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Futebol Industrial

Marco Sirangelo 16 de março de 2021

É bastante complexo tentarmos entender o caminho que o futebol percorreu desde a sua criação até se estabelecer como, possivelmente, o esporte mais desenvolvido do mundo. As evoluções de dentro e de fora do campo nem sempre andaram lado a lado e certamente precisam ser analisadas com profundidade, mas caso tomemos um caminho de pensar o futebol como uma indústria, a primeira conclusão é de que ela ainda é bastante recente.

Símbolo de uma transformação digna de uma revolução industrial, a Lei Bosman (1995) teve muitos desmembramentos. Através de uma maior inclusão de atletas nas legislações trabalhistas europeias, uma de suas consequências está relacionada com a criação de super times, que puderam contar com os melhores jogadores europeus sem que fossem considerados estrangeiros — as cotas de extra-comunitários seriam preenchidas em larga escala por talentos sul-americanos, principalmente.

Foi assim, por exemplo, que o timaço do Ajax campeão europeu de 1995 e vice no ano seguinte viu seu elenco desmantelar rapidamente com destino aos times mais poderosos da Itália e da Espanha, principalmente. O consequente enfraquecimento da liga holandesa também foi visto (em maior escala) na América do Sul, por conta do êxodo de seus maiores talentos, algo que passou a ocorrer cada vez mais cedo. O resultado disso foi o fortalecimento ainda maior dos clubes mais ricos e a consolidação das ligas Inglesa, italiana, espanhola, alemã e francesa como as principais do mundo.

Ajax de 1995
Ajax de 1995. Foto: Reprodução Facebook

Nesses mais de 20 anos de grande desenvolvimento comercial, observamos diferentes estratégias adotadas pelas Big 5. De forma bastante superficial, podemos colocar que atualmente a Premier League surfa a onda de ser a principal competição do mundo graças aos enormes contratos de direitos de televisão e ao poderio financeiro e comercial de seus clubes, a Espanha dá sinais de queda após momentos ruins de Barcelona e Real Madrid e Alemanha, França e Itália mostram caminhos mais sustentáveis do ponto de vista gerencial, embora um pouco menos atraentes do ponto de vista esportivo.

As duas últimas ligas citadas chamam especial atenção. Já há alguns anos, o campeonato italiano demonstra constante evolução, com um punhado de clubes bem administrados e times que praticam bom futebol e também revelam bons nomes. De qualquer forma, a hegemonia da Juventus e as lembranças dos tempos áureos do passado passam uma imagem de uma liga decadente, algo que não é bem verdade.

Os nove títulos seguidos da Juve estiveram acompanhados de algumas histórias interessantes, desde o Napoli de Sarri, a Roma semifinalista de Champions, a consolidação espetacular da Atalanta e um corajoso Sassuolo. Além disso, por mais que tenha ficado de fora da última Copa, a atual geração de jogadores italianos é boa e vale uma aposta de que a Azzurra viverá tempos melhores em um futuro não tão distante.

Fora de campo, o potencial evidente da Itália atrai cada vez mais interessados e o país é, junto com a França, o mais aquecido em termos de negociações recentes de aquisição de clubes, isso sem contar uma oferta de quase US$ 2 bilhões para a criação de um consórcio da própria Série A. De acordo com dados do CIES Sports Intelligence, quatro times foram comprados nos últimos 12 meses — Parma, Roma, Venezia e Spezia, todos com novos donos americanos. A presença de investidores norte-americanos é cada vez maior na Itália, e já são sete clubes controlados por empresários dos EUA (além dos quatro citados, completam a lista Fiorentina, Milan e Pisa). Apenas a Inglaterra possui uma presença maior de americanos.

Clubes da Europa
Clubes da Europa com investimento norte-americano. Fonte: CIES
Clubes italianos
Clubes italianos e seus investidores estrangeiros. Fonte: CIES

Há, também, uma certa volatilidade no período em que os donos mantêm controle de clubes italianos. Nos últimos 5 anos, seis equipes tiveram alternância de donos, dentre os quais gigantes como Inter, Milan e Roma. Nos últimos 20 anos, apenas três clubes da atual primeira divisão não foram negociados (Juventus, Udinese e Crotone). Na segunda divisão, a volatilidade é ainda maior, com 14 equipes que sofreram mudança de controle nos últimos 10 anos (sendo 10 nos últimos 6 anos).

A França é outra grande liga que observa aquecimento no mercado de negociação de clubes, mostrando características semelhantes no que diz respeito à presença de investidores norte-americanos e no relativo pouco tempo de controle da gestão atual. Seis equipes, dentre as quais Olympique de Marselha e Bordeaux, são controladas por americanos, e outros cinco clubes foram negociados apenas em 2020 para empresários de nacionalidade diversas (nenhuma outra liga teve mais clubes vendidos do que a França no último ano).

França
A França lidera a lista dos países com clubes negociados apenas em 2020. Fonte: CIES

A linha do tempo da presença de investidores estrangeiros na França é curiosa e também demonstra aquecimento. Se em 2011 projetos ambiciosos e altamente endinheirados chegaram ao país com as vendas de PSG e Mônaco, de 2015 até hoje, 14 clubes receberam investimentos estrangeiros, com destaque para Lyon, Lille e Nice (os dois últimos mudaram de mãos duas vezes desde 2016). A segunda divisão também demonstra o aquecimento deste mercado, já que 15 equipes mudaram de dono nos últimos 9 anos (7 apenas nos últimos dois anos).

mercado francês clubes
O mercado francês de aquisição de clubes está bastante aquecido. Fonte: CIES

Se a Inglaterra concentra grande atenção, a Alemanha se destaca pelo rígido controle em busca da sustentabilidade gerencial e a Espanha apresenta claros sinais de queda de relevância. Mas é na França e na Itália que os investidores parecem estar voltando mais esforços. O aquecimento do mercado de compra e venda de clubes é algo concreto nessas ligas, e os motivos para isso também parecem claros: há potencial claro de crescimento futuro.

Se historicamente o investimento em futebol misturou motivações econômicas com retornos emocionais, o aumento no número e a maior diversificação do perfil de quem está injetando dinheiro no futebol europeu passa a mensagem de que a busca pela otimização da gestão e o uso de clubes para fins de obtenção de lucro parecem ser norma no futuro. De um ponto de vista otimista, isso leva a crer que é possível vislumbrar um esporte mais responsável e com menos delírios de donos que faziam uso de clubes para alimentarem seus próprios egos. Mas também mostra que a relação romântica entre clubes e torcedores de fato terá que superar a existência concreta do futebol-negócio.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marco Sirangelo

Marco Sirangelo é Mestre em Gestão Esportiva pela Universidade de Loughborough (Inglaterra) e Bacharel em Administração de Empresas pela FGV, foi Analista de Marketing do Palmeiras entre 2009 e 2010 e Gerente de Projetos da ISG, de 2011 a 2016. Atualmente é Head de Projetos na consultoria OutField.Twitter: @MarcoSirangelo

Como citar

SIRANGELO, Marco. Futebol Industrial. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 32, 2021.
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