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Futebol de várzea é patrimônio?

Raphael Rajão Ribeiro 7 de novembro de 2018

Foi a partir dessa pergunta que se constituiu em Belo Horizonte, em 2016, uma comissão que reuniu técnicos da Fundação Municipal de Cultura e da Secretaria Municipal de Esportes e Lazer. Com a finalidade de elaboração de um Inventário do Futebol Amador em Belo Horizonte, seus estudos auxiliariam o desenvolvimento de medidas de salvaguarda do patrimônio imaterial da cidade e de políticas públicas voltadas para o futebol amador[1].

Sua criação tem origem num movimento anterior, dos próprios envolvidos com o futebol de várzea e da Câmara Municipal de Vereadores, que apontaram a necessidade de instrumentos de proteção da prática, em especial de seus campos. Por duas legislaturas consecutivas, projetos de lei que visavam promover o tombamento dos espaços de jogo foram submetidos e aprovados[2]. Foram, contudo, vetados em função de tentarem regulamentar política que é privativa do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município. Dada a força com que as medidas eram cobradas, criou-se uma comissão que embasaria estudo para a posterior avaliação do conselho responsável.

Campo Inconfidência F. C.
Campo do Inconfidência E. C. Foto: Ricardo Laf/Fundação Municipal de Cultura.

Ao final de 2018, o inventário foi concluído. Após a realização de pesquisas em 42 clubes e 31 campos dedicados à prática em Belo Horizonte, a produção de um dossiê e de um documentário sobre o futebol de várzea na capital mineira, está encaminhando o reconhecimento dessa manifestação como patrimônio cultural de natureza imaterial do município. Com a aprovação da abertura do processo de registro em dezembro de 2017, agora aguarda a confirmação da avaliação inicial, com a aprovação de um plano de salvaguarda, que prevê ações de proteção e de promoção dessa expressão esportiva e cultural com vistas à sua continuidade no cotidiano da cidade, especialmente em suas regiões periféricas.

Antes que se trate dos elementos que embasam essa percepção do futebol de várzea local como patrimônio cultural do município, vale uma breve reflexão sobre os caminhos percorridos até os dias de hoje, quando essa discussão se tornou viável tanto no espaço acadêmico, quanto nas instâncias de governo.

Em que pese a dificuldade de manutenção de campos por clubes de extração popular desde os primeiros anos da prática do futebol no Brasil, os processos de metropolização dos principais centros nacionais foram, marcadamente, o fenômeno mais dramático para a sobrevivência do futebol amador pelo país. A rápida reconfiguração do tecido urbano e a aceleração da especulação imobiliária tiveram impactos profundos sobre a forma como essa prática esportiva de matriz comunitária se organiza hoje. Apesar de campos seguirem aparecendo e desaparecendo, foi nesse período que isso aconteceu de forma mais consistente, conferindo o perfil que a prática apresenta hoje nas principais capitais brasileiras.

Tal fenômeno se concentrou principalmente entre os anos 1960 e 1980, ou seja, em pleno regime militar. Num período no qual mecanismos de legislação urbanística para a proteção aos campos eram praticamente nulos, seus praticantes desenvolveram estratégias, as mais variadas, para sobreviverem às ameaças contra a continuidade do futebol de várzea.

Paralelamente a isso, políticas voltadas ao patrimônio cultural ainda se agarravam às tradições varguistas de criação do SPHAN, com a ênfase nas construções do período colonial, com a valorização, sobretudo, da individualidade e dos aspectos artísticos e arquitetônicos das edificações. Era ainda incipiente a visão mais ampliada, que incluía manifestações culturais de cunho tradicional e popular, bem como uma percepção abrangente do ambiente urbano, para além das construções pensadas isoladamente. Não por acaso, era fora do órgão responsável pela política de patrimônio que essas outras noções se desenvolviam, com destaque para atuação do Centro Nacional de Referências Culturais/CNRC.

Mecanismos tradicionais de proteção do patrimônio, como o tombamento, só seriam mobilizados para a preservação de manifestações culturais de origem popular nos anos 1980, com a emblemática inscrição federal do terreiro Ilê Axé Iyá Nassô Oká, conhecido por Casa Branca do Engenho Velho, no ano de 1986. Exemplos nas esferas estaduais também eram vistos. Contudo, tais casos ainda seguem raros, com a pouca utilização desse instrumento legal para além das já consagradas edificações de pedra e cal do período colonial ou de exemplares canônicos da arquitetura nacional.

Apesar disso, um movimento de ampliação do espectro de atuação das políticas patrimoniais se desvelava. Um avanço lento e, em certa medida, atrasado frente a toda a pressão que lugares de expressão da cultura popular sofreram ao longo da metropolização recente pela qual as grandes cidades brasileiras passaram. Não por acaso, pela mesma época em que o terreiro Ilê Axé Iyá Nassô Oká era tombado na esfera federal, os frequentadores de um dos poucos complexos de campos de futebol de várzea de São Paulo que resistiram à reconfiguração por que a capital paulista havia passado nas décadas anteriores começavam a se organizar.

Era o Parque do Povo, à época, no final dos anos 1980, um espaço que mantinha nove campos de futebol de várzea que foram capazes de sobreviver à transformação da região do Rio Pinheiros. No espaço eram também mantidos um circo-escola e uma companhia de teatro. Ameaçados pelo avanço da urbanização e pressionados pelos proprietários que pretendiam negociar o terreno, clubes esportivos e grupos artísticos se uniram para requisitar o tombamento do espaço, dando início a uma ação pioneira de preservação de espaços de jogo por meio de instrumentos de proteção ao patrimônio cultural.

