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“Evacuem o estádio”: o Cruzeiro na última rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol de 2019

Luciana Cirino Lages Rodrigues Costa 24 de dezembro de 2019

Pré-eliminar: o preparo para o dia final

Ingressos para o jogo entre Cruzeiro e Palmeiras. Foto: Luciana Cirino.

Ingressos já comprados para o jogo do dia “D”, mas que poderia ser também o dia “B”, uma vez que era decisivo para a permanência do Cruzeiro na Série A. Seguiu-se a sexta, o sábado e, enfim, chegou o fatídico domingo, 8 de dezembro. E com ele veio a tarde da última rodada do Brasileirão 2019.

Ao longo dos dias anteriores pairava no ar a dúvida sobre os rumos que o Cruzeiro teria após o jogo com o Palmeiras. Esse era um tema recorrente nas rodas de conversa entre amigos e amigas, nas redes sociais e na imprensa esportiva.

A expectativa sobre a decisão aumentava, assim como se elevou a ansiedade de uma parte da torcida cruzeirense que compreendia a relevância desse jogo para a trajetória do time no cenário futebolístico brasileiro. Afinal, Cruzeiro, Santos, Flamengo e São Paulo compunham o grupo dos quatro times que nunca foram rebaixados para série B.

Mas esse jogo também mobilizava sentimentos de torcedores e torcedoras de outros times que já estiveram na Segunda Divisão, como o Atlético Mineiro e o América Mineiro. Entre provocações, brincadeiras e piadas sobre o fantasma do rebaixamento que supostamente rondava o time adversário, essas torcidas anunciavam com satisfação a possibilidade da queda do Cruzeiro.

15 horas: rumo ao estádio!

Vestidas com as camisas que nos acompanharam ao longo de outros jogos do Cruzeiro em 2019, fomos para o Mineirão! Dada a possibilidade de brigas dentro e fora do estádio, ponderamos que seria necessário ter estratégias para acompanhar o jogo na arquibancada e, ao final, para sairmos.

Brincamos que este seria um jogo em que haveria duas possibilidades: tirar o defunto ressuscitado do caixão e correr para o abraço; ou tampar o caixão e preparar para a zoação. E entre as falas que nos denominavam como corajosas, animadas ou loucas, seguimos com a esperança de alcançar a comemoração de uma vitória importante.

No trajeto para o estádio, o motorista do aplicativo que se identificou como torcedor americano manifestou a sua expectativa por um resultado positivo para o Cruzeiro. Parece que o desejo da queda do time celeste não era uma unanimidade entre as outras torcidas.

Descemos perto do Mineirinho, ao lado do Mineirão. No curto trajeto que fizemos para entrar no estádio, observamos que o clima era de festa. As cantorias evidenciavam a expectativa positiva em relação ao resultado que o Cruzeiro poderia alcançar contra o Palmeiras, ainda que fosse significativa a possibilidade do rebaixamento.

No dia anterior, foi divulgado na imprensa[i] que uma medida judicial definiu que a torcida seria única, não sendo permitida a entrada de palmeirenses no estádio. Acompanhando alguns programas esportivos durante a semana, foi possível observar que a justificativa para essa medida era a preocupação com a segurança da torcida, uma vez que havia o temor de um confronto entre torcedores cruzeirenses e palmeirenses. Sendo assim, o Mineirão foi ocupado apenas pela torcida cruzeirense, quase 30 mil torcedores e torcedoras. E, juntas, nós quatro fizemos parte desse volume de homens e mulheres de diferentes idades que foram ao estádio para assistir ao último e decisivo jogo celeste na temporada de 2019.

Dentro do estádio, o jogo vai começar!

Dentro no Mineirão acompanhando o último jogo do Brasileirão. Foto: Luciana Cirino.

Já dentro do estádio, peguei o celular para sintonizar em uma das rádios que estava transmitindo o jogo e, ao ligá-lo, estava tocando na Rádio Inconfidência a música do Raul Seixas, Tente Outra Vez. Seria um presságio, um aviso do acaso me preparando para um resultado indesejado? Ou seria uma canção para acalmar o coração, injetando ânimo para incentivar o time? Preferi seguir com a segunda opção e sintonizei em outra estação de rádio. Ligada na transmissão do jogo, a atenção estava dividida entre o que o narrador falava e o que acontecia dentro de campo. Por vezes, na rádio poderia ter informações sobre o resultado de outros jogos que estavam acontecendo.

Na arquibancada a torcida transparecia a ansiedade, que era extravasada com cantorias para incentivar o time. Dentro de campo, o árbitro aguardava para iniciar o jogo que deveria começar sincronizado com outros estádios.

Começa o jogo! Haja coração! O primeiro tempo transcorreu sem muitas possibilidades reais de marcação de tento. O time do Cruzeiro, ainda que precisasse construir um resultado positivo, não se posicionava em campo com a pegada necessária para tal. Parecia nervoso, situação compreensível diante da possibilidade de ir para a Série B. O que se viu foram os erros de passes e a dificuldade em criar jogadas para surpreender a equipe do Palmeiras. Sem muita consistência técnica e tática, dava sinais de que mais uma vez teríamos um jogo morno, de mais uma repetição de apresentações realizadas em alguns jogos anteriores.

