Há poucos dias a imprensa noticiou a suspensão preventiva de Vitor Caetano, jovem goleiro do Figueirense Futebol Clube. Desde 2018 no clube de Florianópolis, o jogador foi flagrado com vestígios de cocaína e de um metabólito dela derivado no exame antidoping após o último jogo do time na Série B do Campeonato Brasileiro de 2020, contra a Ponte Preta. O resultado não foi contestado pelo clube, tampouco pelo atleta que, no entanto, afirma desconhecer como teria sido contaminado.  De qualquer forma, segundo as regras da Agência Mundial Antidoping (World Anti-Doping Agency – WADA), o atleta é, em última análise, o responsável pelo que é encontrado em seu organismo.

O caso de Vitor não foi o primeiro, tampouco deverá ser o último com punição pelo uso de drogas conhecidas como recreativas. O promissor Jobson, do Botafogo, e o bom Dinei, do Corinthians, foram punidos pelo consumo de cocaína. Que vítimas de um mal que nos assola, relacionado a um crime que, no fundo, pouco combatemos – o tráfico –, sejam condenados, já mostra o tamanho da contradição do establishment esportivo. Ademais, dá o que pensar esse tipo de condenação, uma vez que é certo que a ingestão, se aconteceu, não teve como objetivo a melhoria da performance esportiva e, de fato, os eventuais ganhos não compensam seus efeitos deletérios no rendimento. Resta a justificativa de que os esportistas devem ter comportamento exemplar, oferecendo aos fãs exemplos adequados de conduta. Pretende-se mostrar o esporte como algo que fosse fora da sociedade, superior a ela, de modo que lhe servisse de modelo. Algo mais ou menos semelhante ao que acontece quando atletas ou ex-atletas são alçados à condição de palestrantes motivacionais – quando falam de si mesmos – ou escritores de autoajuda – quando continuam falando de si mesmos.

Os futebolistas não deixam de consumir drogas recreativas legais, como o tabaco e o álcool. É famosa a narrativa segundo a qual representantes do Corinthians e de Ronaldo Nazário, em fins de 2008, não chegavam a um consenso nas negociações que levariam o astro ao Timão, quando o próprio jogador teria deixado a sala em que se realizava a reunião, junto com o então presidente Andrés Sanches e, entre si, teriam resolvido rapidamente o imbróglio. O destino de ambos teria sido um banheiro, aonde foram com o objetivo de em paz fumar seus cigarros. O Fenômeno foi, aliás, um contumaz consumidor de anti-inflamatórios no fim de sua carreira, drogas legais que o ajudaram a suportar as dores nos joelhos e seguir ainda uns anos na ativa. 

Tema delicado e constrangedor no futebol, o fumo já foi responsável por um conflito do ex-goleiro Marcos com jornalistas em uma entrevista coletiva. Perguntado se fumava, o titular do selecionado campeão do Mundial de 2002 exasperou-se e respondeu que sim, que todos sabiam que sim. Completando a resposta, não deixou de ameaçar denunciar as peripécias que os presentes faziam nas viagens para cobrir os jogos, caso seguissem insistindo em questões que o palmeirense considerava pessoais.

Afonsinho e Sócrates
Afonsinho e Sócrates. Foto: Reprodução Twitter

Se no que se refere ao álcool as coisas hoje são mais tranquilas – embora não muito –, no começo dos anos 1990 o treinador Nelsinho Batista não hesitou em afastar Evair do elenco do Palmeiras ao vê-lo saindo do vestiário, depois de uma partida, bebendo de uma latinha de cerveja. Não adiantou que o atacante justificasse que na Itália, de onde fora repatriado, era normal tomar algo no pós-jogo. Na década anterior, Sócrates e Casagrande davam entrevistas e se deixavam filmar e fotografar bebendo cerveja e fumando. Ambos foram vítimas da compulsão ao consumo de drogas, assumiram e expuseram publicamente essa condição – em admiráveis gestos de solidariedade e coragem –, e nunca se renderam à hipocrisia. Contemporâneos ao próprio tempo, não esconderam angústias, tampouco ideias.

Alguns jogadores mais antigos falam abertamente sobre o uso de drogas ilegais com vistas à melhoria do desempenho, como a famosa boleta, um dos nomes informais da anfetamina. Mário Sérgio, o craque campeão brasileiro pelo Inter em 1979 e da Copa Intercontinental pelo Grêmio em 1983, era um deles. Segundo contava ele, que bem atuou também como treinador e comentarista – em cuja condição morreu no acidente aéreo que vitimou a delegação da Chapecoense e os jornalistas e cronistas que a acompanhavam, em 2016 –, o uso de substâncias ilícitas nunca foi anormal no futebol brasileiro, tampouco no argentino, onde esteve por apenas seis meses.

Há algo de perverso nesse esquema esportivo. As drogas recreativas são consumidas continuamente na sociedade, e não será diferente no esporte, sistema que ademais depende do uso de substâncias diversas, legais ou ilegais, como mostra sua história. Acabam sendo vítimas os que mais se atiram ou são atirados no processo, em especial os que compõem as camadas mais baixas da massa de trabalhadores da bola.

“Hora da amarelinha”, alguém dizia no Noroeste do Rio Grande do Sul para os jogadores do Sport Clube Gaúcho, de Passo Fundo. Glicose, complexos vitamínicos, o que fosse, era aplicado nos vários braços estendidos. “A um canto, o fogareiro aquecia o estojo de metal com água ou álcool fervente dentro do qual boiava a seringa de vidro. O enfermeiro aplicava uma dose, mergulhava a seringa no estojo, catava-a com a pinça e logo a injetava em outro. Era rotineiro” [1]. Não foram poucos os naqueles anos que se infectaram de hepatite C e que foram, mais ou menos rapidamente, morrendo em função dela. Lumpemproletariat, como explicou o velho Marx.

Ainda ignoramos o desfecho da história do doping de Vitor Caetano, mas me alegra saber que o Figueira não deixou seu funcionário abandonado. Espero que a corda não arrebente do lado mais fraco e que o jovem goleiro siga sua carreira. Quanto a nós, que não jogamos futebol, melhor que encaremos a questão do uso de drogas por atletas não como um problema exclusivo do esporte, mas da sociedade. Melhor que tentemos debater o tema com tranquilidade e sem moralismos. Estamos todos implicados.

Sob o signo da morte, abril de 2021.

 

Notas

[1] https://gauchazh.clicrbs.com.br/esportes/noticia/2013/05/dos-onze-jogadores-do-gaucho-sobraram-apenas-tres-4141928.html

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Futebol: drogas de vidas. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 33, 2021.
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