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O histórico desrespeito que acomete o Futebol Feminino no Brasil e o coronelismo dos cartolas

“Porque eu não quis!” Essa foi a resposta de Paulo Carneiro, presidente do Esporte  Clube Vitória, quando perguntado sobre o porquê não havia repassado o valor encaminhado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) para o pagamento das jogadoras do clube. Tendo em vista as dificuldades dos clubes de futebol diante das consequências da pandemia, somados à obrigatoriedade de manutenção da modalidade de Futebol Feminino, a confederação disponibilizou recurso para que dezesseis clubes repassassem o auxílio às futebolistas.

O presidente do E. C. Vitória – em ato pensado, talvez votado – confiscou o valor depositado pela CBF para cobrir o pagamento à equipe de mulheres e incluiu no caixa único do clube. Quando questionado sobre a medida por jornalistas da rádio Sociedade de Salvador, Paulo Carneiro respondeu: “Eu vou pagar, mas eu vou pagar quando quiser, quando eu achar que devo […] pra ficar claro, meu rapaz, é que quem manda no Vitória sou eu”. Repetiu diversas vezes que Futebol Feminino era demagogia: “o problema do Futebol Feminino é que tem apelo demagógico […], isso aí é coisa de um bando de comunista que assumiu o Vitória em 2017 e pra fazer politicagem”. O dirigente, no melhor estilo Castor de Andrade, ainda declarou que o clube iria pagar o que fosse prioridade, no caso, o Futebol Masculino: “a prioridade vai ser sempre o Futebol Masculino e acabou. Entendeu isso? O Vitória não entende o Futebol Feminino como prioridade, porque ele tem que sobrevier. […] Nesse momento quem está com dificuldade é o Vitória. A instituição Vitória. Se alguém tiver que pagar por isso, que pague, o Vitória é maior do que todos nós. Certo? O resto é palhaçada, demagogia desses esquerdopatas, vagabundos, que tem no mercado aí. Essa turminha que fica defendendo bloco feminino piegas, tava dentro do clube destruindo o Vitória”.

Passado o embrulho no estômago inicial, refletimos sobre a declaração de Paulo e o recorrente descaso histórico que acomete a modalidade, e que ainda hoje reverbera em discursos e práticas de muitos gestores. Na perspectiva de realizarmos um recorte cronológico de acontecimentos, não se sabe ao certo quando o futebol despertou o interesse das mulheres brasileiras. A primeira menção que encontramos é de 1913, na Revista Careta. Tratava-se de uma partida realizada no velódromo em São Paulo por ocasião de um chá festivo. Nessa mesma década, não era raro encontrar notas nos jornais sobre jogos beneficentes. É a partir de 1920 que se têm notícias das primeiras formações em clubes em diferentes cidades do país, além das apresentações de Futebol Feminino dos circos (BONFIM, 2019).

As opiniões variavam, por vezes, exprimiam admiração e incentivo. Outras, apenas a repulsa. As discussões ganharam corpo durante o Estado Novo. Mais propriamente entre 1940 e 1941, quando o Futebol Feminino explodiu nos subúrbios do Rio de Janeiro. Os jornais apresentavam opiniões fortes, sugerindo que a prática do futebol por mulheres representava a degeneração moral. Futebolistas foram consideradas prostitutas e os clubes de futebol e empresários, acusados de formar um esquema de tráfico de mulheres – comparado na época ao Tzvi Migdal. Em 1941, após um grande debate envolvendo diferentes setores da sociedade e o poder público, o Futebol Feminino foi proibido. O Decreto-Lei que criou o Conselho Nacional de Desportos (CND) baniu “a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”.

A anistia ao Futebol Feminino aconteceu apenas em 1979, quando a prática foi liberada. No entanto, as mulheres ainda estavam impedidas de jogar nos estádios e as partidas não poderiam ter arbitragem dos quadros oficiais das federações. A regulamentação ocorreu quatro anos mais tarde, assim como os primeiros campeonatos estaduais e a Taça Brasil de Futebol Feminino.

Entre as décadas de 1980 e 2000, exigiu-se que as mulheres que jogavam futebol seguissem um padrão de feminilidade. Em 2001, o regulamento do Campeonato Paulista de Futebol Feminino proibiu a participação de futebolistas que tivessem cabelos curtos. Na época, em matéria publicada na revista Placar, o jornalista Eduardo Arruda aponta para o que chamou de “instituição da jogadora objeto”.

É perceptível que o Futebol Feminino passou por mudanças significativas na última década. Grande parte impulsionada por movimentos de futebolistas mulheres que questionaram a diferença nos salários e nas gratificações entre as categorias Feminino e Masculino. Parte também pela inclusão da igualdade de gênero no Estatuto da FIFA, em 2015. De lá para cá, as confederações e federações nacionais tiveram que se adaptar as normas, destinando uma fatia dos investimentos à promoção da modalidade.

A chuteira. Foto: Caroline Soares de Almeida.

