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Eurocopas e estádios: o legado em debate

Gilmar Mascarenhas 27 de novembro de 2017

Sábado, 18 de novembro de 2017. Acabo de presenciar, no Estádio da Luz, a vitória do tradicional Benfica (Sport Lisboa e Benfica) sobre o Vitória de Setúbal, em jogo válido pela Taça de Portugal, na fase que chamam aqui de 16 avos (a que precede as oitavas de final). Diante de quase trinta mil pagantes, o Benfica se classificou ao obter placar favorável de dois “golos” a zero.

Como de costume, chego pelo menos uma hora e meia antes da partida e percorro os arredores do estádio para sentir o que habituamos chamar de “atmosfera” ou “clima” do jogo. Observo o comércio informal que temporariamente se forma, os diversos sujeitos no espaço público e suas práticas. E claro, ensaio conversa com torcedores, sobretudo com os que estão consumindo cerveja, geralmente mais predispostos a falar e interagir com um curioso “outsider”. Em meio a tradicionais discursos fanáticos e épicos dos benfiquistas, narrativas amiúde repetitivas no âmbito universal do pertencimento clubístico (deliciosamente potencializadas pelo fator etílico), aguardo pacientemente algo mais interessante e revelador das vicissitudes locais.

Nestas sondagens, por vezes irrompe algo inusitado e colho alguma informação surpreendente. Não sabia, por exemplo, que o hino original do clube, cujo refrão é “Avante, avante pelo Benfica”, por gerar desconfiança para o regime salazarista, foi a partir de 1942 severamente “recomendado” a ser silenciado e esquecido (e mais tarde oficialmente substituído por outro hino, o atual, em 1953). O motivo: este “avante” era também cantado pelos comunistas, e de fato diversos torcedores entoavam o refrão com braços erguidos e punhos cerrados. A cor vermelha da camisa do clube acirrava o desconforto para o regime, uma das mais longas ditaduras do século, que pressupunha o futebol (ópio da classe trabalhadora) como seu “aliado”. Também o fato de ser o Benfica o mais popular clube de Portugal certamente tornava o hino e sua sonoridade na multidão torcedora um tema de governo. Não por acaso, o novo hino surge justamente um pouco antes da inauguração do grande estádio, que reuniria multidões potencialmente perigosas para os donos do poder. Enfim, mais uma dentre tantas intervenções de regimes ditatoriais sobre a popular cultura futebolística.

Bem junto ao estádio, compondo situação de animação cultural para mim inédita, havia um palco montado. Sobre ele, um jovem usava o microfone para divertir as pessoas que se aglomeravam ao seu redor enquanto aguardavam o início da partida. Contava anedotas, recitava poesias direcionadas às moças presentes (ou passantes), alternando, claro efusivas exaltações ao Benfica. Dizia também, em tom jocoso, que todos deveriam aproveitar para consumir livre e abundantemente bebidas alcoólicas ali fora, pois seria proibido fazê-lo no interior do estádio. Terminou seu “show” desejando uma grande vitória ao “Glorioso”[i].

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No Name Boys

Como as demais “arenas” de nossos dias, o Estádio da Luz é bastante setorizado (hiper setorizado, diria Fernando da Costa Ferreira) internamente, o que empobrece a experiência individual, especialmente para quem, como eu, gosta de flanar e vivenciar distintos contextos no interior do diversificado recinto. Duas torcidas organizadas rivalizam entre si o protagonismo das paixões e ações no estádio. A Diabos Vermelhos, criada nos anos 1980, é a maior e mais tradicional. Mais tarde adveio a “No name boys”, incansável e intensa como são as nossas torcidas de alento. Cada uma se instala atrás das balizas, tendendo para o lado direito destas, estendendo-se até a bandeirinha do escanteio. Obviamente em lados opostos do campo, pois consta a ocorrência de inúmeros confrontos já acumulados, por vezes violentos, entre elas.

Gostaria obviamente de assistir ao jogo junto a um destes grupos, mas isto já não é mais possível para não-membros das referidas torcidas organizadas, conforme meus “informantes” e mais tarde confirmado no guichê (bilheteria). Esta interdição, dizem, foi criada no ano passado (2016) e teria como missão “proteger” o torcedor “avulso”, aquele que não sabe cantar e se portar naquele genoespaço, conforme as rígidas expectativas do grupo dotado de alto índice de territorialidade, como também as próprias torcidas organizadas, de eventuais ataques “externos”. Esta “contenção territorial” (para recorrer ao repertório conceitual do geógrafo Rogerio Haesbaert), pelo que tenho acompanhado à distância, parece estar se tornando uma estratégia de acolhimento segregado nas novas arenas. Percebi pela primeira vez o mesmo isolamento em Cracóvia, no Estádio Municipal, em setembro 2015 (por ocasião do Congresso da União Geográfica Internacional), quando presenciei Cracóvia x Podbeskidzie.

