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“Eu sou a prova de que há racismo porque eu estou aqui”: o importante e necessário testemunho de Roger Machado na elite do futebol brasileiro

Marcel Diego Tonini 16 de outubro de 2019

Um dos assuntos mais comentados (e o mais importante deles, a meu ver) neste último fim de semana esportivo foi uma resposta dada por Roger Machado em sua entrevista coletiva, no sábado (12/10) à noite, após a partida entre Fluminense e Bahia, no Rio de Janeiro, válida pelo Campeonato Brasileiro. Ao ser questionado sobre sua participação na campanha #ChegadePreconceito, do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, exatamente pelo raro encontro de dois técnicos negros (e únicos, aliás) da Série A, o atual treinador do tricolor baiano relacionou o que acontece no microcosmo do futebol com o que ocorre com o macrocosmo da sociedade. Para fundamentar sua fala, por mais que seu testemunho como um dos poucos técnicos negros já seria suficiente, ele não só se valeu de dados estatísticos como fez uma breve releitura da história do Brasil. Em pouco mais de cinco minutos, ofereceu a todos uma aula pública e, mais uma vez, colaborou para a conscientização racial, tanto de negros, mas, sobretudo, de brancos. Por esse motivo, peço a licença para reproduzir na íntegra a transcrição de sua fala:

Com relação à campanha [#ChegadePreconceito], eu vou repetir o que falei na entrada do campo: não deveria chamar a atenção e ter uma repercussão grande dois treinadores negros [ele e Marcão] estarem se enfrentando na área técnica depois de terem tido uma passagem como protagonistas dentro do campo. Mas, para mim, essa é a prova de que existe o preconceito, porque é algo que chama a atenção à medida que a gente tenha mais de 50% da população negra e a proporcionalidade que se representa não é igual. Eu acho que a gente tem que refletir e se questionar: se não há preconceito no Brasil, por que os negros têm um nível de escolaridade menor que o dos brancos? Por que a população carcerária, 70% dela, é negra? Por que quem mais morre são os jovens negros no Brasil? Por que os menores salários entre brancos e negros são para os negros? Entre as mulheres brancas e negras são para as negras? Por que, entre as mulheres, quem mais morre são as mulheres negras?

Há diversos tipos de preconceito. Nas conquistas pelas mulheres, por exemplo, hoje nós vemos mulheres no esporte, como você [apontou para a repórter que fez a pergunta]. Mas quantas mulheres negras têm comentando esporte?… Então nós temos que nos perguntar: se não há preconceito no Brasil, qual é a resposta que tem relacionado a isso? Mas, para mim, nós vivemos um preconceito estrutural, institucionalizado. Quando eu respondo para as pessoas dizendo que eu não sofri preconceito diretamente, a ofensa, a injúria, ela é só o sintoma dessa grande causa social que nós temos, porque a responsabilidade é de todos nós, mas a culpa desse atraso depois de 388 anos de escravidão é do Estado. Porque através dele que essas políticas públicas que nos últimos quinze anos foram institucionalizadas, que resgataram a autoestima dessas populações, que ao longo de muitos anos tiveram negadas assistências básicas, elas estão sendo retiradas neste momento.

Na verdade, esses casos que estão havendo agora de aumento de feminicídio, homofobia, os casos diretos de preconceito racial, como eu disse, é o sintoma. Porque a estrutura social é racista. Ela sempre foi racista. Porque nós temos um sistema de crenças e regras que é estabelecido pelo poder. E o poder é o poder do Estado, é o poder das comunicações, é o poder da Igreja. E quando esses poderes não enxergam ou não querem aceitar e assumir que o racismo existiu e que precisa haver uma correção nesse curso, muitas vezes dizem que nós estamos nos vitimando, ou que há um “racismo reverso”. A bem da verdade, é que… 10 milhões de negros foram escravizados, 25 gerações. Isso passou pelo Brasil Colônia, pelo Império e só mascarou no Brasil República. E a gente precisa falar sobre isso.

