81.10

Esporte também para ser lido: o nicho editorial dos livros de futebol

Giulia Piazzi 23 de março de 2016

Em uma análise do que tem sido abordado sobre o esporte em pesquisas acadêmicas no Brasil, é possível perceber que os estudos nas universidades atingem diversos campos, tais como a história, a antropologia, a sociologia e o jornalismo. Entre tantas abordagens, observa-se que o trabalho com o futebol no âmbito da edição é escasso, ainda que o mercado editorial de livros de futebol venha se mostrando promissor e aquecido, especialmente em anos de ocorrência da Copa do Mundo.

Segundo os registros feitos pelo bibliotecário do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol de São Paulo, Ademir Massayoshi Takara, entre os anos de 1903 e 2013 foram publicados 3.040 títulos sobre o esporte. Entre esses livros, destacam-se como mais publicados os de clubes (nacionais ou estrangeiros), os de literatura (crônica, ficção, poesia, infantil, etc) e as biografias (de jogador, técnico, jornalista ou dirigente).[i] Em anos de Copa, em tabela disponível nesse mesmo estudo bibliométrico, vê-se um boom de publicações, em que o número de livros quase dobra em relação aos anos anteriores e posteriores aos do torneio mundial.

O governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin participa do Aniversário de 5 anos do Museu do Futebol e Inauguração do Centro de Referência do Futebol Brasileiro no Estádio do Pacaembu em São Paulo.DATA: 04/10/2013 LOCAL: São Paulo/SP FOTO: DIOGO MOREIRA/A2 FOTOGRAFIA
Ademir Massayoshi Takara em ação no Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB). Foto: Diogo Moreira / GESP.

Em 2014, com a aproximação da Copa do Mundo FIFA no Brasil, não foi diferente. Apenas no primeiro semestre daquele ano já haviam sido lançados cerca de 140 livros de futebol.[ii] Essa profusão chamou-nos atenção e nos levou posteriormente à constatação de que não se tem discutido o futebol como nicho editorial de mercado. Além disso, a quantidade de títulos lançados entre 1903 e 2013 nos pareceu baixa para um período tão longo, já que o futebol é assunto de interesse público e envolve e carrega consigo a construção identitária do Brasil e a simbologia da paixão nacional. Assim, no segundo semestre de 2014, iniciamos uma investigação de cunho qualitativo que partiu de um paradoxo: o futebol, enquanto esporte de massa, no mercado de livros apresentava-se como objeto de um nicho.[iii]

O estudo, que ainda não foi publicado, surgiu de alguns questionamentos e fez surgir vários outros. Curiosidades também foram descobertas e ressaltaram a relevância de dar continuidade a ele em outros níveis – atualmente, o projeto está em andamento no Mestrado em Estudos de Linguagens, do CEFET-MG.

Os livros de futebol e seu mercado: por que pesquisá-los?

A pesquisa partiu basicamente de três questões:

  • Por que se publica sobre futebol, dado o possível “desinteresse” de torcedores por livros?
  • Publicar em meio a um boom, como em época de Copa de Mundo, confere retorno a editoras/livrarias especializadas em futebol?
  • Quais as características (práticas e estratégias) das editoras/livrarias especializadas em futebol?

A primeira questão emergiu de uma afirmação trazida por José Miguel Wisnik, no livro Veneno Remédio – O futebol e o Brasil, em que ele diz que o torcedor não é um público leitor em potencial.[iv] Assim, surgiu a hipótese sobre o possível “desinteresse” de torcedores por livros, considerando até mesmo o estereótipo de que esse público não é um ávido consumidor de livros, na medida em que o futebol é um esporte considerado de grandes massas. Entretanto, o interesse principal era o de conhecer e/ou definir qual o real público-alvo dos livros de futebol.

A segunda questão envolvia necessariamente o mercado editorial, levando em conta o aquecimento da produção e possivelmente das vendas de livros sobre futebol em época de eventos grandiosos como a Copa.

A última pergunta baseava-se no fato de haver editoras e livrarias especializadas no assunto no Brasil e que se tornaram referências em se tratando do esporte. A grande questão, nesse sentido, era se o futebol em si modificava a maneira de produzir, publicar e vender/divulgar o livro enquanto produto.

O estudo respondeu a esses questionamentos, como veremos adiante, mas foi possível perceber a necessidade de aprofundar alguns pontos e desenvolver até mesmo pesquisas de cunho prático para preencher tais lacunas.