A pequena torcida visitante, por sua vez, estava efetivamente “encurralada” num recinto inteiramente recoberto com uma tela de “proteção”, a evitar o arremesso de objetos ao campo. Situação deveras constrangedora, semelhante a uma jaula (ou gaiola) para animais. Por fim, cabe registrar que tais setores são bastante policiados, principalmente o da torcida de alento, visivelmente mais juvenil e masculina: metade dos quarenta e dois agentes policiais distribuídos ao redor do campo, (postados de costas para o gramado) concentravam-se nos vinte metros de extensão ocupados pela No Name Boys. Em outras palavras, 50% do efetivo policial para vigiar menos de 10% da área que circunda o campo de jogo.

O atual Estádio da Luz (em alusão à toponímia da freguesia em que se insere, felizmente escapando à tradicional homenagem ao ditador de plantão) data de 2003, quando o mesmo foi inteiramente reconstruído para a Eurocopa do ano seguinte. O anterior foi inaugurado em 1954, no bojo da geração de grandes estádios do pós-guerra na Península Ibérica (contemporâneos ao Maracanã, temos o José Alvalade, 1956; Santiago Bernabeu, 1947; Camp Nou, 1957), e na concepção que tenho denominado “estádios das massas”. Após seguidas ampliações, o grande centro da popularidade do futebol lisboeta – a “profana catedral de concreto “- atingiu a capacidade oficial máxima para 120 mil (chegando a abrigar 135 mil torcedores, em partida decisiva em 1987), sendo então considerado, por muitos, como o maior estádio da Europa.

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Estádio da Luz em 1954. Foto: Estúdio Horácio Novais/Biblioteca de Arte (CC BY-NC-ND 2.0).

Por azar, não cheguei a conhecê-lo: quando pela primeira vez em Lisboa, em 1997, não havia partida prevista para este equipamento, então fui a um jogo no Estádio José Alvalade, do clube rival lisboeta Sporting (Sporting Clube de Portugal). Não me recordo agora o nome do adversário nem o placar final, pois não localizei em meus arquivos pessoais o tíquete daquele confronto, dentre os quase cem que acumulo numa gaveta; a lembrança mais marcante deste jogo é o de uma noite fria de outubro, na arquibancada superior, descoberta, ao vento, e sem o onipresente cachecol, que percebi ser parte essencial da indumentária do torcedor europeu, sobretudo em jogos noturnos.

Voltando a tratar do estádio da Luz, contaram meus “informantes” que este também era inteiramente constituído em arquibancadas de cimento, sem cadeiras. Difícil crer, mas a memória torcedora tem seu valor: o estádio (espaço vivido) que guardam em si é o cimento frio periodicamente aquecido pelo frenético amor torcedor. Consta ainda que nunca contou com um espaço como a nossa “geral” (assistência em pé). A atual versão é evidentemente 100% encadeirada, com capacidade bem inferior à original (aproximadamente a metade, apenas 66 mil), algo recorrente no processo de “modernização” globalmente em curso nos últimos vinte anos, que atinge verticalmente.

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Arquibancada do Estádio da Luz em 1954. Foto: Estúdio Horácio Novais/Biblioteca de Arte (CC BY-NC-ND 2.0).

Pensando em legados, o Estádio da Luz certamente é um dos poucos exemplares daquela Eurocopa 2004 que vem funcionando sem sobrecarregar o contribuinte. Mesmo com ingressos relativamente baratos para o padrão europeu, (a maioria custando entre dez e quinze euros para não-sócios, valor que se multiplica por cinco em jogos da Champions League) dizem que o clube proprietário mantém o equipamento sem qualquer apoio estatal e sem problemas de ordem financeira. A boa média de público para os patamares atuais (25 a 30 mil assistentes) certamente coopera, o que não se verifica em diversos outros estádios portugueses construídos ou reformados para o Euro 2004. Aveiro, Faro, Leiria e mesmo Coimbra (apesar do razoável índice de eventos culturais e artísticos próprios de uma cidade universitária) são cidades cuja gestão pública arca com o pesado ônus dos “elefantes brancos”.

