Quando criança tinha uma certeza bastante presente sobre meu futuro: seria jogador de futebol! O estádio que comecei a frequentar com 5 anos, o excesso de futebol na televisão que assistia, meu time em cada estado (o que não existe mais) me transformavam em um grande espectador de futebol o que na minha cabeça infantil parecia um caminho tranquilo para a profissionalização chutando a bola (obviamente que seria atacante e não goleiro). Na primeira infância, uma situação grave acabou atrapalhando esse meu sonho ou projeto de futuro. Desenvolvi uma grande inabilidade com a bola. Por outro lado, se a habilidade não era o meu forte, a velocidade e a força não me ajudavam e a imperícia futebolística só aumentava. Eu jogava todos os dias o que parece mostrar que enquanto mais treinava minha falta de qualidade, mais ela aumentava.

Enquanto a carreira futebolística não decolava, o torcedor aumentava sua intensidade participativa. Já iniciava certo processo de especialização ao transitar de torcedor de futebol para torcedor do Grêmio. Por diversas vezes essa alcunha me perseguiu e me persegue servindo como ponto de referência. Qual Gustavo? O gremista! Essa paixão reconhecida por todos permitiu que a professora Dagmar Meyer, no início do meu Mestrado (academicamente tenho um pouco mais de talento do que chutando a bola), sugeriu que eu estudasse futebol. Eu queria estudar cinema, um produto cultural sério, futebol era o meu lazer… Por óbvio, a professora não precisou sugerir o tema uma segunda vez…

De 1874 à 1976, o Restaurante Café Lamas ficava localizado no Largo do Machado, na cidade do Rio de Janeiro. Com a chegada das obras do metrô, a mudança foi feita para o atual endereço, Rua Marquês de Abrantes, 18. Foto: Reprodução/Facebook.

Precisei iniciar minha trajetória de colunista no Ludopédio dessa forma por dois motivos. O primeiro é que preciso agradecer, e muito, ao futebol. Esse esporte que amo e, por muitas vezes, odeio me fez homem, me fez torcedor e me fez gente dada a importância que ocupa nos imaginários culturais sul-americanos e, mesmo, globais. Mas, mais do que qualquer coisa, trabalhar com essa temática e participar de diferentes congressos em que discutimos identidades, violências, tempo livre (note-se que nós que trabalhamos com futebol não somos “futebólogos”, mas cientistas sociais, humanos ou, no meu caso, pedagogos) me deu os melhores amigos que eu poderia ter.

Comecei a escrever este texto em junho do ano passado, após receber o convite do Serginho. Qual Serginho? O seu Ludopédio! Como conversamos quando finalmente decidi assumir essa coluna, ele não me deu prazo e o texto até iniciou, mas nunca esteve perto de terminar. Preciso falar do convite porque ele aconteceu em um dia muito especial. Participamos juntos de um Congresso expresso! O Seminário Internacional Copa América 2019: Esporte, mídia, identidades locais e globais, organizado pelo Leme, na UERJ, campus Maracanã, deveria ter acontecido durante dois dias inteiros. Dado a catástrofe meteorológica que atingiu a cidade do Rio de Janeiro, o evento precisou ser realizado em um turno. Somente a solidariedade entre todos os pesquisadores envolvidos no evento permitiu que as coisas acontecessem de forma bastante razoável (quem circula entre nós sabe que essa solidariedade não é um caso isolado, apesar desse ambiente muitas vezes inóspito da academia). Dentre outras características marcantes, naquela quarta-feira, 10 de abril, foi a última vez que ouvi a mãe de nosso campo de trabalho no Brasil, Simoni Lahud Guedes, e o brilhante Gilmar Mascarenhas. Sem o futebol, jamais teria conhecido essas pessoas que me fazem pensar mais, questionar e, também, tentar ser uma pessoa melhor.

Café Lamas: Falta parede para tantos prêmios recebidos pelo tradicional café-restaurante da cidade do Rio de Janeiro. Foto: Reprodução/Facebook.

