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“Foi o Obdulio”

Fábio Areias 20 de setembro de 2019

Outubro de 1948. O futebol uruguaio entra em greve. As demandas são as mesmas tão comuns nos dias atuais do futebol sul-americano: melhores salários, condições dignas de trabalho, o direito de ter um sindicato e a igualdade no tratamento entre jogadores e dirigente.

A outrora gloriosa celeste parece decadente. Os títulos de campeão olímpico em 1924 e 1928 e a Copa do Mundo de 1930 já são passado e nada indica que voltarão ao período de glórias. Uma doce evocação de um tempo que nunca mais se repetiria no futebol uruguaio.

Entre os líderes da greve estava o volante Obdulio Varela. De origem pobre e humilde, o jogador do Peñarol podia não ser o mais habilidoso, mas possuía uma personalidade fortíssima, coragem e valores muito bem definidos. Não aceitava a semiescravidão dos jogadores e a soberba dos dirigentes. Eles que tratassem como iguais aqueles que faziam o espetáculo.

Varela (centro) com dois companheiros da greve (imagem: Movimento Revista)
Varela (centro) com dois companheiros da greve em 1948. Foto: Reprodução/Movimento Revista.

Como a greve estava se prologando, Obdulio precisou voltar a trabalhar como operário. Os meses se passavam sem futebol e era necessário garantir o sustento. Se não era nas canchas precisava ser de outra forma. O mundo gira e a bola para.

Os jogadores se mantiveram firmes na greve. Até que os dirigentes tiveram que ceder a muitas das demandas dos jogadores. Termina a paralisação em 03 de maio de 1949 e o futebol volta a normalidade, ou quase isso.

Obdulio Varela, El Negro Jefe (O Chefe Negro), se recusa a atender às convocatórias da seleção. Não queria mais jogar por seu país se não lhe dessem um emprego público. Os maus resultados da Celeste, incluindo um sexto lugar no Sul-Americano de 1949, fizeram com que o presidente Luis Battle ordenasse a volta de Obdulio. Para atender ao apelo o jogador da seleção uruguaia faz somente um pedido:

— Prometa-me um emprego que volto a jogar pela seleção.

Pedido atendido. Acordo feito. Quem sabe não é evitado um vexame na Copa? Se o presente é preocupante, há um passado glorioso a ser preservado. A camisa não se mancha.

Obdulio Varela, capitão da seleção uruguaia na Copa do Mundo de 1950. Foto: Reprodução/Estadio n. 0374/Wikipedia.

Chega a Copa de 1950 e todo o brasileiro que acompanha futebol sabe o resultado: Uruguai campeão, Brasil em desespero coletivo. O escritor uruguaio Eduardo Galeano resume a essência do feito alcançado:

“Terminada a partida os jogadores foram festejar, menos Obdulio que escapou. Foi a beber nos bares do Rio. Caía a noite. A noite mais triste que a cidade se recorda, segundo dizem os que a viveram. Obdulio entrava no bares e em todos os lugares encontrava pessoas chorando, destruída. O que lhe dava uma pena tremenda. Como pôde cometer essa maldade? Pobre gente, pareciam ótimas pessoas. E bebia com eles. E eles dizendo: ‘Foi tudo culpa do Obdulio. Foi o Obdulio’. Por sorte ninguém o reconheceu. (LINK)

Imagem: Wikipedia
O Uruguai posando antes da partida decisiva contra o Brasil em 1950. Em pé, da esquerda para a direita, estão Varela, o técnico López, Tejera, dois membros da delegação, Gambetta, Matías González, Máspoli, Rodríguez Andrade e outro membro da delegação; agachados, entre outros dois delegados, estão Ghiggia, Julio Pérez, Míguez, Schiaffino e Morán. Foto: Wikipedia.

O “canalha” consolava os vencidos. Destroçados, impotentes, arruinados. Como algo tão simples como uma partida de futebol causava tamanha dor em um povo? Algo inexplicável. Só havia uma única certeza naquela noite de 16 de julho de 1950:

— Foi o Obdulio!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fábio Areias

Formado em Comunicação Social pela ESPM , cocriador do site Extracampo, projeto que busca apresentar as entrelinhas do futebol e seu impacto na sociedade e vida das pessoas.

Como citar

AREIAS, Fábio. “Foi o Obdulio”. Ludopédio, São Paulo, v. 123, n. 22, 2019.
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