A partir da demanda apresentada ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo – CONDEPHAAT, uma equipe de especialistas da Universidade de São Paulo, dentre os quais Sebastião Witter, José Guilherme Magnani e Odette Seabra, associou-se aos técnicos da Secretaria de Estado da Cultura para desenvolver o estudo. Todo processo culminou no tombamento do Parque do Povo no ano de 1994, tornando-se uma iniciativa referencial de proteção de espaços vinculados ao futebol de várzea.

Evolução dos Clubes no Parque do Povo
Evolução da distribuição dos campos dos clubes no Parque do Povo. Fonte: CONDEPHAAT. Processo no. 26.513/1988. Estudo de tombamento do Parque do Povo.

Os limites dos instrumentos de preservação do patrimônio cultural rapidamente seriam percebidos, já que, mesmo sem que o tombamento fosse revogado, o Parque do Povo foi inteiramente descaracterizado no ano de 2006. Os oito campos que haviam sido identificados no estudo final foram destruídos. O local tornou-se uma área verde destinada a prática de atividades atléticas como corridas e caminhadas, alinhando-se ao modo de vida das classes altas e médias que ocupavam a região do Itaim Bibi. O caso do Parque do Povo é exemplar tanto do ponto de vista das possibilidades das políticas de preservação do patrimônio cultural, quanto de suas fragilidades[3].

Vista aérea do Parque do Povo
Atual configuração do Parque do Povo, sem a presença dos clubes varzeanos e com um campo gramado de acesso restrito. Fonte: Google Earth.

Os anos 2000 vivenciaram nova etapa de ampliação das possibilidades dessas políticas, com o surgimento do registro do patrimônio cultural de natureza imaterial. Tal instrumento tinha por objetivo abarcar a diversidade das expressões, criando ações de salvaguarda para manifestações que não se restringissem apenas a representações físicas, como edificações, mobiliários, obras artísticas e itens documentais. Era a afirmação de aspectos intangíveis da realização humana.

Foi com base nessa nova metodologia que se propôs o desenvolvimento do Inventário do Futebol Amador em Belo Horizonte. O levantamento de dados sobre os campos e as entidades apontou para a constituição de uma cultura esportiva popular que articula um circuito próprio dessa vertente da modalidade; formas específicas de organização do jogo; vínculos comunitários e territoriais, os quais foram construídos na experiência da cidade.

As aproximações entre o futebol de várzea de Belo Horizonte e a trajetória da cidade, especialmente de suas regiões periféricas configuram o seu valor como referencial de pertencimento e identidade com a capital mineira e seus territórios, o que leva à indicação dessa modalidade esportiva como um patrimônio cultural local. Ao acompanhar o desenvolvimento da prática foi possível perceber sua capacidade de adaptação às transformações do meio urbano.

Final do Campeonato Amador de BH de 2016
Final do Campeonato da 1ª divisão amadora masculina adulta de Belo Horizonte de 2016, no Estádio Independência. Foto: Ricardo Laf/Fundação Municipal de Cultura.

Apesar dessa vitalidade, inúmeros são os riscos para a sua sustentabilidade numa metrópole que vivencia cotidianamente o esgotamento das áreas de expansão territorial. Esses e outros desafios nortearam o debate com os atores envolvidos com o futebol de várzea local no processo de elaboração de um plano de salvaguarda que contemplasse ações com vistas à continuidade dessa manifestação esportiva e cultural.

Em minhas próximas participações pretendo aprofundar os temas que compõem a conclusão do estudo, com as discussões acerca da conformação de uma cultura esportiva popular, sobre o significado dos campos para a organização da prática, as transformações recentes por que vem ela vem passando, bem como as perspectivas futuras e as propostas para a preservação e manutenção dessa vertente comunitária do futebol.


[1] Comissão foi instituída pela Portaria Conjunta FMC/SMEL Nº 001/2016, publicada no Diário Oficial do Município em 6 de fevereiro de 2016.

[2] O Projeto de Lei Nº 1.373/10, de autoria do Vereador Adriano Ventura, que autorizava o Executivo a criar o programa de preservação, revitalização e tombamento dos Campos de Futebol de Várzea em Belo Horizonte foi votado e aprovado em 1º turno. Recebeu substitutivo que não chegou a ir a plenário. Na legislatura seguinte, o mesmo vereador submeteu o Projeto de Lei Nº 6/16, que foi aprovado em 1º e 2º turnos.

[3] O caso é examinado em dois artigos: MAGNANI, José Guilherme; MORGADO, Naira. Futebol de várzea também é patrimônio. Revista do Patrimônio, Brasília, n. 24, 1996, p. 175-184 e SCIFONI, Simone. Parque do Povo: um patrimônio do futebol de várzea em São Paulo. Anais do Museu Paulista.  São Paulo, v. 21, n. 2, jul/dez, 2013, p. 125-151.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Raphael Rajão

Autor de A bola, as ruas alinhadas e uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). Graduado e mestre em História pela UFMG. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Escola de Ciências Sociais FGV CPDOC. Atualmente pesquisa o futebol de várzea em Belo Horizonte.

Como citar

RIBEIRO, Raphael Rajão. Futebol de várzea é patrimônio?. Ludopédio, São Paulo, v. 113, n. 8, 2018.
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