Ainda que em campo o Cruzeiro não estivesse nos empolgando, voltando a atenção para a arquibancada era possível rir, cantar e distrair. Estávamos torcendo e aproveitando o ambiente, vendo a diversidade de pessoas e algumas figuras engraçadas que estavam na torcida. O mar de gente que acompanhava o jogo dentro do estádio tentava seguir firme no propósito de torcer e incentivar o time.

O momento de maior empolgação que foi visto durante o jogo aconteceu já no final do primeiro tempo, logo após o gol marcado no jogo que estava acontecendo no Rio de Janeiro, entre o Botafogo e o Ceará. Segundos depois que o gol foi anunciado na rádio, o Mineirão incendiou e foi uma grande comemoração.

O tento marcado por Marcos Vinicius[ii], ex-jogador do Cruzeiro que foi negociado para o Botafogo, foi um grande incentivo para a torcida comemorar e se manter firme acreditando na possibilidade da manutenção do Cruzeiro na Série A.

E agora, Cruzeiro?

O roteiro da escrita desse último capítulo do Brasileirão estava se direcionando a favor do Cruzeiro? Parafraseando o poema de Carlos Drummond de Andrade, ficava uma pergunta: e agora, Cruzeiro? O que viria na sequência? Faria a sua parte?

Intervalo de jogo. Se até aquele momento dava para duvidar de que a sorte estivesse acompanhando o time celeste, depois do gol já era possível acreditar na possibilidade de que o vento estivesse mudando. Pensamos que o Cruzeiro tinha acordado e que depois dessa mãozinha do Botafogo o time poderia engrenar e fazer um bom segundo tempo. Meu palpite otimista era de que o placar terminaria em 2 a 0 para o Cruzeiro.

Mas como o esporte de alto rendimento não é feito só de sorte ou de azar, uma vez que ele depende fundamentalmente de elementos táticos e técnicos, o resultado desse jogo dependeria também da atuação dos jogadores em campo. E, após o intervalo, com a retomada do jogo, o que se viu foi um futebol desanimador. Nem toda a sorte do mundo cobriria tamanha incapacidade de rendimento dos jogadores do Cruzeiro. Com raras exceções, a atuação apresentada por alguns parecia cena de filme pastelão: inúmeros erros de passes, escorregões em situações decisivas, tomadas de decisão equivocadas, e das poucas finalizações realizadas pelo Cruzeiro, algumas nem alcançavam o gol. O time celeste continuava com o mesmo jogo morno. E não demorou muito para a esperança de uma vitória ser substituída por outros pensamentos e sentimentos, dentro e fora de campo.

Agito na torcida: entre o desespero e o gás de pimenta

O primeiro gol do jogo foi marcado pelo jogador Zé Rafael, a favor do Palmeiras. Foi uma decepção geral na torcida, tinha gente xingando, outras pessoas em silêncio e outros com cara de espanto. E, para piorar a situação, ouvi pela rádio que no Rio de Janeiro o Ceará tinha uma cobrança de pênalti para realizar. O gol do Ceará marcado por Thiago Galhardo sacramentou o resultado. O que parecia difícil, agora estava claramente impossível. Naquele momento, já se via a saída de algumas pessoas que estavam na arquibancada e já se deslocavam para fora do estádio. A esperança foi superada pela desilusão.

Não sei afirmar o momento ao certo que o tumulto em um dos setores da torcida começou. Estava tão ligada no jogo que só depois de ouvir alguns estrondos é que fui observar que estava acontecendo algo no setor amarelo, localizado na parte inferior da arquibancada. O que vi foram pessoas correndo, policiais na beira do campo e um pouco de fumaça.

Não consegui entender ao certo o que estava acontecendo, uma vez que os estrondos de bombas estourando continuavam e que havia pessoas correndo na arquibancada inferior. Por sorte esse setor localizado atrás do gol não estava lotado e era um pouco menor. Mas ainda assim era preocupante, tanto pelo risco para as pessoas que estavam lá quanto pela possibilidade do conflito se espalhar para outros setores. Pela transmissão da rádio, percebi que se tratava de briga entre torcedores e que fora do estádio também estava ocorrendo confusão.

Estávamos no setor vermelho superior, em um extremo mais distante do local em que o tumulto teve início. A esta altura já não era possível centrar a nossa atenção só no campo. E, ao olhar para a correria de pessoas que estavam no outro extremo do setor vermelho, acima do local onde o tumulto começou, quase que não vi o segundo gol do Palmeiras, que foi marcado pelo jogador Dudu.

Agora a esperança já não sustentava mais a torcida, o que acompanhou uma boa parte das pessoas foi a preocupação e a necessidade de tentar manter a calma, para não piorar ainda mais o conflito que agora estava se espalhando por outros setores da arquibancada. Era possível ver assentos de algumas cadeiras sendo arremessados e pessoas tentando se afastar dos locais em que o gás de pimenta foi lançado. Nós, que estávamos relativamente distantes, também nos preocupamos com a correria no setor vermelho superior, que nos fez deslocar alguns metros para o lado e impulsionou muitas pessoas a correrem para fora do estádio. Mas lá também não seria seguro. Ligada na transmissão da rádio, pude ouvir que na esplanada e no entorno do Mineirão estava ocorrendo um grande tumulto entre alguns torcedores, e também com a polícia.