O belo e premiado estádio de Braga (que se aninha majestosamente em terreno de vertente íngreme), inicialmente bastante contestado por superdimensionar, como os demais, a capacidade de público, vive certo alívio com a boa fase atual do clube, o Sporting Braga, mas tende a conviver com prejuízos e regular ajuda estatal, em contexto de agudo debate sobre a otimização dos recursos públicos. Outro estádio minhoto, em Guimarães, recorre ao aluguel de seus espaços internos para reduzir os elevados custos de manutenção (uma grande academia de ginástica e uma unidade de ensino técnico para formação de turismólogos). O clube proprietário conta ainda favoravelmente com alto índice fanatismo e pertencimento local –  disseram-me, com certo exagero talvez, ser a única cidade portuguesa de médio porte na qual Benfica e Porto (os dois clubes “nacionais”) não tem representações (sedes de torcidas), sendo a cidade inteiramente torcedora de seu clube local.

Deixando a experiência de legado lusa, relativamente desastrosa, quero falar também da França, com sua Eurocopa bem mais recente, ali realizada no ano passado. Aliás, esta minha breve passagem por Lisboa, na verdade, foi apenas uma escala de 24 horas na viagem de retorno ao Rio de Janeiro. Vinha de Paris, onde participei do colóquio Le Droit a la Ville au Sud, expériences citadines et rationalités de gouvernement (promovido pelo CESSMA e realizado na Université Paris Diderot), nele apresentando minhas reflexões sobre o lugar e papel do estádio contemporâneo na luta pelo direito à cidade. Debati com alguns colegas franceses a violenta “arenização” dos estádios brasileiros e o que poderia ser comparado com a experiência francesa.

Sabemos que nos últimos vinte anos, a FIFA, entidade máxima gestora do futebol mundial, articulada à grande mídia e a corporações privadas diretamente envolvidas com a máquina urbana do crescimento, adotou um formato de Copa de Mundo que exige a construção de estádios altamente sofisticados. A UEFA, proprietária da Eurocopa (o tradicional torneio de seleções nacionais européias, igualmente quadrienal) seguiu a mesma orientação. Desde então, a cada megaevento futebolístico assistimos à geração de reluzentes e monumentais equipamentos, objetos icônicos que nem sempre se adequam à realidade local, tornando-se “elefantes brancos” na paisagem urbana. Quando Portugal realizou a edição 2004 da Eurocopa, cumpriu à risca a então novíssima orientação de erguer monumentais estádios, investindo mais de um bilhão de euros especificamente para este fim. Alguns anos após o evento, seu primeiro ministro reconhecia que, para alguns deles, não restaria outra opção senão sua completa demolição, para eliminar uma “despesa governamental inútil”. A registrar que a edição imediatamente anterior, no ano 2000, realizada por Holanda e Bélgica (junção salutar para reduzir os custos e impactos), com apenas dois novos estádios dentre os oito utilizados. Em Portugal, foram dez estádios, sendo oito deles novos.

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Vista interna do Estádio da Luz (2012). Foto: Florent Dusonchet.

A França já havia sediado a primeira edição da Eurocopa, (então denominada Campeonato Europeu de Nações), realizada em 1960. Todavia, naquela ocasião as seleções participantes, em dezessete no total, se confrontavam em suas respectivas pátrias ou na pátria adversária. Somente quando restavam quatro equipes classificadas, estas se dirigiram ao país anfitrião, que acolheu as poucas partidas restantes em somente dois estádios: Parc des Princes (Paris) e Velodrome (Marselha), as duas maiores cidades francesas e os dois principais centros futebolísticos nacionais de então, e sem demandar reformas nos estádios. Portanto, havia um formato com custo muito reduzido e sem forçar a alteração de equipamentos de porte plenamente adequados às necessidades e à “cultura” local.

O país promoveu nova edição do evento em 1984, já no atual formato, destinando sete estádios para acolher as dezesseis seleções presentes. Para o evento, um novo estádio foi erguido, em Nantes (Stade de Beaujoire) e outros cinco foram reformados no sentido da planejada ampliação de sua capacidade de público, em Marselha, Lyon, Saint-Etienne, Lens e Strasbourg. Apenas o Parc des Princes manteve-se praticamente intocado. Tais reformas, cumpre frisar, partiram das necessidades locais, uma vez que o futebol vivia um momento de expansão no gosto do público francês, avançando sobre o tradicional rugby. Neste sentido, não há registro de produção de “elefantes brancos”, e sim um redimensionamento dos equipamentos existentes, adequando-os a uma nova realidade de consumo do espetáculo futebolístico. A registrar que a ausência de Bordeaux e Toulouse (quarta maior aglomeração urbana francesa) neste evento se explicam em parte pela persistente supremacia do rugby no sudoeste francês.

