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Futebol Bolivariano (II): Venezuela

Fabio Perina 28 de janeiro de 2021

Essa trilogia busca tratar de possíveis vínculos entre o futebol e a ascensão daqueles regimes progressistas (ou ‘populistas’ segundo seus opositores neoliberais) que reivindicaram uma Revolução Bolivariana (ou Socialismo do Século XXI).

Conduzida por três líderes de origens populares: Hugo Rafael Chavez Frias na Venezuela (1999), Evo Morales Ayma na Bolívia (2006) e Rafael Vicente Correa Delgado no Equador (2007). Em termos práticos, uma conjuntura muito particular, diante da recusa à ALCA na primeira metade da década de 2000, em que se abriu uma decisão histórica entre avançar e buscar a superação do capitalismo e o imperialismo ou dar-lhe tempo de se reconstituir sobre novas bases. Em termos teóricos, movimentos que se propuseram a uma retórica de reabilitar termos chaves da esquerda, como socialismo, nacionalismo popular e anti-imperialismo, e tirá-la de sua paralisia pós-moderna e neoliberal. Uma tentativa inédita de revolução dentro da democracia burguesa ao misturar conciliação de classes com mobilização das massas.

Contudo, os três casos têm em comum que a conquista do governo com várias vitórias eleitorais ocultou o desafio de conquistar as condições estruturais do poder diante de uma contrarrevolução permanente do imperialismo norte-americano e das elites locais. Levaram não somente esse ciclo bolivariano como todo o ciclo progressista continental a um ponto de inflexão decisivo entre a interrupção/retomada ou o encerramento. “Se a velocidade rumo à barbárie foi mais lenta sob administração progressista, o sentido do movimento permaneceu inalterado” (SANTOS, 2019, p. 614). Colocando a necessidade de refletir sobre seus alcances e suas lacunas, sobretudo diante da lição revolucionária que é preferível errar com o povo do que acertar sem ele.

Equipe da Venezuela em 2012 contra o Uruguai. Foto: Wikipédia

CHAVISMO EM DECOLADA

Diante da política externa agressiva e a política social interna vigorosa, observadores mais desavisados tendem a rotular Hugo Chavez como o mais recente populista sul-americano. Ora, nenhum populista é por tanto tempo um ‘ilusionista’ que engana as massas apenas com retórica mas sem lhes oferecer benefícios concretos.

É preciso se entender que sua ascensão se deu nas condições objetivas que lhe eram possíveis: endividamento, empobrecimento, uma profunda crise de representação de partidos, sindicatos ao longo dos anos 80 e até do próprio Estado nos anos 90. Sua eleição em 98 somente é compreendida olhando dois antecedentes. Em 89, com a maior insurreição popular contra o neoliberalismo no continente e sua submissão ao FMI: o “Caracazo” com centenas de mortes pela repressão policial contra a população sob o genocídio do presidente Carlos Andrés Perez. E em 92, quando toda a revolta ‘espontânea’ do episódio anterior foi organizada por militares nacionalistas com a tentativa de golpe que, mesmo fracassada, colocou o Chavismo como a principal força (simultaneamente política e militar) de oposição pelos anos seguintes e lhe forjou a base de apoio mais leal por quase 3 décadas ate hoje.O que também é do desconhecimento de muitos que é uma liderança que vai muito além de discursos inflamados, mas também é um estudioso voraz e estrategista, o que se deveu às ávidas leituras durante a prisão na metade dos anos 90. Tanto é que suas imagens públicas mais freqüentes, depois de eleito, são com um agasalho com as cores amarelo, azul e vermelho da bandeira e com a boina militar cor “vinotinto”.

Chavez atravessou os primeiros anos de mandato na defensiva sequer contando com um partido de fato (mas sim o Movimento Quinta Republica, ou MVR, como uma apropriação pela esquerda do libertador Simon Bolivar quase dois séculos depois de suas conquistas) diante da inoperância dos demais partidos e aumento de abstenções eleitorais. É assim esperado que o governo se apoie no fortalecimento de movimentos de massa através do Estado ao tentar re-politizá-las.
2002 foi o ano que o Chavismo teve o seu ‘batismo de fogo’ ao resistir através do povo nas ruas e dos militares.

