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Elas também jogam!

Victor de Leonardo Figols 19 de agosto de 2015

Em 2015, finalmente a EA Sports incluiu o futebol feminino no jogo FIFA 16. Pela primeira vez o jogo de futebol mais vendido do mundo contaria com 12 seleções femininas. É bem verdade que todo esse processo não foi tão simples assim. Se já é difícil ver mulheres jogando futebol na vida real, no vídeo game é quase impossível.

Em 2000, tivemos a primeira experiência do futebol feminino em um jogo de vídeo game, o Mia Hamm Soccer para Nintendo 64, vendido apenas nos EUA. O jogo era uma homenagem à jogadora americana Mia Hamm, entretanto foi apenas uma adaptação para o mercado americano do jogo original Michael Owen’s WLS 2000, que foi vendido para o resto do mundo. Uma adaptação extremamente questionável, uma vez que apenas os skins (rosto e cabelo) dos jogadores da versão original foram substituídos na versão do futebol feminino.

Doze anos depois, em uma petição online, feita por uma brasileira nos EUA, pedia que a EA Sports incluísse o futebol feminino no jogo FIFA 13. Em resposta, a empresa responsável pela franquia disse que seria impossível fazer qualquer alteração no jogo que estava prestes a ser lançado, todavia, afirmou que muito em breve veríamos as mulheres sendo representadas em um jogo de futebol para vídeo game.

Só agora, em 2015, que teremos futebol feminino no vídeo game. Mas para que a modalidade fosse incluída no FIFA 16 foi necessária uma nova petição online, dessa vez encabeçada por uma jogadora. Ainda em 2013, a capitã da seleção de futebol feminino da Espanha, Verônica Boquete, iniciou a petição que arrecadou mais de 47 mil assinaturas. Um número não muito expressivo, já que o último jogo da franquia vendou mais de 5 milhões de cópias ao redor do mundo. Entretanto, as 47 mil assinaturas sintomáticas, informam que os jogadores querem ver o futebol feminino no vídeo game.

Atendendo à petição, e mais do que isso, vendo um nicho de mercado até então inexplorado, a EA Sport começou a produzir o FIFA 16 com a modalidade feminina, e apresentou como a grande inovação da franquia para o próximo ano. A empresa que produz o jogo não é tonta, sabe que mais de 40% dos praticantes de futebol nos EUA são meninas, meninas que não são representadas em nenhum jogo de futebol. Essa foi a grande sacada da EA Sports, enxergar um mercado em potencial, entretanto, para as meninas, ver o futebol feminino representado em um jogo de vídeo game é extremamente importante. Como disse Verónica, em uma carta de agradecimento às assinaturas, ter o futebol feminino no FIFA 16 é um grande passo para a popularização da modalidade, e mais do que isso, na luta pela igualdade de gênero.

Parece uma coisa simples colocar o futebol feminino nos jogos de vídeo game, mas não é nada simples, principalmente se a gente pensar na realidade da modalidade ao redor do mundo. Quando falamos que o futebol feminino é diferente do masculino, estamos falando de uma estrutura completamente diferente, de investimento e movimentação de montantes extremamente dispares, de exposição da mídia e da atenção que a FIFA dá à modalidade. Sem contar as taxações machistas, sexistas, misóginas e homofóbicas que alguns ainda insistem em atribuir ao futebol feminino.

Reprodução.
Reprodução.

Entre os dias 6 de junho a 5 de julho foi realizada a Copa do Mundo de Futebol Feminino no Canadá. A estrutura para essa Copa parecia ser a melhor até então, estádios novos ou reformados para o evento, empresas de material esportivo desenhando modelos de uniformes especialmente para as mulheres. Tudo caminhava para uma das melhores Copas de Futebol Feminino de todos os tempos, mas a FIFA mostrou que não liga muito pra modalidade quando anunciou que o gramado de todos os estádios seria revestido com grama sintética. Em resposta, as mulheres se organizaram e entraram com um processo contra a FIFA com base em uma lei canadense que proíbe qualquer tipo de discriminação de gênero.

Pra quem sempre jogou no futebol de grama natural, jogar em grama sintética é um desrespeito muito grande. A grama sintética altera toda a dinâmica do jogo, a bola corre bem mais e tende a quicar muito mais, além disso, o revestimento sintético é coberto com um farelo de borracha que em contato com a pele, por exemplo, em um carrinho dado por uma jogadora, queima. Normalmente abaixo da grama sintética temos uma grossa camada de concreto, o que em saltos das goleiras significa que não há nada para amortecer a queda. Somados a isso, a mistura de concreto, borracha e plástico quando exposta ao sol tende a elevar a temperatura do terreno de jogo, para se ter uma ideia, durante a Copa, foram registrados 50 ºC dentro do gramado. Enfim, grama sintética é horrível para jogar futebol e só serve pra um futebolzinho de fim de semana com os amigos, e olhe lá.

Mesmo assim, as jogadoras perderam a causa. A FIFA alegou que não havia tempo hábil para substituir todos os gramados, faltando dois meses para o evento, e que não poderia fazer o investimento. E completou dizendo que o inverno rigoroso do Canadá castigaria o gramado a tal ponto que seria inviável jogar futebol. Detalhe, a Copa foi realizada no verão canadense. Mesmo perdendo a causa, e faltando dois meses para o evento, as jogadoras conseguiram que uma empresa trocasse toda a grama sintética por grama natural à custo zero, e a FIFA respondeu que estava tudo pronto para a Copa e que não poderia fazer a troca do gramado. É importante destacar que o presidente da FIFA, Joseph Blatter, se diz o grande padrinho do futebol feminino, padrinho só se for na terminologia das máfias.