Avaliamos que seria melhor esperar as coisas acalmarem dentro do estádio. A mesma decisão foi tomada por várias pessoas que optaram por esperar um pouco mais, talvez por saberem que lá fora não seria mais seguro do que dentro do Mineirão. E o jogo? Bem, dentro de campo a partida estava interrompida. Os jogadores estavam parados. A bola não rolava mais. Isso por volta dos 40 minutos do segundo tempo.

De repente, vejo que no placar estava escrito “evacuem o estádio”. Confesso que não entendi essa frase sendo utilizada naquele momento. Eu, minhas irmãs e nossa amiga começamos a rir e dizer que só poderia ser uma piada. A indignação de parte da torcida que ainda se encontrava dentro do Mineirão foi momentânea. Teve gente vaiando e fazendo comentários sobre o perigo que seria sair naquele momento. Quando avaliamos que daria para sair, resolvemos ir para o setor de bares e de lá ver como estava o entorno do estádio. Ali ainda não era possível perceber a proporção da quebradeira, uma vez que a parte de mais conflito não era onde estávamos.

Pós-eliminares

“Evacuem o estádio” do Mineirão. Foto: Luciana Cirino.

“Evacuem o estádio”. Essa foi a última frase que eu li e que estava registrada no placar eletrônico, minutos antes de deixarmos a arquibancada do Mineirão, após o término antecipado do jogo entre o Cruzeiro e o Palmeiras. Por dias fiquei tentando processar os fatos ocorridos, dentro do campo, que ocasionou a condução do Cruzeiro para a Série B em 2020, e, fora dele, na arquibancada, que terminou com a destruição de algumas partes do Mineirão. Talvez mobilizada pelo clima de final de ano e de temporada, poderia fazer um balanço do jogo e do Cruzeiro.

Deixo claro aqui que as minhas considerações são, diga-se de passagem, de uma torcedora do glorioso celeste de Minas Gerais e de uma admiradora do futebol.

Bem, inicialmente, enquanto torcedora que esteve na arquibancada para acompanhar esse último jogo, destaco que a presença da torcida foi significativa diante da possibilidade que estava posta: o rebaixamento para a Série B. Quase 30 mil torcedores e torcedoras estiveram presentes no Mineirão para acompanhar um jogo entre dois grandes times brasileiros, o Cruzeiro e o Palmeiras, nessa partida válida pela última rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol da Série A em 2019. E destaco que as atitudes de brigas e vandalismo que aconteceram não representam a posição da grande maioria da torcida. Ao contrário, está localizada em uma minoria de torcedores e torcedoras que perderam os próprios limites do torcer.

Após vários meses de realização do Campeonato Brasileiro de Futebol da Série A, em 8 de dezembro de 2019 ocorreu a última rodada. Foi um domingo decisivo para muitos dos 20 times que participaram do campeonato. Ainda que a primeira colocação já estivesse definida nesse dia, uma vez que o Flamengo se sagrou campeão dessa edição, havia alguns times que disputavam posições nas primeiras e nas últimas colocações da tabela. O palpite do placar eu acertei, em partes, já que a vitória foi para o Palmeiras.

Quis o destino que esse jogo envolvendo o palestra mineiro e o palestra paulista fosse decisivo para ambos? Penso que não. Não foi o destino que traçou o final desse roteiro em que o Cruzeiro, que era visto como um dos favoritos ao título no começo do ano, se encontrou nessa encruzilhada entre a Série A e a Série B. Afinal, no universo do futebol de alto rendimento, o resultado final de um longo campeonato como o Brasileirão é traçado a cada jogo, durante todas as rodadas. O Palmeiras disputava a segunda colocação. E o Cruzeiro que agonizava para não ser rebaixado, mais uma vez bobeou. Que lhe valha a experiência!

Por fim, pensando nas torcidas e na festa que elas podem promover, espero que não veja mais no Mineirão e em outros estádios pelo Brasil e pelo o mundo essa decepcionante frase “evacuem o estádio”. Não, não evacuem o estádio. Nós precisamos é ocupá-lo!

Vida longa ao grandioso Cruzeiro Esporte Clube e a todas as torcidas dos diversos clubes de futebol!


Notas

[i] Veja mais a respeito em https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/12/07/justica-decide-que-cruzeiro-e-palmeiras-tera-torcida-unica-no-mineirao-em-bh.ghtml . Acesso em: 18/12/2019.

[ii] Veja mais a respeito em Superesportes.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Luciana Cirino

Integrante do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (FULIA), da UFMG.

Como citar

COSTA, Luciana Cirino Lages Rodrigues. “Evacuem o estádio”: o Cruzeiro na última rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol de 2019. Ludopédio, São Paulo, v. 126, n. 28, 2019.
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