Primeiro, em abril, ao golpe midiático (que chegou até a sequestrá-lo por alguma horas conforme o famoso documentário: “A revolução não será televisionada”). E depois, em dezembro, ao “paro”(ou locaute) empresarial que ameaçou levar a economia ao colapso através de sabotagens, desabastecimentos, contrabandos e ‘câmbio negro’. Uma das principais ações de Chavez diante dessa ofensiva imperialista foi expulsar os militares golpistas, permitindo aplicar solidamente nas décadas seguintes uma das mais ilustres frases de Simon Bolívar e deixar uma lição a todo o continente: “infeliz do soldado que atira contra seu próprio povo”.

De lá para cá em quase duas décadas o Chavismo foi do céu ao inferno e a polarização social vem repetindo os mesmos contornos claros que tomou desde então: as sabotagens empresariais e midiáticas para promoverem o caos e de outro lado a autodefesa e intensa mobilização das massas. Sem dúvida essa é a maior lição que deixa ao Lulismo que persistiu por mais de uma década em seu erro mais recorrente e fatal: deixar de mobilizar as massas quando chegou ao governo com o mesmo vigor com que fazia na oposição.

“Chávez vale-se dos preços internacionais excepcionalmente altos do petróleo para ampliar programas sociais, fortalecer o poder de intervenção do Estado, reestatizar empresas antes privatizadas e dar impulso à sua agenda internacional” (MARINGONI, 2009, p. 182-3).

Chaves e Maradona. Foto: Reprodução Twitter

Somente na metade da década de 2000 que o chavismo finalmente foi colhendo resultados econômicos, políticos, diplomáticos e até ideológicos que deram a Chavez a ousadia ao finalmente se declarar o “Socialismo do século XXI” junto da palavra de ordem “ALCA al carajo!”. Ou seja, uma retórica de protagonismo ao liderar a América Latina, como que reencarnando o bolivarianismo original, e tentando deixar para traz quase dois séculos de estagnação, isolamento e colonialismo cultural. Nas relações internacionais, recuperou o protagonismo da OPEP após quase 30 anos de paralisia dessa organização de países produtores de petróleo. E principalmente barrou a rapinagem do imperialismo norte-americano ao liderar a recusa continental à ALCA. O gesto emblemático dessa recusa se deu em Mar del Plata (Argentina) no final de 2005.

Um encontro de militantes, presidentes e lideranças populares (inclusive Maradona) com ecos no Fórum Social Mundial de Porto Alegre dos últimos anos com o mote: “outro mundo é possível”. O projeto de Washington de dolarizar o livre-comércio nas Américas sob suas diretrizes ficou desde então reduzido a poucos países como Chile, Peru e Colômbia que preferiram tratados bilaterais com os Estados Unidos ao invés de aprofundar laços com seus vizinhos. Assim como protagonista de uma agenda propositiva à região: integração energética, financeira (Banco do Sul) e até comunicacional (Telesur).

Esse constante desafio de institucionalizar a ‘chama’ revolucionária se tornou menos difícil com finalmente criar o Partido Socialista Unificado Venezuelano. “Em uma palavra, a Revolução Bolivariana precisaria superar o Chavismo para avançar” (SANTOS, 2019, p. 51). O que é uma das tarefas mais difíceis: a luta pela consciência e vontade revolucionárias. O que colocou uma disputa direta tão polarizada entre seu tão particular socialismo contra o entulho do atraso de uma economia e uma sociedade impregnadas por décadas de rentismo, elitismo e individualismo.