Infelizmente, ainda são comuns as situações de desrespeito, no que diz respeito ao Futebol Feminino – mesmo considerando uma dimensão global. Em dezembro de 2016, acompanhamos a equipe da Ferroviária (SP) na disputa da Libertadores Feminina no Uruguai. Presenciamos a então campeã entrar em campo com o quadro inteiro em febre, diarreia e sentindo fortes dores no corpo. O médico que acompanhava a equipe – e que também sentiu os sintomas – acreditava que o surto fora causado pela contaminação do alimento oferecido por uma empresa contratada pela organização do campeonato. Retrato da precarização vivenciada pelas jogadoras mesmo em se tratando de um evento de importante expressão da modalidade.

Na edição mais recente da Copa do Mundo de Futebol Feminino (2019), Marta, principal atacante do Brasil e referência mundial na modalidade, protestou exibindo as chuteiras sinalizadas pela campanha equidade de gênero no esporte, na primeira vez que o evento foi amplamente visibilizado na televisão aberta brasileira. Nem mesmo os argumentos da futebolista, alertando para a urgência de apoio ao Futebol Feminino, parecem chamar a atenção dos cartolas que ainda gerenciam os clubes como antigos coronéis. Pelo contrário, a obrigatoriedade de manter equipes de mulheres e, por conseguinte, a disponibilização de recursos via CBF, não garantem o mínimo de estabilidade para as atletas. Afinal, mesmo com orçamentos expressivamente menores que o das equipes de homens, a modalidade de Futebol Feminino foi a mais afetada, sendo a primeira a sofrer cortes na atual conjuntura de suspensão de treinos e jogos pela pandemia da Covid-19 em muitos clubes[1].  

Retomando o discurso do presidente do Esporte Clube Vitória, este, imediatamente gerou posicionamentos contrários por parte de torcedores e de instituições. Em nota, a Ordem dos Advogados do Brasil da Bahia divulgou apoio ao pagamento imediato das atletas do clube: “a obrigatoriedade do futebol feminino perante as normas da CBF, muito embora represente importante avanço, infelizmente não foi capaz de assegurar tratamento digno às desportistas, frequentemente desrespeitadas pelos clubes em nome dos quais bravamente competem”. Em outras palavras, para as mulheres que se dedicam ao futebol, ainda que em posições protagonistas, esse espaço permanece um território de lutas por visibilidade e reconhecimento, como apontam Goellner (2005), Rial (2014), Moraes (2014), Kessler (2015), Costa (2017), Pisani (2018), Bonfim (2019) e outras tantas pesquisadoras que têm se dedicado a essa temática.

Referências:

ARRUDA, Eduardo. FPF institui jogadora objeto no Paulista. Jornal Folha de S. Paulo, 16 de setembro de 2001. 

BONFIM, Aira F. Football feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais) – Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, SP, Brasil, 2019.

COSTA, Leda Maria da. O futebol feminino nas décadas de 1940 a 1980. Revista da AGCRJ, n.13, 2017, p.493-507.

GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. In: Revista Brasileira de Educação Física. v. 19, n. 2. São Paulo: abr./jun. 2005. P. 143-151.

KESSLER, Claudia Samuel. Mais que Barbies e Ogras: uma etnografia do futebol de mulheres no Brasil e nos Estados Unidos. 2015. Tese (doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Centro de Ciências Sociais e Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Porto Alegre, 375 p.

MORAES, Enny Vieira. Fazendo Gênero e Jogando Bola. Futebol Feminino na Bahia Anos 80-90. Salvador: EDUFBA, 2014.

PISANI, Mariane da S. “Sou feita de chuva, sol e barro”: o futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo (Tese). Universidade de São Paulo (PPGAS). São Paulo: 2018.

RIAL, Carmen. New Frontiers: The transnational circulation of Brazil’s women soccer players, in AGERGAARD, Sine; TIESLER, Nina (eds.). Women, soccer and transnational migration. London, New York: Routledge, 2014, p. 86-101.

Notas:

[1] Dos 16 times da primeira divisão do Brasileiro feminino, pelo menos seis cortaram salários ou dispensaram jogadoras ou ainda estão em débito com as atletas. Acesso em: 23 jun. 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Caroline de Almeida

Doutora e Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Possui Graduação em História também pela Universidade Federal de Santa Catarina e Bacharelado em Educação Física pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Desde 2011, é pesquisadora do Núcleo de Antropologia Audiovisual e Estudos da Imagem (NAVI/UFSC), atuando, principalmente, nas áreas de esporte, globalização e gênero.

Thaís Almeida

Doutoranda em Ciências Humanas (PPGICH - UFSC), Professora Universitária, realiza pesquisas sobre gênero e futebol.

Como citar

ALMEIDA, Caroline Soares de; ALMEIDA, Thaís Rodrigues de. O histórico desrespeito que acomete o Futebol Feminino no Brasil e o coronelismo dos cartolas. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 70, 2020.
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