frente do Brasil no início do período investigado” (IBID, p. 38). Ele salientou que 78% dos óbitos são de torcedores que não possuem qualquer relação com as torcidas organizadas (MURAD, 2013). Este fato é crucial para entendermos que a criminalização das torcidas organizadas parece ser uma alternativa “mascarada” para conter a violência no futebol, pois sugere-se que os torcedores organizados não possuem como objetivo exterminar a vida do rival. Os homicídios nos dias destinados aos clássicos de futebol devem ser melhor estudados para que haja efetivamente uma intervenção apropriada diante daqueles que se dispõe a “matar” o inimigo e não apenas responsabilizar as torcidas organizadas por tais circunstâncias.

Esse autor sublinhou como os problemas sociais – o desemprego, a falta de segurança pública, a impunidade e a corrupção – são fatores que propiciam tanto a violência na sociedade como um todo, denominada de “macroviolência”, quanto a violência no futebol, nomeada de “microviolência”. Através dos dados obtidos da pesquisa realizada pelo Núcleo de Sociologia de Futebol da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em 2009, ele demonstrou que a violência nos estádios de futebol é citada como uma das principais causas para o afastamento do público nas mais diversas arquibancadas cariocas (MURAD, 2013, p. 24). Além disso, essa investigação demonstrou que apenas 5% dos torcedores organizados da cidade do Rio de Janeiro se envolvem em confrontos corporais.  A partir dos dados obtidos por Murad, Heloísa Helena Baldy dos Reis (2010, p. 112) constatou que “São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais lideram o ranking de estados brasileiros com maior número de mortes em dias de jogos”.

Com isso, ressalta-se que recai sobre os torcedores organizados os atributos de violentos com a perspectiva de encontrar culpados sobre a violência no futebol. Não obstante, os dados demonstram que eles são os principais responsabilizados pela mídia e pelo sistema de justiça criminal em relação à violência, dado que sugere que os jovens envolvidos com os demais atos ilícitos no interior dos estádios de futebol não são sequer mencionados por tais instituições, uma vez que os jovens pertencentes às torcidas organizadas possuem o estereótipo construído socialmente de “marginal” ou “vagabundo”. Assim sendo, cabe questionar quem são os verdadeiros responsáveis pela violência no futebol?

 

Notas

[1] Os agrupamentos de torcedores são conhecidos como barra bravas, na Argentina e Colômbia; torcedores organizados, no Brasil; hooligans, na Inglaterra; e, ultras, na Itália.

[2] Union of European Football Associations.

[3] Liga dos campeões é uma competição realizada pela UEFA.

[4] Margaret Thatcher foi a primeira-ministra do Reino Unido no período de 1979 a 1990.

[5] Este documento foi supervisionado por Lorde Taylor de Gosforth.

 

Referências

ALVITO, M. 2014. A madeira da lei: gerir ou gerar a violência nos estádios brasileiros?. In: B. B. B. HOLLANDA; H. H. B. REIS (orgs.). Hooliganismo e Copa de 2014. Rio de Janeiro: 7 Letras. p. 27-54.

D’ORNELLAS, C. Grandes eventos, uma perspectiva sobre a segurança e as novas arenas (posfácio). In: HOLLANDA, B. B. B.; REIS, H. H. B. Hooliganismo e Copa de 2014. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014. p. 159-170.

DUNNING, E. Sociologia do esporte e os processos civilizatórios. São Paulo: Annablume, 2013.

ELIAS, N.; DUNNING, E. A Busca da Excitação. Lisboa: Difel, 1992. 

MURAD, M. Práticas de violência e mortes de torcedores no futebol brasileiro. Revista USP (on-line), nº 99, p.139-152. set./out./nov. 2013a.

REIS, H. H. B. O espetáculo futebolístico e o Estatuto de Defesa do Torcedor. Rev. Bras. Cienc. Esporte. Campinas, vol. 31, nº. 3, p. 111-130, mai. 2010.

_____. O perfil do torcedor organizado e a política brasileira para o futebol espetáculo. Tríade: comunicação, cultura e mídia. Sorocaba, vol. 4, nº 7, p. 172-189, jun. 2016.

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Flávia Cristina Soares

Realiza estágio de pós-doutoramento Interdisciplinar em Estudos do Lazer na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutora e Mestra em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista em Gestão Social pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro (2010). Formação em Psicanálise pelo Instituto de Psicanálise e Saúde Mental. Coordena o curso de pós-graduação em "Esporte e Sociedade: perspectivas interdisciplinares" da UNESAV; Professora de "Psicossomática", "Teorias e Técnicas de grupo" e "Psicologia aplicada à Saúde" pela Faculdade Pitágoras. Participante do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) e Grupo de Estudo e Pesquisa em Políticas Públicas de Esporte e Lazer (NeoPolis) na Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (EEFFTO) da Universidade Federal de Minas Gerais.

Como citar

SOARES, Flávia Cristina. Do hooliganismo inglês às torcidas brasileiras. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 27, 2021.
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