O problema foi que o modelo de desenvolvimento concentrado nos preços do petróleo (enquanto as demais indústrias seguiam precárias com a necessidade de importar a maioria dos bens de produção e até bens de consumo) mostrou seu esgotamento por não diversificar sua base produtiva na proporção que as demandas sociais exigiam. Em termos marxistas, o desenvolvimento das forças produtivas estevem muito aquém das relações de produção. Para a economia e para a política revolucionária ficaram o alerta para a mesma postura: que não tomar as atitudes corretas durante a fase boa custará muito caro quando vier a fase ruim.

LA VINOTINTO

A particularidade da Venezuela em relação aos outros dois países bolivarianos é que foi onde o futebol se encontrava mais atrasado. Vide nos anos 50, 60 e 70 o país ter ficado mais conhecido por sediar torneios de exibição entre clubes tradicionais sul-americanos e europeus do que pelo próprio desempenho. Muito por conta da influencia de outros esportes de massa norte-americanos com influência no Caribe. Mas é justamente na segunda metade da década de 2000 que emerge como tema de interesse público não somente o futebol como o esporte como um todo na agenda política. Inclusive em suas diversas facetas ao turbinar investimentos desde o esporte comunitário (junto a diversas iniciativas de comitês e assembléias populares e multirões de saúde de primeiros cuidados) ao esporte de alto rendimento.

A Copa América de 2007 foi a principal divulgação da riqueza e organização do regime naquele momento ao apresentar estádios novos ou reformados em 9 cidades. Foi a “cereja do bolo” para celebrar a época de maior otimismo no país e aprovação popular do chavismo. Porém dentro de campo os resultados foram discretos: na fase de grupos vitória contra Peru (a primeira em toda a história da Copa América!) e empates contra Bolívia e Uruguai. Porém nas quartas o reencontro com os tradicionais uruguaios teve uma amarga derrota de 4 a 1.

Seleção da Venezuela na Copa América 2007. Foto: Wikipédia

A “vinotinto” foi deixando de ser saco de pancada no continente com as primeiras vitórias contra o Brasil (2 a 0 em amistoso em Miami em 2008 com gols de Maldonado e Vargas) e contra a Argentina (1 a 0 em Puerto La Cruz em 2011 com gol de Amorebieta). Essa foi a prévia para um ótimo trabalho do treinador Cesar Farias para a Copa América no mesmo ano na Argentina. Quando eliminou o Chile nas quartas, porém perdeu para o Paraguai nos pênaltis nas semis.

CHAVISMO EM TRANSE

Em suma, o auge do futebol venezuelano naquela virada de década foi uma das últimas alegrias do comandante Chavez, que 2 anos depois saiu da vida para entrar para a história. O que explica como Maduro se sustenta até hoje no governo como o sucessor do Chavismo ao estar cercado por dificuldades ainda maiores. Ao longo dos últimos anos os dois eventos cruciais de 2002, o golpe e o locaute, se fundiram em guerra hibrida permanente.

Sobretudo no início 2019, o golpismo veio de todos os lados: Trump no inimigo do norte como sempre, vizinhos hostis como Duque na Colômbia e Bolsonaro no Brasil, além de uma coalizão de vários governos latino-americanos e europeus que provisoriamente reconheceram, entre 2019 e 2020, o fantoche Juan Guaidó como presidente auto-declarado! Porém a partir de 2021 a oposição ao chavismo se enfraqueceu com Guaidó perdendo o cargo de deputado e sobretudo perdendo a maioria no Congresso. Se Maduro não tem mais os mesmos altos preços do petróleo de antes nem sequer o mesmo carisma de Chavez, ao menos a principal lição que aplica é de tentar não se afastar das massas—e lutar contra a convicção do restante do mundo que a revolução já se esgotou.

Embora o atual governo Maduro e os militares se enfraquecem diante do embargo e sanções comerciais e financeiras internacionais, eclode como paradoxo que ambos se fortalecem com o discurso anti-imperialista. O recente caso de mercenários yankes presos por pescadores venezuelanos é uma prova evidente da força dos comitês populares de autodefesa bloquearem a contrarrevolução!