Caracterização do nicho editorial por editoras e livrarias especializadas

Como citado anteriormente, existem editoras e livrarias especializadas em publicações sobre futebol e que são referências na temática no Brasil, preocupadas com a boa qualidade das obras – qualidade muitas vezes esquecida por tantas outras, que tornam a Copa um momento oportuno para o lançamento de livros repetidos ou até mesmo irrelevantes (o que é natural, mercadologicamente). Entre elas, estão a LivrosdeFutebol.com; a Maquinária Editora; a Livraria e Edições Folha Seca; a Panda Books; a Pontes Editores e Livraria Pontes Futebol; e, por fim, a Oficina Raquel. À exceção desta última, essas editoras/livrarias foram indicadas por Ademir Takara para serem entrevistadas para a pesquisa, já que eram capazes de iniciar a caracterização de um nicho editorial abrangente: o de livros de futebol.

O recorte da pesquisa foi feito de modo que a caracterização do nicho se realizasse pelas próprias editoras e livrarias especializadas. Logo, as perguntas foram baseadas em dados encontrados sobre os livros de futebol e em informações necessárias à caracterização.

Foi possível notar que, infelizmente, ao futebol enquanto nicho editorial não é dada tanta importância como em outros meios e mercados. Há as editoras que percebem no esporte uma matéria digna de ser trabalhada nos livros, mas, conforme os editores entrevistados nos relataram, ainda se enfrenta preconceito em relação à mistura de literatura e futebol. Os livros de futebol nem sempre são patrocinados, inseridos em editais de governo ou se vinculam a eventos culturais, por exemplo.

Já as diferenças sobre o processo de produção, publicação e divulgação de livros de futebol para livros de outras temáticas são mínimas, pelo menos nas editoras especializadas – vale ressaltar que, entre elas, apenas uma é totalmente voltada a publicações sobre o esporte. As editoras/livrarias optam por seguir métodos tradicionais do mercado, mas também demonstram defender sua missão de oferecer obras de qualidade e que se preocupam especialmente com o registro histórico do futebol, sem se pautarem por “modismos” ou se entregarem totalmente a tendências dominantes. Para elas, nem sempre época de Copa do Mundo é sinônimo de lucro, mas a atenção à qualidade torna-se um diferencial e dá destaque aos livros nesses momentos.

Quanto ao público-alvo, os editores, assim como o bibliotecário do CRFB, apontam um público bem diverso como interessado e destinatário desses livros. O público-alvo vai além do torcedor de clubes: são historiadores, colecionadores, estudantes e jornalistas – o que permite compreender a grande preocupação das editoras especializadas em fornecerem obras de qualidade que prezem principalmente pelo registro de caráter histórico.

Curiosidades sobre a edição e o futebol no Brasil

A contribuição da edição na história do futebol brasileiro

Um dos pontos principais do estudo é a constatação de que a edição auxiliou na padronização do futebol no Brasil. O envolvimento do futebol com a literatura e a edição iniciou-se pela necessidade de noticiar os jogos entre os clubes e também de integrar e padronizar as regras do futebol no país.

O primeiro livro especificamente sobre futebol no país intitulou-se Guia de foot ball, publicado pela primeira vez em 1904, de autoria do esportista, dirigente e jornalista Mário Sérgio Cardim. Esse livro trazia dados biográficos de jogadores, tabela de campeonato, entre outras informações, mas teve grande repercussão entre a elite paulista e carioca especialmente porque se tratava da primeira obra que disponibilizava as regras do futebol e instruções para arbitragem traduzidas para o português, tornando-se referência (necessária) para definir a conduta dos juízes nos gramados brasileiros.

Guia do foot ball, de Mário Cardim, em edição de 1905: primeiro livro de futebol publicado no Brasil
Guia do foot ball (edição de 1905), de Mário Cardim: primeiro livro de futebol publicado no
Brasil[v]

Ademir Takara registrou como livro mais antigo encontrado o Guia sportivo, também de Mário Cardim, publicado pela Casa Vanorden em 1903. Segundo ele, o Guia sportivo era a tradução do livro de regras da Football Association, trazido por Charles Miller em 1894.

Com isso, compreendemos a importância de prosseguir com a investigação sobre a edição de livros de futebol no Brasil, de forma a possibilitar a historiografia editorial do futebol no país desde os seus primórdios.

