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Duas mortes no futebol: Ronaldo Nazário, Leopoldo Luque

Ronaldo Corinthians
Foto: Wikipédia

“Perdi para o meu corpo”, disse Ronaldo Nazário, Il Fenomeno, ao anunciar sua despedida do futebol há dez anos, neste mesmo fevereiro. A última partida fora na Libertadores da América, ainda na classificação para a fase de grupos, quando o Corinthians enfrentou e perdeu para o Tolima, um time não pertencente ao grupo das grandes equipes da Colômbia. Afora o prejuízo esportivo e financeiro, a melancólica desclassificação custaria a rescisão do contrato do lateral-esquerdo Roberto Carlos, que partiu rumo a Rússia, e por pouco não provocou a demissão do técnico Tite. Bancado no cargo, o Timão com ele no comando venceu o Campeonato Brasileiro, chegando ao primeiro título da Libertadores no ano seguinte, assim como ao seu segundo mundial FIFA.

Perder para o próprio corpo dá o que pensar, afinal, supõe um sujeito para além de si mesmo, mas corresponde, de forma geral, ao caráter maquinal que os corpos dos atletas assumem nas rotinas esportivas de alto rendimento. Um importante histórico de lesões tornou a máquina de Ronaldo (ele mesmo) irrecuperável para as exigências competitivas. Atuando com a ajuda de anti-inflamatórios, já lhe era muito difícil seguir.

Quando Ronaldo assinou contrato com o Corinthians no final de 2008, não foi pouca a surpresa no mundo do futebol. Recuperando-se de mais uma de suas lesões na Gávea, e sem contrato com qualquer clube, a expectativa era que fosse contratado pelo Flamengo, seu time de coração e de seu ídolo, Zico. Consideravelmente acima do peso ideal, as primeiras semanas de pré-temporada corintiana não foram fáceis. De qualquer forma, diz-se que todos na equipe se impressionaram com sua performance nos treinos de finalização, em que praticamente não errava, fosse qual fosse a situação simulada. A temporada foi boa: um gol de cabeça em sua segunda partida, para empatar um derby disputado em Presidente Prudente – ele que sempre detestou cabecear –, um título paulista com direito a golaço contra o Fábio Costa, do Santos, na primeira partida final, uma Copa do Brasil vencida frente ao Inter. Se já não era mais o incrível atacante de PSV Eindhoven, Barcelona e Internazionale, seguia com o arranque infernal – mesmo que mais curto que antes – e com um senso de colocação que o deixava sempre no limite de entrar em posição de impedimento, sem, no entanto, sucumbir ao offside. Quanto à conclusão de cada jogada, mesmo sem a mesma condição física de outrora, ainda mostrou toda sua maestria. Os lançamentos de Douglas, as infiltrações e passes de Elias, o suporte de Dentinho como segundo atacante, tudo isso ajudou para que o Fenômeno pudesse dar seus últimos bons suspiros nos campos.

Pintura de Antonio Guijarro Morales El Clásico
Pintura de Antonio Guijarro Morales, representando El Clásico, com as imagens de Ronaldo Fenômeno, pelo Real Madrid e Ronaldinho Gaúcho, pelo Barcelona. Foto: Wikipédia

O ano seguinte, 2010, não foi tão bom para o Corinthians, tampouco para Ronaldo, que, mesmo assim e considerando o êxito da temporada anterior, chegou a ser cotado para integrar o elenco convocado por Dunga para a Copa disputada na África do Sul. A massa corporal inadequada, os medicamentos, a falta de paciência com as concentrações, um time já não tão ajustado, tudo foi tornando a vida futebolística mais difícil. Lembro-me de vê-lo atuar contra o Avaí, no Estádio da Ressacada, e o que fez de melhor na partida foi a cobrança de escanteios. Antes, pousou os pés na calçada da fama, junto com o ídolo local, Marquinhos.

Ronaldo foi muito mais, claro, do que os anos em que atuou no Corinthians, tendo vencido duas Copas das quatro que disputou, brilhando na final de 2002, depois da péssima partida que fizera quatro anos antes, no fatídico jogo contra a França. Além desses e de outros títulos importantes, ele foi o primeiro futebolista amplamente globalizado, desde Pelé. Os inúmeros patrocinadores, a fidelidade à Nike (Michael Jordan teria lhe perguntado se era verdade que ele era o Jordan do futebol), as ações com crianças e refugiados, as entrevistas, a visita ao Kosovo logo após a guerra e, claro, a excelente performance em campo, fizeram dele um astro midiático completo.

A derrota “para o próprio corpo” é a conta a ser paga pelos excessos do alto rendimento, tão comuns quantos são os atletas que o praticam – se é que se pode falar em excesso em um ambiente em que a busca é exatamente pelo superlativo. Pelé identifica nisso suas dificuldades em caminhar, Gabriel Batistuta já ficou tempos sem poder ficar em pé e chegou mesmo a pensar em amputar as pernas, Gustavo Kuerten empregou uma expressão semelhante à de Ronaldo quando deixou as quadras.

Se é verdade que o jogador de futebol morre duas vezes, como uma vez disse Falcão, então que a segunda morte de Ronaldo ainda esteja longe. Resta-nos, em tempos em que as imagens abundam, o desfrute dos vídeos-taipes e as boas lembranças que ele nos deixou. Minhas recordações são essas, não as do empresário e do comentarista de obviedades que se tornou.

O atacante argentino Leopoldo Luque, campeão mundial em 1978.
O atacante argentino Leopoldo Luque, campeão mundial em 1978. Foto: Wikipédia

A segunda morte, aquela definitiva, chegou há poucos dias para outro atacante, também campeão do mundo, o argentino Leopoldo Luque, vítima de complicações decorrentes do Covid-19. Em 1978, a boa dupla que fez com Mario Kempes era um dos grandes handicaps que a seleção local tinha para chegar ao título. Eles não decepcionaram. Além dos gols, Luque mostrou toda a sua força ao suportar a morte do irmão durante a Copa, deixando a seleção por um jogo – exatamente o da derrota frente à Itália – e voltando a ela incentivado pelo pai.
Ronaldo, Luque, Maradona, Batistuta: a velocidade, o passe preciso, a superação de zagueiros e goleiros, a beleza dos gols marcados. É por meio dos atacantes que narramos as épicas vitórias. Eles se vão e nem sempre temos substitutos à altura, apesar dos bons Lewandowski e Salah. Como em geral acontece, aliás, com nossos sonhos e esperanças.

Ilha de Santa Catarina, fevereiro de 2021.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Duas mortes no futebol: Ronaldo Nazário, Leopoldo Luque. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 42, 2021.
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