Por falar em militares, é preciso refutar uma das piores fake news dos últimos anos pela qual se assemelha Chavez a Bolsonaro pela vaga noção de “origens militares”. Simplesmente porque na atualidade (e certamente em toda a história sul-americana) cada lado está em posição radicalmente oposta: os militares venezuelanos como os mais nacionalistas e progressistas e os militares brasileiros como os mais entreguistas! O que faz lembrar a célebre e sempre necessária frase de Bolívar: “maldito é o soldado que aponta sua arma contra seu povo”. Em suma, além do respaldo militar, a melhor defesa do povo venezuelano é a profunda solidariedade que se multiplica a toda parte. Vide as milícias bolivarianas que segue as lições da Revolução Cubana de, na falta de capitais econômicos, aperfeiçoar os “capitais humanos” e nunca baixar as armas diante do imperialismo.

“Ao apostar em uma rendição incondicional do bolivarianismo, a oposição golpista ignora essa realidade, e empurra a disputa para o terreno da força. Sem base popular, milita nas redes sociais. Sem apoio na caserna, aposta na intervenção externa”(SANTOS, 2019, p. 86).

CONCLUSÃO

Ironicamente nos últimos anos o contraste é flagrante entre futebol e política. Oposto às dificuldades de Maduro de enfrentar o imperialismo norte-americano (associado à burguesia local), a seleção venezuelana dá sinais que ainda pode se destacar mais internacionalmente. O ótimo trabalho do ex-goleiro Dudamel como treinador com o vice-mundial sub-20, em 2017, o levou para a seleção principal. A geração do talentoso Soteldo pode levar adiante a evolução iniciada pelos veteranos Arango e Rondón. Meses antes da Copa América 2019 conseguiu uma surpreendente vitória sobre a Argentina em amistoso em Madri por 3 a 1.

Durante o torneio segurou um empate sem gols com o Brasil em Salvador e mesmo eliminada pela Argentina nas quartas fez uma partida de igual para igual. (Quis um capricho do destino que, assim como na Copa América de 89, em 2019 Brasil e Venezuela novamente se cruzaram na fase de grupos justamente em Salvador e o empate sem gols é mais um feito do país vizinho em sua evolução–assim como empatou com o Brasil em La Plata (ARG) na edição de 2011. Em comum também que em ambos os casos cada treinador brasileiro, Lazaroni e Tite, viveram momentos turbulentos com a torcida local que depois foram se apaziguando no caminho ao título). Fora de campo vale um breve registro que essa última edição do torneio continental contou com a elevação da migração venezuelana ao Brasil, o que permitiu através do futebol se tomar um pouco mais de contato com sua dura realidade.

O futebol venezuelano segue como “colista” (na lanterna) do continente: um dos poucos países sem título da Libertadores e o único ainda sem ter jogado uma Copa do Mundo. Mas a revolução venezuelana no futebol é uma chama ainda viva, se talvez nem tanto por sua velocidade, mas certamente pelo seu sentido.

Materiais de Apoio

https://revistaforum.com.br/global/exclusivo-mercenarios-presos-na-venezuela-eram-guarda-costas-de-trump/

https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/copa-2014-licoes-a-partir-da-copa-america-da-venezuela/

 

Referências

https://www.brasildefato.com.br/2020/11/21/15-anos-do-nao-a-alca-superacao-do-capitalismo-ainda-e-a-alternativa?fbclid=IwAR24wTZd6MLbDt9Mh_I1F6Nc7UI32fM0xIK37gK8OckvJlt1NDAqsVLJpTU

DOS SANTOS, Fabio Luis Barbosa. Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016). Editora Elefante, 2019.

FIGUEROA, Amilcar. ¿ Reforma o revolución en América Latina? El proceso venezolano. América Latina hoy¿ reforma o revolución, p. 133-156, 2009.

MARINGONI, Gilberto; DA COSTA, Emília Viotti. A revolução venezuelana. Unesp, 2009.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Futebol Bolivariano (II): Venezuela. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 51, 2021.
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