Livros de futebol premiados

Maracanã, adeus – Onze histórias de futebol, de Edilberto Coutinho: livro de contos de futebol, duas vezes premiado internacionalmente
Maracanã, adeus – Onze histórias de futebol, de Edilberto Coutinho[vi]

Maracanã, adeus – Onze histórias de futebol, uma antologia de contos de Edilberto Coutinho (1933-1995), publicada pela editora Civilização Brasileira em 1980, obteve dois prêmios literários. Foi o primeiro livro brasileiro a conquistar o principal prêmio latino-americano de literatura, outorgado por Cuba, no mesmo ano de sua publicação: o Prêmio Ensaio Biográfico, pela Fundação Casa de Las Américas, em Havana. Já em 1986, o livro, traduzido para o francês, foi o primeiro colocado no Grand Prix de la Traduction Cultura Latina, realizado em Paris.

O drible, de Sérgio Rodrigues
O drible, de Sérgio Rodrigues

Em dezembro de 2014, o romance O drible, escrito pelo jornalista mineiro Sérgio Rodrigues e publicado pela editora Companhia das Letras em 2013, ganhou o Prêmio Portugal Telecom de Literatura, um dos principais prêmios literários da atualidade (cujo nome foi alterado para Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa).

Brasil, Futebol e Livros: um evento interessante para o nicho editorial de livros de futebol

Brasil, Futebol e Livros é um projeto que abrange além da divulgação dos livros e envolve autores, editores e leitores (a “tríade editorial”). Com curadoria e produção de Edison Viana Teixeira, jornalista e radialista, o evento é promovido pela Caixa Econômica Federal, em anos de Copa do Mundo, desde 2010. Trata-se de um ciclo de encontros entre autores de livros sobre futebol que ocorre no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, com entrada gratuita. Ele se une à necessidade de voltar os olhares ao grande número de publicações sobre o tema, ao mesmo tempo em que permite que autores e pequenas editoras tenham espaço para debater o tema e defender o cuidado com a qualidade dos títulos que produzem. Há mais detalhes na página do evento no Facebook.

Algumas reflexões para pesquisas futuras

A partir dos resultados trazidos pelo trabalho de conclusão de curso, foi possível discutir outras várias possibilidades de pesquisa sobre futebol no âmbito editorial, mas também a necessidade de ações que viabilizassem e valorizassem os livros de futebol no Brasil. Esse esporte, prática social e integralizadora, é parte histórica e indissociável do nosso país. Outras nações reconhecem-nos nele, e sabemos que um mercado editorial de qualidade como o brasileiro também poderia se beneficiar disso.

Futebol e educação: os livros de futebol na formação de leitores

O futebol pode contribuir para a formação de leitores, na medida em que se apresenta como um assunto de apelo popular e como símbolo de uma paixão nacional. Em 2013, ocorreu um fato interessante que nos fez questionar por que ações semelhantes não são sempre realizadas no país: o ex-ministro do esporte, Aldo Rebelo, organizou dois livros de Nelson Rodrigues – “A Pátria de Chuteiras” e “Somos o Brasil” –, pela editora Nova Fronteira. Com patrocínio do BNDES, a ação tinha o intuito de distribuir os livros nas escolas públicas, pois, segundo Rebelo, livros sobre futebol incentivam a leitura e valorizam a própria cultura brasileira.

Já que para o ministro os livros de futebol têm essa influência, por que essas iniciativas não são contínuas? Livros de futebol de qualidade não deveriam ser distribuídos nas escolas apenas em ocasiões específicas e momentos oportunos, já que a Copa estava se aproximando. É possível aproveitar-se da importância histórica do futebol para estimular (a criação de) políticas públicas de incentivo à leitura em diversas esferas e a qualquer tempo.

Em 2014, também houve por parte do Ministério do Esporte a organização da tradução do livro O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho, para o inglês, como parte da campanha do governo contra o racismo nos estádios na Copa, outra importante discussão explorada em torno do futebol. Em meio a tantas possibilidades para trabalhar o futebol na educação, como não se perguntar por que elas não são sempre ou mais exploradas? Por que o futebol não é tão trabalhado na educação? Por que se ensina o futebol principalmente na prática e não por meio também da leitura?

Interesse internacional por nossos livros de futebol?

Em 2014, a Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, teve a Finlândia como país homenageado. Embora a presença de escritores brasileiros tenha sido discreta na medida em que os olhares estavam voltados aos finlandeses, o evento contou com uma exposição sobre livros de futebol, com a participação de diversas editoras do Brasil.

