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Formiga e os valores-notícia de mulheres negras no futebol

De férias, no dia 18 de dezembro de 2020, a volante Formiga defendeu a camisa do Esporte Clube Vitória nas Superfinais da Liga Fut7. O fato passou despercebido por grandes veículos da mídia, sendo divulgado em um site especializado na modalidade e nas redes sociais. Após a repercussão, no dia seguinte, veículos baianos fizeram matérias sobre o jogo e o próprio Vitória relatou o placar da partida em sua conta no Twitter. A demora foi ainda mais negativa para o clube, tanto pelo desempenho ruim da equipe masculina à época na Série B do Campeonato Brasileiro, quanto pelo fato de que uma das maiores jogadoras da história do Brasil – e baiana – defendeu a camisa rubro-negra sem apoio e/ou visibilidade.

Formiga é uma das atletas mais completas da história do futebol. Amplamente conhecida pelo público, é a jogadora que mais vestiu a camisa da Seleção Brasileira na história e a atleta com mais participações em Jogos Olímpicos. Miraildes Mota, seu nome de batismo, chegou a anunciar sua aposentadoria – apenas para ser chamada de volta porque não existia nenhuma substituta à sua altura. Ainda assim, o fato de ela jogar um torneio no Brasil não foi divulgado previamente nem pelo próprio clube.

Em Fazendo Gênero e Jogando Bola, a autora Enny Moraes fala sobre o preconceito contra jogadoras das primeiras seleções, um distanciamento entre o que era divulgado e queria ser mostrado pela mídia com relação às mulheres, encaixando-as no padrão de feminilidade vigente, versus o que elas realmente revelavam por seus corpos e comportamentos (2014). Soró, zagueira baiana, lésbica, negra, membro da Seleção que conquistou o Sul-Americano e disputou o primeiro Mundial Feminino na China em 1991.

Ela conta que jogadoras que tivessem um relacionamento entre si poderiam ser cortadas da equipe com alegações de que o relacionamento prejudicaria a atuação em campo. Além disso, nos arquivos da jogadora, as matérias jornalísticas sobre a equipe tentavam passar a ideia de que as jogadoras levavam uma “vida comum”, de orientação heterossexual. Um exemplo é a matéria de um jornal carioca sobre a goleira Patrícia, com uma foto da atleta amamentando a filha e o título “No peito e na raça: moças mandam preconceito para córner”. Patrícia foi cortada da Seleção, de acordo com o texto, por conta do choro da bebê Ana Júlia.

O jornalismo da época escondia aspectos das jogadoras que fugiam da expectativa de feminilidade. Atualmente, ainda se encontra essa necessidade de quebrar o tabu de que nem toda jogadora de futebol é masculinizada. Um exemplo é a quantidade de matérias sobre Tamires, lateral-esquerda do Corinthians, e o fato de ela ser a única mãe entre as jogadoras da atual Seleção. Tamires é branca, mineira, jogadora de um clube de São Paulo. Boa parte das suas entrevistas fala sobre as dificuldades na carreira por conta da maternidade.

Os valores-notícia no futebol

Neves (2020) estabelece uma relação entre os tradicionais valores-notícia de Silva (2005) e a cobertura futebolística. Da lista de 12, neste caso de Formiga, pode-se apontar os seguintes valores-notícia: proeminência, raridade, proximidade e surpresa. Desde o começo de sua carreira, Formiga foge dos holofotes: ela evita dar entrevistas e prefere deixar tudo o que tem a dizer dentro de campo. Justamente por isso, a cobertura da vida de Formiga pode ser feita usando como fonte as pessoas mais próximas a ela.

Formiga levanta a taça da final do Torneio Internacional de Manaus. Foto: Lucas Figueiredo/CBF.

Outro exemplo: especulação de que Marta defenderia o time de futebol feminino do Corinthians foi publicada em diversos veículos, repercutida em programas de TV e debatida amplamente nas redes sociais. Em se tratando de uma cobertura jornalística, de acordo com os conceitos de valores-notícia, a presença de Marta é noticiável por si só. A possibilidade de ela passar a jogar pelo Corinthians, clube que atrai milhões de torcedores e espectadores em todo o país, justifica a ampla repercussão. A proximidade também era natural – a maior parte dos veículos que cobre futebol feminino tem sede em São Paulo.

Por fim, quando Andressinha passou a defender o Iranduba, clube que se destacava nas disputas de Campeonato Brasileiro e Libertadores, os valores “surpresa” e “raridade” se sobressaíram à “proximidade”, já que ela jogaria por uma equipe do Amazonas. No entanto, o impacto do grande número de torcedores e torcedoras nos jogos do Hulk da Amazônia atraiu a atenção da mídia nacional e internacional. Mesmo de longe, ter um grande nome da modalidade, que jogava a NWSL, defendendo um clube amazonense – estado tido como pouco tradicional no futebol – furou a bolha nacional.

No caso de Formiga e o Vitória, é preciso observar a ordem de publicação da notícia. O site Futebol 7 Brasil noticia a presença da volante no time em uma matéria assinada por “Assessoria de Imprensa” após o jogo, na sexta (18) à noite. No sábado (19), três repórteres do Bahia Notícias publicam uma matéria com entrevista com jogadoras e a treinadora – só não entrevistam a própria volante. O Vitória, em seguida, publica uma foto de Formiga com a camisa do clube em suas redes sociais e um breve relato sobre o que aconteceu. Outros veículos, por sua vez, ou repercutem o post do Vitória, ou utilizam trechos da matéria do Bahia Notícias, para garantir a notícia.