Em 1998 a França abrigou a Copa do Mundo e construiu um único novo estádio, o Stade de France. Todavia, no momento em que o país se propôs a sediar pela terceira vez o grande evento da UEFA, os requisitos impostos eram bastante distintos, levando o país a investir vultosos recursos na construção ou reforma de seu parque de estádios. Em maio de 2016, às vésperas do evento, estivemos em Bordeaux e entrevistamos o professor de Geografia Damien Plaza, ex-jogador de futebol e membro da diretoria do clube de futebol amador Lége Cap Ferret, situado na comuna homônima situada nos arredores de Bordeaux. Ele não apenas reclama dos preços dos ingressos para a Eurocopa, como da excessiva comercialização: informa que na Copa de 1998 pôde assistir gratuitamente diversos jogos pois a Federação Francesa de Futebol forneceu ingressos a centenas de clubes amadores em todo o país. Outros tempos… e não faz tanto tempo! O evento era ainda concebido como comunhão de esportistas, ricos e pobres, amadores e profissionais, de forma que os clubes amadores faziam parte da grande celebração, contribuindo, discreta e cotidianamente, para o êxito do futebol. Em sua concepção atual, a Copa do Mundo é essencialmente um espetáculo comercializado, como qualquer outro. Os sete mil clubes amadores da França tornaram-se a face inglória, obscura e invisível do iceberg. Esta profunda transformação renderia uma boa reflexão, mas para outro momento.

O novo formato do torneio, agora reunindo vinte e quatro seleções, propiciou a ampliação do número de estádios na França: dez cidades participaram do certame, agora incluindo o sudoeste: Paris, Saint-Denis, Lille, Lens, Lyon, Marseille, Bordeaux, Toulouse, Saint-Etienne e Nice Ao contrário do caso brasileiro, no qual a participação estatal no custeio das reformas foi amplamente majoritária, na França estima-se que, dos 1,7 bilhões de euros investidos na renovação do conjunto de estádios, menos de dez por cento deste montante tenha sido arcado pelos cofres públicos. Os clubes, federações locais e agentes privados contribuíram com a principal fatia dos encargos. Trata-se de uma informação importante, reveladora das prioridades estabelecidas e pactuadas entre instâncias estatais e a sociedade civil. No Brasil, os exorbitantes gastos públicos tornam-se ainda mais preocupantes quando se consideram as imensas lacunas nos campos da educação, saúde e saneamento.

Dotada de muito maior mercado interno, e tendo optado por um modelo mais sensato e comedido, a França parece sofrer bem menos os impactos negativos da Eurocopa. Portugal, ademais, vivia um outro contexto, pré-crise de 2008 e de muito menor grau de questionamento acerca do peso dos elefantes brancos. Naquele mesmo ano de 2004, a Grécia abusou nos custos dos Jogos Olímpicos, exibindo até hoje um cenário dantesco das ruínas de suas instalações esportivas. Desde então, cresce mundialmente a crítica contrária ao gigantismo insustentável dos megaeventos esportivos. O movimento olímpico, através da Agenda 2020, já tomou iniciativa no sentido da redução dos gastos para o país anfitrião. A edição Tóquio 2020 já apresenta novidades. A FIFA permanece ainda estática, ancorada na força da paixão mundial do futebol. Cabe aos governos e a sociedade civil evitar novos desperdícios. O que certamente não acontecerá na Rússia ou no Catar. Aguardemos a próxima década.

[i] Ô pá, imitando o Botafogo carioca? Nosso apelido vem de 1910, quando o clube conquistou o campeonato vencendo todas as partidas e batendo recordes “eternos” como a incrível média de 6,6 gols por jogo e a maior goleada oficial da história do futebol brasileiro: 24×0. Não descobri quando surgiu o “glorioso” lisboeta, tampouco se foi, como no caso do alvinegro carioca, não uma autopromoção mas uma homenagem-elogio proveniente de diversos clubes brasileiros que na ocasião enviaram telegramas de norte a sul do país, ainda no contexto do amadorismo, repleto de camaradagem que envolvia visitas recíprocas, nas quais o jogo era apenas pretexto para viagens e ampliar circuitos de sociabilidade para aqueles rapazes da burguesia e da aristocracia “modernizada” e cosmopolita.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gilmar Mascarenhas

Professor Associado do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Como citar

MASCARENHAS, Gilmar. Eurocopas e estádios: o legado em debate. Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 27, 2017.
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