Nós precisamos sair da fase da negação… Né? Nós precisamos sair da fase da negação. Nós negamos: “Ah, eu não falo sobre isso.” Porque não existe racismo no Brasil em cima do mito da democracia racial. Negar e silenciar é confirmar o racismo. E a minha posição que eu ocupo hoje como um negro na elite do futebol brasileiro é para confirmar isso. O maior preconceito que eu senti não foi de injúria racial. Eu sinto que há preconceito quando eu vou no restaurante e só tem eu de negro. Na faculdade que eu fiz, só tinha eu de negro… Isso é a prova para mim. Mas mesmo assim rapidamente quando a gente fala disso, ainda tentam dizer: “Não há racismo, tá vendo? Você é a prova de que não há racismo.”. Não! Eu sou a prova de que há racismo porque eu estou aqui. Desculpa se eu me alonguei [na resposta]…

Sua fala começa por criticar a atenção dada ao encontro de dois técnicos negros num campo (esportivo) em que eles têm e sempre tiveram protagonismo enquanto atletas. Isso, aliás, é motivo para ele questionar a falta de “proporcionalidade” nessa área de atuação no futebol (treinador), sobretudo se se levar em consideração que eles representam mais de 50% da população brasileira. Em seguida, escancara o racismo no Brasil ao sair dos gramados para a sociedade, assinalando: a menor escolaridade e a desproporção salarial dos negros em relação aos brancos, assim como a presença bem maior deles no sistema carcerário e nas mortes de jovens. Também destaca o fato de as mulheres negras terem menos oportunidades, inclusive no jornalismo esportivo, ao passo que estão sobrerrepresentadas nos dados relativos à mortalidade. Àqueles que defendem a inexistência do racismo no Brasil, ele pergunta como se explica essa discrepância entre negros e brancos na sociedade se não pelo fator racial.

Imediatamente, sustenta que esse fenômeno é não só estrutural como institucionalizado pelo Estado. Embora seja responsabilidade de todos os cidadãos, a “culpa desse atraso” é do país e de suas instituições. Nesse sentido, ele tanto remonta aos 388 anos de escravidão como tece críticas indiretas ao governo atual, de Jair Bolsonaro, o qual, como é notório, está desmontando uma série de políticas públicas conquistadas pelas populações negras e demais “minorias” ao longo dos governos presidenciais do Partido dos Trabalhadores. Então, retoma o argumento de que o aumento de casos de racismo, feminicídio e homofobia é “sintoma” do que está acontecendo no Brasil hoje. Sua crítica recai sobre o “poder do Estado”, mas também ao das “comunicações” e ao da “Igreja”. Em outras palavras, condenou tanto as ações quanto, talvez principalmente, a omissão por parte do jornalismo e do cristianismo, os quais não assumem seu papel e ainda endossam argumentos contrários, tais como “vitimismo” e “racismo reverso”. Lembremos aqui que Ali Kamel, diretor geral de Jornalismo na Rede Globo, é autor do livro “Não somos racistas”, no qual se orgulha da democracia racial brasileira e critica a adoção das cotas raciais e o próprio movimento negro. As duas frases seguintes de Roger desmontam qualquer falácia dessas: o fato inquestionável de milhões de negros terem sido trazidos e escravizados por séculos, impactando sobremaneira a vida de “25 gerações” deles no Brasil, bem como essa questão perpassar a história deste país (Colônia, Império e República).

Roger Machado e Marcão trabalharam usando camisa do Observatória de Discriminação Racial no Futebol. Foto: Divulgação/EC Bahia.

Ao falar que o problema foi “mascarado” neste último período, refere-se ao mito da democracia racial. Como se sabe, trata-se de uma ideologia encampada e difundida pelo Estado desde os anos 1930. Em um determinado momento histórico, após a II Guerra Mundial, a crença nela chegou a tal ponto que se cristalizou a ideia de que o Brasil seria um “paraíso racial”, um modelo internacional de sociedade com relações harmoniosas, livre de preconceitos e discriminações raciais. Fundamentada na dupla mestiçagem biológica e cultural, a democracia racial é responsável não apenas pela falsa ideia de que há ausência de conflitos nas relações raciais entre brancos e negros, mas também pela confusão e pela miscelânea na classificação racial brasileira. Diante de um quadro social onde supostamente é difícil definir quem é quem, nada mais lógico do que “negar e silenciar” a existência do problema. Isso, conforme bem observa Roger, “é confirmar o racismo”. Ser exceção nos mais variados lugares e áreas de atuação (restaurantes, universidades, cargos de comando, inclusive ou principalmente no futebol) apenas ratifica essa questão social. Invertendo a lógica da frase daqueles que tentam dissimular o racismo, ele afirma ao final: “Não! Eu sou a prova de que há racismo porque eu estou aqui.”. É exatamente por esse motivo que ouvir os testemunhos, as experiências e as histórias de negros como Roger é algo tão relevante para desconstruir tamanha falácia, sobretudo por se tratar de um campo profissional em que eles têm grande presença e protagonismo, e por se acreditar como consequência disso ser livre de preconceitos.