A ideia da exposição foi de Hedi Gnädinger, tradutora e jornalista brasileira, curadora da mostra, e surgiu, segundo ela, devido ao ano oficial da Alemanha no Brasil – 2013 – e a ocorrência da Copa do Mundo FIFA no Brasil – 2014. Gnädinger também havia projetado inicialmente a montagem dessa exposição na Bienal do Livro de São Paulo, em 2014, mas, por falta de patrocínio, a equipe não conseguiu levar o projeto adiante. Para ela, o tema futebol é muito forte, além do fato de o esporte ser o preferido no país germânico, e os livros de futebol brasileiros são dos poucos que atraem o público alemão para a literatura brasileira, em especial a infantojuvenil.

Cópia de KQFL1860
23ª Bienal do Livro de São Paulo que aconteceu em 2014. Foto: Kelsen Fernandes / Fotos Públicas.

A falta de apoio a projetos ligados à leitura no Brasil é exemplificada nesse caso. Será que o Brasil, enquanto referência futebolística, que tem o esporte como símbolo de nacionalidade e identidade, não poderia se beneficiar do interesse internacional por esses livros em seu mercado editorial? Por que esse tipo de projeto ainda esbarra na falta de patrocínio e não ocorre com frequência? Por que o esporte ainda não é associado totalmente à cultura e ainda sofre preconceito na literatura?

Sabemos que o futebol pode ser pauta de vários estudos no que concerne ao âmbito da edição, mas também da leitura e da educação. Mais do que isso, vemos que ele pode ser destrinchado em inúmeros livros de qualidade, devido à sua importância social e histórica para o Brasil. Envolver o torcedor nas pesquisas sobre os livros de futebol também é pauta para outro estudo, pois é importante avaliar o interesse por esse mercado tão rico. Os questionamentos aqui apresentados são apenas algumas abordagens que podem ser trabalhadas em investigações futuras e que, certamente, serão aos poucos exploradas em vários níveis na academia.


 

Referência:

PIAZZI, Giulia. Esporte de massa como objeto de nicho: uma análise editorial do mercado de livros de futebol. 2015. 92 f. Monografia (Graduação em Letras – Tecnologias de Edição), Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Belo Horizonte. Não publicado.


 

[i] TAKARA, Ademir Massayoshi.  Livros sobre futebol publicados no Brasil (1903-2013). In: II Simpósio Internacional de Estudos sobre Futebol: expressões, memórias, resistências e rivalidades, 2014, São Paulo. 11 f. Não publicado.

[ii] Essa informação foi retirada da seguinte notícia, responsável por parte de nossa curiosidade a respeito do nicho editorial em questão: http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2014/06/11/copa-estimula-publicacao-recorde-de-137-livros-sobre-futebol.htm. Acesso em: 10 fev. 2016.

[iii] A pesquisa, intitulada “Esporte de massa como objeto de nicho: Uma análise editorial do mercado de livros de futebol”, foi realizada como trabalho de conclusão de curso na graduação em Letras – Tecnologias de Edição, no CEFET-MG. Teve início no segundo semestre de 2014, sob orientação do Prof. Me. Pablo Guimarães de Araújo e co-orientação do Prof. Dr. Elcio Loureiro Cornelsen, com apoio do grupo de pesquisa FULIA, e foi apresentada e aprovada em julho de 2015. Ainda não foi publicada, como citado no artigo.

[iv] WISNIK, José Miguel. Veneno remédio. O futebol e o Brasil. Companhia das Letras, 2008. p. 11.

[v] Imagem retirada de: SANTOS NETO, José Moraes dos. Visão do jogo. Primórdios do futebol no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2002. Coleção Zona do Agrião. p. 89.

[vi] Imagem extraída do site: www.literaturanaarquibancada.com

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 15 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Giulia Piazzi

É revisora de textos com muito amor pela profissão e se tornou árbitra-assistente após tanto utilizar o livro de regras como objeto de estudos acadêmicos. Especialista em Comunicação Digital e Redes Sociais (UNA), Mestra em Estudos de Linguagens e Bacharela em Letras - Tecnologias de Edição (CEFET-MG). Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagens e Artes (FULIA), da UFMG, e do Grupo Interdisciplinar de Estudos do Campo Editorial (GIECE), do CEFET-MG.

Como citar

PIAZZI, Giulia. Esporte também para ser lido: o nicho editorial dos livros de futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 81, n. 10, 2016.
Leia também:
  • 148.30

    Sensibilidade é sempre o ponto de partida: o recomeço e a volta por cima da Chapecoense

    Giulia Piazzi
  • 105.15

    Literariabilidade: o caminho do Hexa nas leituras de Tite

    Giulia Piazzi
  • 101.29

    Os livros sobre a Chapecoense lançados após a tragédia

    Giulia Piazzi