56.8

“Futebol desimportante”

Marcos Marques dos Santos Júnior 27 de fevereiro de 2014

Em homenagem a Manoel de Barros pelos seus 97 anos, à Dandra e ao Lucas companheiros amantes de poesia.

 Vídeo inspirador:

Venho por meio deste falar de um futebol diferente, o futebol do Poeta Manoel de Barros, trazido das memórias de sua infância, o futebol que os andarilhos de beira de estrada gostam. Barros lança um olhar “desimportante” sobre o futebol, um olhar encantador sobre um jogo encantador, ele, o que mais vendeu livros do gênero poesia no Brasil. Eu como atrevido que sou, leitor de Manoel, peguei emprestado os seus óculos para ir olhando e escrevendo a parte que me toca desse jogo (em grande parte também de minha infância). Esses óculos amenizam a miopia e ajudam a enxergar melhor certos fenômenos (veja o vídeo que me inspirou ao final do texto). Abre alas Manoel de Barros:

“Nada havia de mais prestante em nós senão a infância. O mundo começava ali. Nosso campo encostava na beira do rio[…]”
“[…] Chambalé nosso técnico impunha regras: só pode mijar no rio e não pode jogar de botina. Sebastião era centroavante. Chutava no rumo certo. Sabia as variações da bexiga no vento e botava no grau certo. Quando alguém enfiava as unhas na pedra abria uma vaga […]”
Manoel de Barros
PELADA DE BARRANCO (pág. 141)

Manoel de Barros fala muito de fauna e flora em suas poesias. O poeta proseia muito sobre bicho e planta e quando nos damos conta ele já se relacionou com todo mundo retirando hierarquias inúteis dessas interações e refinando o olhar sobre a natureza.

Afinal, o que nos impede de enxergar as coisas? Vejo uma aranha e não vejo a sua teia, quero ver a teia; chego mais perto e ainda não consigo vê-la, inclino minha cabeça mudando o ângulo do olhar e desse ângulo vejo a luz do sol bater na teia, vi! Podemos mudar o ângulo da pergunta agora: Será que o impedimento de enxergar não está em nós mesmos?

Às vezes basta mudar o jeito de ver as coisas, não é? Será que o brasileiro precisa falar mais sobre futebol, relacionar-se mais intensamente com esse fenômeno e com o seu próprio jeito ir formando opinião e dele ficar cada vez mais íntimo? Mas, de que jeito o brasileiro vê o futebol? Será que existe um padrão no olhar do brasileiro sobre o futebol? Essas são perguntas que chegam a ser existenciais, pois, segundo a maioria dos brasileiros, o futebol faz parte das suas vidas. A maioria dessas perguntas procurarei responder em outras ocasiões.

O brasileiro se apossou do futebol e o joga em todos os seus cantos, nas periferias de São Paulo, na Zona Leste (Cangaíba, Penha, Guaianazes, Itaquera etc.) ele é jogado, nas periferias de Campina Grande- PB é também muito bem jogado e nas praias de Caraguatatuba-SP é também muito bem jogado pelos gentis caiçaras e até mesmo em Cuiabá- MT onde nasceu Manoel de Barros.

Jogo de futebol na praia de Maragogi (AL). Foto: José Carlos Barretta.

Esses futebóis são importantes para nosso país, pois o tomamos, nos apropriamos e constituímos cultura com esse tipo de futebol que é tido como uma espécie de hora do aconchego, momento de festa, e o campo ainda é tomado como espaço privilegiado para ter com os amigos momentos prazerosos e quem joga bem esse futebolzinho ainda ganha de brinde certo destaque no bairro.

Futebol que é futebol no Cangaíba (Zona Leste de São Paulo), por exemplo, tem que ser jogado com os “Bolívia”, como são chamados com todo respeito os nossos amigos bolivianos, que chegam a São Paulo em sua maioria para ocupar as oficinas clandestinas de costura e trabalhar mais de 16 horas por dia em busca de uma vida melhor.

Depois da rotina semanal estafante de trabalho nas costuras da vida, seja no Cangaíba (ZL) ou ali no “Braszão” como é conhecido o Bairro do Brás (Centro) todos os sábados e domingos religiosamente eles acordam bem cedo, para aproveitar o domingo de sol ou de chuva, que também pode ser, viu. Todavia eles têm de aproveitar a folga até o “talo”, pois segunda-feira é dia de branco novamente.

O futebol intercultural com os amigos bolivianos acontece geralmente no Parque Ecológico do Tietê. Lá podemos jogar contra eles ou no time deles também, quando jogamos contra eles percebemos certas características das duas culturas futebolísticas, uma de mais ousadia para o ataque, mais individualismo e jogadas com mais efeitos e a outra, de mais coletividade e passes bem rentes ao chão, um jogo mais seguro. Prefiro mais o jogo com coletividade e passes rentes ao chão, por isso gostava também de jogar no time deles.

Já o futebol na Paraíba em minha infância era jogado no calçamento, ou seja, nas ruas mesmo, com traves de paralelepípedo sendo que o gol com um palmo e meio de altura a partir do chão não valia.