Os eventos acadêmicos são excelentes espaços para trocas de trabalhos, perspectivas teóricas, referências, metodologias e afetos. Os afetos, inclusive, precisam ser tratados com carinho. Depois do esforço de todos em colocar vinte horas de atividades em seis, não seria possível apenas voltarmos ao hotel. Era uma obrigação moral entre todos (ou entre alguns de nós) sairmos para jantar e, os que gostam (como eu), tomar uma cervejinha (no meu caso, também aproveitei para conseguir um local e assistir Grêmio x Rosário Central). Quem decidiu o local fui eu: o Lamas. Que Lamas? Aquele que os jogadores do Flamengo iam após o treino na rua Paysandu. Não sabe qual? Aquele citado em o Negro no futebol brasileiro, do Mário Filho. A falta de referência me autorizou a chamar todos os meus colegas de ignorantes por não lembrarem a referência: como assim vocês não se lembram dessa passagem do livro?

Meu deboche só foi possível por conta de dois amigos importados. O primeiro, Alejo Levoratti, hincha do maior clube de La Plata: o Gimnasia y Esgrima. Foi ele quem me emprestou (ou deu) o livro do Mário Filho, em abril de 2017. Um argentino que comprou o livro em Florianópolis e me entregou em Buenos Aires. O futebol, também, aumentou meu alcance geográfico. Quem me levou ao Lamas pela primeira vez foi o Martin Curi, alemão e torcedor do Bayern de Munique (seu maior defeito) que me recebeu em sua casa em outro evento do Leme em 2018 em que participei como convidado pagando minha passagem em mais um dos muitos esforços que eu e outros amigos dessa comunidade de pesquisadores do futebol e dos esportes fazemos para podermos compartilhar esses momentos de trocas de saberes e, especialmente, afetivas.

Martin Curi e eu, no Lamas. Foto: Arquivo pessoal.

Naquela noite, também estava acontecendo o lançamento de uma revista no Lamas e a Marina já tinha nos convidado para ir até lá, que Marina? A do Gefut, torcedora do Galo! De lá juntei a Leda, a vascaína, e a Aira, que era do Museu do Futebol e mandamos uma foto para nosso amigo alemão. Meus defeitos como torcedor de futebol se acentuaram um pouco durante a noite. Em determinado momento, parei de conversar para ver o jogo do Grêmio (nós, torcedores, temos esse defeito). Só deu tempo de brigar com o Gilmar uma última vez. Ele reclamou que a Arena do Grêmio estava vazia. Eram mais de vinte e sete mil torcedores, mas como o estádio é grande parecia vazio. Provoquei que aquele público lotaria duas vezes a Vila Belmiro e deixaria o estádio emprestado do Botafogo bastante cheio.

Sei que não fui convidado para escrever uma coluna no site mais importante de divulgação científica de futebol no Brasil para ficar narrando episódios com meus amigos, mas para divulgar um pouco do que venho produzindo desde a segunda metade da primeira década deste século. Mas passar a colaborar com o Ludopédio me dá uma maioridade no conjunto de pesquisadores de futebol no Brasil, agora sou do clube! Ter dado entrevista para a revista Placar sem praticamente conseguir chutar uma bola não é nada perto disso. Peço desculpas aos leitores que vieram até aqui, mas esse é o segundo motivo que me obrigou a escrever dessa forma esse texto de estreia. Como diz o excelente, e quase nada conhecido no centro do Brasil, cantautor gaúcho Zelito Ramos: “na verdade a amizade vale mais”.

Prometo passar a falar de coisas sérias de agora em diante (quase sempre). De antemão, também peço desculpas para os muitos e as muitas amigas que não nomeei neste texto que, por acreditar em nossa amizade, sei que não ficarão ofendidos por não fazerem parte dessas malfadadas linhas.

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Gustavo Andrada Bandeira

Possui graduação em Pedagogia (2006), especialização em Jornalismo Esportivo (2012), mestrado em Educação (2009) e doutorado em Educação (2017) todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é técnico em assuntos educacionais da UFRGS. Foi professor nos cursos de Especialização em Jornalismo Esportivo na UFRGS (2012-2013), Coordenação Pedagógica e Gestão Escolar na Escola de Gestores (2012-2016), Autor do livro Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. Integrante do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero (Geerge), do Seminário Permanente de Estudios Sociales del Deporte e do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Como citar

BANDEIRA, Gustavo Andrada. Entre sonhos e amizades. Ludopédio, São Paulo, v. 128, n. 27, 2020.
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