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Futebol feminino: não usarás o masculino como parâmetro

Luciane de Castro 26 de março de 2017

O texto desta quinzena, assim como o anterior, tem a intenção de trazer para reflexão qual futebol feminino queremos. Claro que há um parâmetro utilizado na análise do ambiente da modalidade e o futebol dos homens é este parâmetro.

Tomo como base o ocorrido no Atletiba, que foi transmitido pela internet, e toda a discussão que se desenrolou após a Federação Paranaense impedir o início do jogo alegando que a equipe presente para fazer a transmissão da partida não estava credenciada.

Há muito se debate sobre os direitos de transmissão, as cotas televisivas distribuídas entre os clubes de maneira desigual e todo impacto gerado nos clubes. Sem contrato de transmissão com a Rede Globo, Atlético Paranaense e Coritiba se uniram para uma histórica transmissão via Youtube.

O que foi novidade para o universo do futebol dos homens, acontece com frequência no futebol das mulheres e é este gancho que pego para os questionamentos necessários acerca do crescimento que tanto almejamos para o futebol feminino.

Bradamos por mais visibilidade entendendo que os meios de comunicação com mais ingresso nos lares sejam os nossos porta-vozes, entretanto isso tem um preço. O exemplo da Rede Globo é mais que perfeito: eu detenho os direitos de transmissão, logo eu decido quando exibir. Ao transpor os limites do profissionalismo, corremos o risco de nos submeter às regras que combatemos no que diz respeito, sobretudo, ao horário dos jogos.

E as cotas? Com o ranking sendo alterado a cada ano e referenciando as equipes masculinas de camisa, teríamos a mesma prática vigente hoje? Teriam as equipes com mais tempo de dedicação à modalidade, direito à cotas mais significativas ou estas seriam dedicadas aos clubes com mais “audiência”? Aliás, o padrão de cotas seria replicado no futebol feminino?

Se dedicamos tempo questionando este sistema injusto no futebol dos homens, seria saudável vê-lo aplicado ao futebol das mulheres? Isso se traduziria em desenvolvimento?

Enquanto isso, a UEFA Women’s Champions League tem seus jogos transmitidos pela internet com alcance mundial. A própria CBF experimentou a ação no Torneio Internacional de Manaus, transmitindo os jogos da seleção através de seu canal e, pasmem, com grande adesão do público. A Federação Paulista, através de sua TV na internet, tem transmitido jogos do Paulista Feminino Sub17.

Alguns clubes que disputam o Campeonato Brasileiro, tem utilizado sua página no Facebook para transmitir os jogos, fazendo assim, a alegria de quem, como eu, sofria para conseguir acompanhar algum jogo ou simplesmente obter os resultados para divulgação.

Exemplo de clube que utilizará a internet para transmissão do jogo de sua equipe feminina no Brasileiro: Grêmio. A partida deste domingo contra o Corinthians poderá ser acompanhada pelo canal do clube.

Imagem: Reprodução do site do Grêmio - www.gremio.net
Imagem: Reprodução do site do Grêmio – www.gremio.net

Nós somos um nicho. É preciso avaliar com racionalidade onde estamos, o que somos e o que queremos. E digo isso tomando um exemplo de bastante repercussão nas redes sociais, quando um jornal manauara tratou de modo misógino a vitória da seleção sobre a Rússia no mesmo Torneio Internacional.

Fizemos um estardalhaço. Através da internet cobramos pesadamente o jornal local, que no dia seguinte, publicou sua retratação. O que isso quer dizer? Quer dizer que a internet é um meio de comunicação com um leque amplo de possibilidades e com alcance global.

Atingimos não só o público local, como também o internacional que tem grande interesse no futebol praticado pelas mulheres daqui. Há dois anos me comunico com uma francesa muito interessada no nosso futebol e que sempre me pede links de onde acompanhar as competições.

Nas palavras do jornalista Marcio de Castro, da TV Record, durante o Ciclo de Debates no Museu do Futebol no ano de 2015, o papel da mídia alternativa é fundamental para levar aos grandes canais, as informações com checagens mais difíceis para a partir daí termos a difusão de informações.

Corinthians x Rio Preto em jogo válido pelo Brasileiro. Foto: EVELSON DE FREITAS / ALLSPORTS
Corinthians x Rio Preto em jogo válido pelo Brasileiro. Foto: Evelson de Freitas/Allsports.

Quando penso no crescimento da modalidade, penso na prática em mais locais e que se torne algo natural. Que ela aconteça não só em escolinhas, mas que seja inserida na educação escolar, que a história das mulheres no futebol seja amplamente divulgada, que seus ícones tenham o reconhecimento necessário, que as competições tenham suas regras respeitadas e as leis que regem a prática do futebol sejam cumpridas por todos, que o fato de uma menina se envolver de alma e coração com o jogo, não seja motivo de espanto ou supervalorização, que os direitos de todas as trabalhadoras do futebol sejam respeitados, que os valores recebidos sejam dignos ~não os que extrapolam os limites do bom senso e da realidade do brasileiro~  e que tramitem num teto e piso aceitáveis, entre tantas outras abordagens que me fogem agora.

O futebol dos homens não é exemplo absoluto de sucesso. É apenas exemplo de dominação pela prática, aquela a que às mulheres foi vedada por décadas, culminando com o atraso no desenvolvimento e a dificuldade na quebra do ciclo perverso da misoginia e negação da ocupação dos espaços.

Com todos os indicativos do que se processa no futebol masculino, é imperativo que nos pautemos neste mesmo processo que aos poucos míngua dentro do caráter esportivo e democrático que entendemos?

Não temos condições de avançar sem nos apegar à modelos que nos parecem obsoletos?

Não temos inteligência suficiente para criar um ambiente mais saudável e sustentável para todas as mulheres envolvidas com o jogo?

Não temos competência para abrir caminhos democráticos e legítimos de audiência e com proximidade com todos os envolvidos, denotando, inclusive, um caráter participativo da comunidade?

Temos a necessidade copiar uma identidade para nos sentirmos inseridas?

O que me ocorre neste momento é que devemos fazer uma análise honesta sobre todos os papeis e nos enquadrarmos dentro das possibilidades, sempre voltadas para a inovação e não para reproduzir erros crassos de condução e atitudes.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lu Castro

Jornalista especializada em futebol feminino. É colaboradora do Portal Vermelho e é parceira do Sesc na produção de cultura esportiva.

Como citar

CASTRO, Luciane de. Futebol feminino: não usarás o masculino como parâmetro. Ludopédio, São Paulo, v. 93, n. 28, 2017.
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