Durante esse um mês de Copa do Mundo foram disputadas 52 partidas. É difícil saber quantos jogos foram transmitidos pelas televisões brasileiras, o que dá para dizer é que a maioria dos jogos da fase de grupo foram completamente ignorados pela SporTV, passando apenas os jogos da Seleção Brasileira, enquanto que a TV Brasil transmitiu alguns poucos jogos, para além dos jogos das meninas do Brasil. Na última rodada da fase de grupos, uma rodada decisiva, quando algumas seleções estava disputando vaga direta para as oitavas de final, os dois canais simplesmente ignoraram que estava acontecendo uma Copa do Mundo. Aliás, para a SpotTV, a Copa só começou de verdade a partir das oitavas. Assistir um jogo que não fosse do Brasil era extremamente difícil, na televisão paga era impossível saber quando eles iriam transmitir os jogos, já que não colocavam na grade de programação. Já na televisão aberta, os jogos eram encaixados na programação normal, mas ainda assim era difícil saber se transmitiriam os jogos.

Enquanto isso, a mídia impressa praticamente ignorou a Copa do Mundo. Para ter uma boa cobertura do que estava acontecendo na Copa era preciso sair caçando informações em sites e blogs alternativos brasileiros e internacionais. Quando a grande mídia fazia alguma menção ao evento, era muito fácil encontrar erros de informação e despreparo, para não dizer a falta de vontade de alguns profissionais com o futebol feminino.

Somados a todos os problemas citados, o futebol ainda sofre com comentários machistas. Por exemplo, em alguns jogos os narradores estavam mais preocupados em exaltar a beleza física das jogadoras do que narrar a partida, ou quando o comentarista destacava mais o cabelo curto da jogadora do que as habilidades futebolísticas dela. Além disso, ainda é possível encontrar ecos do sexismo, da misógina e da homofobia – em: “Futebol é coisa pra macho!”, “Mulher não sabe jogar futebol!” e “É tudo sapatão!” – ideias que durante anos foram usadas para impedir as mulheres de praticar o futebol.

Designer Bia Rodrigues - biarritzzz.me / facebook.com/biarritzzz
Designer Bia Rodrigues – biarritzzz.me / facebook.com/biarritzzz

Quanto à quantia de dinheiro que envolve o futebol feminino encontramos um abismo entre a modalidade masculina e a feminina. A Copa do Mundo de 2014 pagou 35 milhões de dólares para a campeã, a Alemanha, enquanto que EUA recebeu 2 milhões de dólares com o título de campeão da Copa do Mundo de Futebol Feminino. Na Copa de 2014, a FIFA ofereceu 576 milhões para as seleções participantes, já na modalidade feminina, apenas 15 milhões foi distribuído entre as seleções. Diante disso, como desenvolver a modalidade em um cenário tão dispare?

A meu ver, a resposta está na visibilidade e na representatividade. É impossível pensar em uma valorização da modalidade sem que o futebol feminino tenha visibilidade na mídia. Os caminhos que o futebol masculino tomou, enquanto negócio, são questionáveis, mas podem ser seguidos pelo futebol feminino. Como espetáculo, a modalidade tem um potencial mercadológico enorme, se alguns, como por exemplo, a FIFA, querem tratar a modalidade como produto, que a tratem como se deve. Um produto sem visibilidade é um produto sem valor.

Acredito que esse movimento levaria a outro maior ainda. A exposição do futebol na grande mídia serviria para fomentar a modalidade, começando com o simples gesto de a menina enxergar na televisão uma mulher jogando futebol. Para uma menina de 6 a 8 anos (período estimado para se começar a praticar esportes) enxergar uma Marta, uma Formiga, uma Wambach ou uma Morgan na televisão serviria como estimulo para começar a gostar de futebol, e para aquelas que gostam, seria um estimulo ainda maior para quererem se tornar jogadoras profissionais. Para um menino de 6 anos é muito fácil jogar futebol – há uma superexposição de Messi, Neymar e Cristiano Ronaldo que também o faz querer ser jogador – e não há nenhum impeditivo social a ser enfrentado. Já, para uma menina, jogar futebol é uma luta constante por espaço.

Assim, entendo que as meninas precisam ver o futebol feminino na televisão, precisam jogar no vídeo game com as seleções femininas. Elas precisam se sentir representadas, e isso só é possível com visibilidade, por meio da televisão ou por meio do vídeo game. O passo dado pela EA Sports em incluir o futebol feminino no FIFA 16 vem mostrar que seja na vida real ou na virtual, elas também jogam!

Por isso é louvável que um jogo tão difundido pelos amantes do futebol incorpore o futebol feminino, ainda mais sabendo que isso foi uma demanda das mulheres e de jogadoras. Que a visibilidade dada pelo jogo faça com que meninas e mulheres se sintam representadas dentro do futebol, e que ocupem o espaço que é de direito delas no esporte mais popular do mundo.

Referências:
Obrigado por tornar possível este grande passo
Mulheres retiram processo contra gramado artificial na Copa, mas conseguem algumas vitórias
Canada 2015: Prize money doubled for World Cup winners

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. Elas também jogam!. Ludopédio, São Paulo, v. 74, n. 8, 2015.
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