No entanto, o fato de uma jogadora da Seleção Brasileira e do Paris Saint-Germain aproveitar um dia de férias para jogar uma partida por um clube brasileiro de fut7 não foi noticiado por veículos de alcance nacional. Além do Bahia Notícias, os outros sites jornalísticos que deram a notícia foram os também baianos BNews, Galáticos, Tribuna, Voz da Bahia e Bubu Notícias.

Se homens brasileiros que jogam futebol pelo Paris Saint-Germain e pela Seleção Brasileira aproveitassem as férias para jogar futsal, fut7, futebol de areia… por um clube brasileiro, este fato com certeza seria repercutido muito além dos veículos locais. Esses critérios de noticiabilidade se aplicam, inclusive, a jogadoras brancas ou de pele mais clara, quando se trata de clubes de maior expressão no futebol feminino brasileiro. Estes, por sua vez, estão localizados no Sudeste ou no Sul do país – a proximidade, mais uma vez, atuante.

O jornalismo esportivo e as mulheres negras nordestinas

Os critérios de noticiabilidade atuam no jornalismo esportivo do mesmo jeito que atuam nas editorias mais universais. Jogadores que têm uma história de quebrar recordes e se destacar em campo por décadas, que defendem a Seleção Brasileira, alcançam um patamar de ídolos. Eles se tornam personagens tanto quanto o jogo em si. Por sua proeminência, a presença deles atesta a noticiabilidade de um fato.

Como explicam Araújo e Araújo, os clubes nordestinos, apesar de estarem mais próximos dos torcedores das suas localidades, tinham menos visibilidade na mídia nacional concentrada na região Sudeste. Com isso, o processo de formação de torcedores e consumidores de futebol é pautado em torno dos clubes do eixo Sul-Sudeste.

A última taça e o abraço de Andressinha, símbolo da nova geração. Foto: Lucas Figueiredo/CBF.

“Os maiores e mais importantes grupos de comunicação e grandes anunciantes estão localizados na região Sudeste, pautando e produzindo materiais voltados aos clubes da região, porém com transmissão para todo o país. No esporte, os discursos disseminados criam uma identificação nacional com uma entidade distante o que gera hoje o grande número de torcedores destes times em todo o país, mesmo existindo campeonatos e times em seus estados e cidades.” (ARAÚJO; ARAÚJO, 2020)

No caso do futebol feminino, isto se amplifica devido à proibição da prática de futebol feminino que perdurou entre 1941 e 1979. Ou seja, mulheres nordestinas sofreram ainda mais com a falta de visibilidade e descaso da mídia nacional. Como citei em outro texto publicado no Ludopédio, na lógica racista e machista do futebol, mulheres negras são especialmente sensibilizadas. No caso de Formiga, uma mulher baiana, negra, retinta, lésbica e que não performa feminilidade acaba por ficar à margem mesmo após todas as suas conquistas.

Quando se pensa em jogadora de futebol, o estereótipo construído ainda é de mulheres masculinizadas, e a maior parte das jogadoras de futebol do Brasil é negra. Quando se fala destas atletas, o destaque é apenas no futebol. Já quando a jogadora se encaixa no padrão da feminilidade e/ou da heteronormatividade, os valores-notícia se aplicam. No entanto, conforme elas se afastam destes ideais, ainda há um apagamento de suas histórias e trajetórias pessoais. Muitas atletas, como Formiga, evitam falar sobre suas sexualidades, sua negritude e suas histórias fora das quatro linhas.

Jogadoras de regiões que têm menos destaque na mídia sofrem com este e outros apagamentos. Os critérios utilizados para noticiar o futebol feminino em veículos nacionais acabam não atingindo estes grupos e, consequentemente, uma jogadora do nível de Formiga acaba sofrendo com este apagamento de sua história.

Referências

ARAÚJO, Ana Flávia Nóbrega; ARAÚJO, Giseli Maria Sampaio de. Regionalização da Mídia Televisiva e a Construção da Identidade Regional: Uma Reflexão Sobre o Papel da TV Esporte Interativo. In: CONGRESSO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO NORDESTE, 19., 2017, Fortaleza. Anais eletrônicos: INTERCOM, 2017. Acesso em: 31 jan. 2021.

BELAS, Júlia. Quem conta a história das negras no futebol?. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 39, 2020.

MORAES, Enny Vieira. Fazendo gênero e jogando bola: futebol feminino na Bahia anos 80-90. Salvador: EDUFBA, 2014.

NEVES, Thalita. Noticiabilidade, Valor-notícia e Seleção Noticiosa no Jornalismo Esportivo. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 43., 2020. Anais eletrônicos: INTERCOM, 2020. Acesso em: 31 jan. 2021.


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Júlia Belas

Jornalista pela Universidade Federal da Bahia, mestre em Jornalismo Esportivo pela St. Mary's University, Chevening alumna 2015-16.

Como citar

BELAS, Júlia. Formiga e os valores-notícia de mulheres negras no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 4, 2021.
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