1- Em 2013 o Corinthians defendia o título de campeão da Copa Libertadores da América, vencida de forma soberana no ano anterior, invicto e vazado apenas em quatro oportunidades. Em um dos primeiros jogos da campanha pelo bicampeonato – que malogrou em uma noite muito infeliz do árbitro paraguaio Carlos Amarilla – o Timão foi até Oruro, enfrentar o San José e a partida ficou marcada pela morte do menino Kevin Espada, de 14 anos, torcedor local que foi atingido no olho por um sinalizador disparado pela torcida visitante. Doze corintianos foram detidos e depois de semanas de gestão política, foram liberados e voltaram ao país. Um adolescente paulista acabou assumindo, já no Brasil, a responsabilidade pelo disparo.

Foi um crime o que aconteceu no país andino, mas o Corinthians permaneceu na competição, como se nada houvesse acontecido, desrespeitando a memória do garoto, o luto de sua família e o país vizinho. Seguindo na disputa, o clube se apequenou. É razoável pensar que o objetivo do disparo do foguete não fosse assassinar um torcedor adversário, mas é igualmente evidente que havia um claro risco embutido no ato. Não há inocência e o Corinthians, como instituição, teve, sim, responsabilidade pelo ocorrido, fosse porque a relação com as torcidas organizadas é pra lá de promíscua, ou porque lá estavam aquelas pessoas por causa do time pelo qual são aficionadas, e não por qualquer outro motivo.

Munique 1972
Foto: Reprodução

2- “The Games must go on” vaticinou Avery Brundage, então presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), em Munique, durante os Jogos de Verão lá celebrados. Era setembro de 1972 e o evento fora paralisado porque onze membros da delegação de Israel haviam sido assassinados por um comando palestino, depois de terem sido feitos reféns em plena Vila Olímpica. Em troca de suas vidas os terroristas exigiam a soltura de duzentos e tantos presos pelo governo de Telavive, assim como a liberdade de duas lideranças da Fração do Exército Vermelho (RAF – Rote Armee Fraktion), os alemães Andreas Baader e Ulrike Meinhof.

O desfecho da tragédia aconteceu no aeroporto, de onde o grupo pretendia embarcar em um Boeing que fora, nas negociações, prometido para a fuga. Não foi isso que aconteceu, senão a morte do restante do grupo de reféns, de cinco terroristas e de um policial alemão. Os sobreviventes israelenses foram enviados de volta ao seu país e o estadunidense Mark Spitz, com sete medalhas de ouro na natação, foi rapidamente retirado de Munique. Sendo judeu e com enorme visibilidade, temia-se, por sua segurança.

Foi de Brundage o impulso decisivo para que as competições fossem adiante, mesmo com tantos corpos de atletas, que chegaram para competir, mas voltaram para casa sem vida. Antes de ser o mandatário do COI, ele dirigiu o comitê olímpico dos Estados Unidos, período no qual colecionou posições racistas e elitistas, como a negativa de boicotar os Jogos de 1936 (judeus haviam sido proibidos de compor a representação do país anfitrião, a Alemanha), a punição a Tommie Smith e John Carlos (que fizeram o gesto dos Panteras Negras no pódio do atletismo em 1968) e a recusa em devolver as medalhas a Jim Thorpe (atleta de origem indígena, campeão olímpico em 1912, cujo título fora cassado por sua participação em uma liga profissional de beisebol). Ademais, foi um defensor ardoroso do amadorismo no movimento olímpico.

3- Eis que a Copa América de Futebol será mesmo disputada. Depois das recusas de Colômbia e Argentina, que originalmente sediariam a competição, e do ensaio de acordo com o Chile, também malogrado, o Brasil colocou-se de imediato para receber o evento. Houve a expectativa de que os jogadores da seleção se rebelassem, talvez junto com outros astros do continente, e boicotassem o torneio. Mas, não foi isso que aconteceu no país em que o caos está instalado, em que as instituições democráticas vão sendo desmoralizadas dia a dia, em que a matança pela Covid-19, motivada pela má prevenção e pela demora da chegada das vacinas, segue acelerada.

É de ficar perplexo saber que dois dos principais patrocinadores da Copa América, Ambev e Mastercard, desistiram de qualquer ação de marketing relacionada a ela, temerosos que ficassem marcados pelo apoio a algo com grande rejeição popular. Quando o grande capital vê risco importante, é porque, de fato, há algo em jogo. É legítimo que se esperasse dos jogadores, todos atletas de elite, uma atitude que poderia ser histórica. Mas é também de uma ingenuidade enorme. Infelizmente, o esporte – o futebol em especial – geralmente está do lado errado.

4-Em 1983 os Jogos Abertos de Santa Catarina não foram realizados. O estado sofrera com uma enchente de grandes proporções que deixou debaixo d’água, literalmente, várias cidades do Vale do Itajaí. Tampouco houve delegação barriga-verde nos Jogos Escolares Brasileiros (JEB’s) daquele ano, a não ser por uma representação simbólica de uma equipe de voleibol feminino infanto-juvenil. Ela já estava fora do estado, em disputa de outra competição, e foi deslocada para Brasília, local dos JEB’s. No time já brilhava Ana Moser, de Blumenau – uma das cidades mais atingidas, aliás –, que depois seria uma das maiores jogadoras de sua geração, medalhista olímpica em Seul 1988.

Sim, uma Copa América de Futebol tem apelo enorme e nela há mais interesses envolvidos do que em uma competição poliesportiva estadual. Mas vale lembrar do exemplo de que o exercício da liberdade e da vida pública passa pela renúncia, por dizer não à indiferença e à barbárie.

Ilha de Santa Catarina, junho de 2021.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 16 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Futebol, indiferença, barbárie. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 21, 2021.
Leia também:
  • 176.27

    Como Durkheim – com ajuda de Simmel – explicaria o futebol

    Rodrigo Koch
  • 176.11

    Beckenbauer e Zagallo: símbolos de alto rendimento da era de ouro do futebol

    Matheus Galdino
  • 176.5

    Futebol na Literatura de Língua Alemã – Parte X: Quando Beckenbauer ainda não era o “Kaiser Franz”

    Elcio Loureiro Cornelsen