Engenheiros da bola. Foto: Lucas Ninno.

Era um jogo gostoso, mas meio dolorido também, lembro que em certo lance tocaram a bola para mim e eu nem toquei nela, deixei a bola passar entre as minhas pernas para pegá-la do outro lado, a bola passou entre as pernas do meu marcador também, ia ser um lindo lance (parecido com aquele protagonizado por… aquele que o Romário disse que calado ele seria um poeta), porém quando fui completar o drible, escorreguei nas pedrinhas da rua e caí me ralei todo no chão. O rachinha ali para mim esfriou na hora.

http://www.youtube.com/watch?v=UwxkM01xXsg

Ainda em Campina Grande-PB lembro que meu pai era diretor e técnico do Palmeiras do Catolé, ou melhor, Palmeirinha do Catolé (bairro em que cresci). Lembro que nas reuniões do time tinha que levar 2,00 R$ e se não levasse não jogava no domingo (mas se fosse boleiro bom, jogava sim!). Lembro que quando ele não escalou certo jogador num belo domingo, o cara se enfureceu e saiu correndo atrás dele, eles ficaram dando voltas num carrinho de sorvete, o desescalado e o meu pai fugindo dele. Meu tio Roberto também foi técnico do Palmeirinha, certa final quando íamos para o campo todos dentro de um caminhão caçamba, entoaram uma canção para ele: “É o Palmeiras, do Catolé, e o treinador é Roberto Cabaré!” (3x). Ali ele se sentiu o máximo!

Lembro-me de um jogo no estádio da cidade pelo campeonato paraibano de futebol, só não me lembro dos times… sei que um torcedor das gerais bem eufórico que xingava o bandeirinha (dizia que o bandeira tava com o braço engessado), esbravejava, se esgoelava, deixou cair sua “chapa” no fosso, chamaram os guardas para pegar de volta a dentadura dele só que eles pegaram um papel de chiclete que estava jogado no chão (ficaram com nojo) e jogaram de volta lá para cima, de volta para as gerais e o geraldino voltou a sorrir por completo.

Mal estar no futebol

Um colega de estudos disse através de um texto (O futebol continua o mesmo, só estamos míopes) que nesses tempos em que alguns pensam em abandonar o futebol devido a esse mal estar desencadeado pelas viradas de mesa, pelo último caso envolvendo Fluminense e Portuguesa, corrupção e etc. uma atitude válida seria se apropriar do mesmo. Assim disse o Marco Lourenço:

“A dificuldade, portanto, em propor um novo futebol e ao mesmo tempo reprovar a dinâmica deste “futebol moderno” está no entendimento do que é o futebol e o que é o esporte. Dizer isso não significa abster-se da indignação e da ação. É preciso se apropriar do futebol, seja ele comunitário, sindical, escolar ou o profissional espetacularizado.”

Te digo mais Marco Lourenço, aqui me apropriei do futebol da vida que tive até agora como andarilho do Nordeste à São Paulo e da capital agora em Caraguatatuba-SP, um futebol que começou nas beiras dos campos de “pelada” em Campina Grande-PB e se amo o futebol e me decepciono demais com ele devido à tantas mazelas feitas por tanta gente que o organiza profissionalmente é porque souberam me ensinar a gostar “dele”, me iniciaram bem, lá atrás.

Aqui me apropriei dos óculos e do olhar de Manoel de Barros (que ameniza a miopia citada por você) e desse futebol que nessa época (Copa do Mundo) parece que soa como uma ensurdecedora desimportância em nosso país, esse que é da rua, que é jogado com nossos amigos, sejam bolivianos ou quem quer que seja, mas que seja jogado com gente que te respeita.

Enfim, confesso que agora é esse futebol que importa para mim, confesso. Já o profissional espetacularizado como você disse… o fenômeno desse futebol me engoliu, é muita loucura, só posso falar desse aqui agora.

Com camisa x sem camisa. Foto: Victor Moriyama.

Numa certa jogada, num certo campinho longínquo do Brasil, todos jogam sem camisa devido ao calor, se dou um drible em alguém e pinga suor desse alguém em mim num resvalo que tivemos durante o drible, não tenho nojo disso, pois ali tem gente que joga com o coração… o futebol enriquece a cultura desse país que acolhe gente do mundo inteiro.

Você que vem de fora, de outro país durante a Copa do Mundo, faça um teste. Chegue a uma praia numa roda de bobinho e não fale nada, não peça a bola, só chegue na roda e veja como alguém tocará a bola para você, se isso não acontecer não somos o país do futebol.

 

Referências

BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros / iluminuras de Martha Barros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008.

LOURENÇO, Marco. O futebol continua o mesmo, só estamos míopes.

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Marcos Marques dos Santos Júnior

Paraibano de Campina Grande-PB. Professor de Educação Física no ensino público de São Bernardo do Campo-SP: na prefeitura atuando do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental e no estado lecionando no ensino médio.

Como citar

SANTOS JúNIOR, Marcos Marques dos. “Futebol desimportante”. Ludopédio, São Paulo, v. 56, n. 8, 2014.
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