Esse importante e necessário testemunho só foi possível, a meu ver, por dois fatores, pelo menos. Em primeiro lugar, por causa da campanha antirracista #ChegadePreconceito, do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, e, em especial, pela militância e luta de Marcelo Carvalho, seu diretor e maior responsável por esse projeto. Desde 2014, o Observatório vem divulgando dados estatísticos sobre o racismo no futebol brasileiro e, mais do que isso, mobilizando figuras importantes do futebol nacional em prol da causa, bem como promovendo debates e ações em várias regiões do Brasil. Apesar de sua relevância cada vez maior ano após ano, a ONG ainda clama por recursos para seguir e cumprir seu indispensável papel.

 

Em segundo, pelo respaldo dado pelo Esporte Clube Bahia, no qual Roger Machado é treinador. Não me refiro ao trabalho dentro de campo, mas sim ao que o clube vem fazendo fora dele, desde a criação do Núcleo de Ações Afirmativas, no fim de 2018. Pioneiro e único a destinar um departamento para isso, o clube mais popular do Nordeste tem promovido transformações sociais por meio do futebol, seja nos estádios, seja nas redes sociais. As causas que apoia são as mais variadas possíveis, combatendo não só a discriminação racial, mas também a de gênero, a homofobia, a intolerância religiosa, a invasão de terras indígenas. Trata-se de uma “revolução” com democracia e inclusão.

Sem a pergunta motivada pela campanha endossada pelo técnico e sem o respaldo do tricolor baiano, Roger possivelmente não teria abordado assunto tão espinhoso ou, talvez, teria dado uma resposta-padrão e breve. Muito provavelmente, ele não se sentiria em um ambiente confortável para não apenas entrar nessa “dividida”, mas ganhá-la com tamanha facilidade, como nos seus tempos de jogador. Parece ser exatamente isso: a mesma confiança que ele tinha enquanto negro para atuar como atleta, ele apresenta hoje como treinador do Bahia. Não há dúvidas de que experiência que ele já acumulou na função ao longo dos últimos anos tenha lhe trazido segurança para dar seu testemunho, porém se vestisse a camisa do Juventude, do Grêmio ou do Palmeiras, clubes pelos quais já passou como técnico, possivelmente teria escolhido se precaver. De qualquer maneira, sua posição e seu discurso foram gigantes. Que outros tenham a mesma coragem e postura na elite do futebol brasileiro! Para que personagens como Lula Pereira, Andrade, Jaime de Almeida, Cristóvão Borges ou Ney Barreto não caiam no ostracismo por tocarem nesse tabu.

Apesar da onda reacionária que estamos vivendo desde 2013, agravada sobremaneira no ano passado, os tempos atuais parecem ser favoráveis a esse tipo de posicionamento. Quando iniciei em 2007 minha pesquisa sobre racismo no futebol brasileiro, meus entrevistados, em especial os dirigentes, estranharam o tema abordado: “Por que quer discutir isso?”, “Eu nunca sofri nada.” ou “Eu não sou racista.”. Ao longo do caminho, levei vários “nãos” de diferentes atores desse universo: jogadores, treinadores, árbitros, dirigentes, jornalistas, torcedores. A maioria deles demorou a confiar em minha pessoa, fosse para dar o testemunho, fosse para entrar no assunto durante os encontros. Alguns deles demoraram mais de um ano para me conceder uma entrevista. Outros, que titubearam na fala e no posicionamento naquelas oportunidades, falam hoje com mais segurança em programas esportivos. Sem dúvida porque o assunto está mais presente na mídia e porque o debate tem sido promovido com maior profundidade. A tomada de consciência por parte de negros e brancos nestes últimos dez anos é notável.

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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Como citar

TONINI, Marcel Diego. “Eu sou a prova de que há racismo porque eu estou aqui”: o importante e necessário testemunho de Roger Machado na elite do futebol brasileiro. Ludopédio, São Paulo, v. 124, n. 16, 2019.
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