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Futebol, Jornalismo e Ciências Sociais: breve história da consolidação do campo acadêmico – Parte 2

Por ocasião do lançamento do livro A Invenção do País do Futebol, os autores deram uma entrevista para o Jornal O Globo (01/10/2000) e em determinado momento, Lovisolo ao ser perguntado pelo repórter sobre os impactos da derrota do futebol brasileiro nas Olimpíadas de então, respondeu direta e enfaticamente: “Nenhum. O orgulho nacional não sofre mais com as derrotas. Há uma diversificação de interesses em outras modalidades de esporte e lazer, o futebol já não tem tanto peso.” E concluiu: “a pátria calça chuteiras cada vez menores”, em alusão a uma famosa imagem brasileira, a pátria de chuteiras, cunhada pelo dramaturgo e escritor brasileiro Nelson Rodrigues para expressar a relação que sempre percebemos entre a identidade nacional brasileira e seleção nacional de futebol. Chamou-nos a atenção tanto quanto a afirmação de Lovisolo o que o editor fez com ela, a colocando no título da matéria: “A Pátria Calça Chuteiras Cada Vez Menores” (O Globo, 01/10/2000 – seção de esportes). Ora, à parte certo radicalismo, a frase não é um delírio, e talvez estivesse expressando um sentimento que se começou a divisar no fim do século. Se compararmos a situação atual com a forte carga emocional expressa na derrota na copa de 1950, por exemplo, ou no tricampeonato em 1970, podemos mesmo especular sobre o fato de estarmos assistindo a um declínio no interesse pelo futebol. Seríamos ainda “o país do futebol”?

Desde que chegou ao país, o futebol passou por um processo de incorporação cultural até se constituir no que chamamos de “paixão nacional”, como se afirmássemos que o nosso futebol é o melhor do mundo e o Brasil é o lugar onde mais se ama e se entende do assunto. Isso está sintetizado no epíteto “Brasil, país do futebol” que, em períodos de Copas do Mundo, ganha uma dimensão mais intensa. Porém, mesmo aqui, as narrativas jornalísticas em torno da seleção já não tratam de forma homogênea o futebol como metonímia da nação. A derrota na final para o Uruguai em 1950 e a conquista do tricampeonato em 1970 foram sentidas como derrota e vitória de projetos de nação brasileira. Já as vitórias em 1994 e 2002 e a derrota na final para a França em 1998 – bem como as derrotas em 2006 e 2010 – não transcenderam o terreno esportivo e foram comemoradas e sofridas como vitórias e derrotas esportivas.

O “país do futebol” foi uma “construção” social realizada por jornalistas e intelectuais em um momento de consolidação do “estado-nação”, acompanhada por formulações acadêmicas sobre a sociedade. Foi, de fato, a partir dos anos 1930 que se apresentaram novas formas de conceituar o país. Se antes, pelas lentes de um acadêmico como Oliveira Vianna, por exemplo, a miscigenação racial era vista como uma explicação para o “atraso” do país, a partir da obra clássica de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, a mistura passa a ser entendida como um valor positivo da população brasileira. Dentro do projeto nacionalista e integracionista do Estado Novo, esta forma de entender a cultura se consolida no país. Neste sentido, Mário Filho, um dos fundadores do jornalismo esportivo no Brasil, foi fundamental para a utilização do futebol como um meio de se “construir” uma ideia de nação brasileira. Filho era amigo de Gilberto Freyre, que prefaciou sua obra mais conhecida, O Negro no Futebol Brasileiro, onde a junção do futebol com a nação se torna mais evidente. Freyre, por sua vez, escreve em sua coluna no Diário de Pernambuco do dia 18 de junho de 1938, “Foot-ball mulato”, um artigo que se tornou fundamental para a simbologia do futebol. Neste artigo, Freyre louva a miscigenação racial e afirma que ela funda certo estilo de jogo que seria típico do Brasil – uma “dança dionisíaca”, o que tempos depois se convencionou chamar de “futebol-arte”. Freyre e Filho foram agentes fundamentais do sucesso da “construção” do “país do futebol”.

Dissemos que somos o “país do futebol” como uma forma de nos sentirmos únicos. O futebol – com suas conquistas e o suposto “estilo dionisíaco” – seria um representante exemplar do Brasil para o mundo. No entanto, suspeitamos que a tendência da globalização da cultura em curso, que teve nos esportes um veículo de encontro, de apropriações entre os diferentes estados-nações, estaria transformando a identidade nacional sintetizada como narrativa homogênea na “pátria de chuteiras”.

O jogador que veste a camisa nacional também representa clubes da Europa, além de empresas multinacionais. As marcas empresariais estão amalgamadas com o fenômeno esportivo. A televisão transmite em tempo real um jogo do Real Madrid para todos os continentes. Esse processo de desterritorialização do ídolo e do futebol cria um novo processo de identidade cultural. Na medida em que se coloca a ênfase do futebol como um produto a ser consumido em um mercado de entretenimento cada vez mais diversificado, sem um projeto que o articule a tais instâncias mais inclusivas, o que se consegue é esgarçar cada vez mais o vínculo estabelecido antes, com Freyre e Filho.

Então questionamos: se o futebol esteve longamente associado à identidade brasileira, o que acontece quando a pós-modernidade enfatiza a pulverização das identidades? Sucumbirá o futebol na pós-modernidade, deixando patente que pertenceu, de fato, à modernidade, e em certa medida, ajudou a construir essa modernidade no Brasil? Ou sobreviverá, anunciando que essa pós-modernidade jamais poderá ser completa, pois necessitamos viver sob o signo da nacionalidade, como se “todo o Brasil desse a mão em um só coração”?

Em suma, o que nós, do grupo de pesquisa “Esporte e Cultura”, nos propomos a refletir é sobre como o futebol foi um elemento primordial na história recente do país, em sua transição de uma sociedade rural para uma moderna sociedade urbana, e como seu papel já não é o mesmo daqueles tempos. Certamente, o torcedor de Copa do Mundo ainda conserva seu “nacionalismo quadrienal”, atrelado à seleção, mas a “pátria de chuteiras” perdeu muito da sua carga simbólica. Este é o ponto que merece ser investigado. E, por isso, resta observar como os brasileiros irão se articular em torno deste simbolismo diante de dois eventos emblemáticos como a Copa do Mundo de 2014, organizada no país, e as Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro. Seremos testemunhas de um resgate simbólico de um nacionalismo exacerbado ou a espetacularização dos eventos nos moldes do capitalismo do século XXI diluirá a identificação nacional?

O campo acadêmico em torno dos estudos sobre o futebol já está consolidado. Os diversos estudos em torno do tema demonstram a fertilidade do fenômeno, bem como comprovam sua possibilidade de ser abordado por múltiplos ângulos de análise. Vivemos um momento único nesta trajetória, com a Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, ambos os eventos a serem sediados pelo país. As análises em torno de questões envolvendo a equação “futebol-nação” (e/ou “esporte-nação”), ídolos/heróis globalizados e/ou locais, midiatização do espetáculo, esporte e redes sociais na internet, etc., terão um momento privilegiado de investigação. Nunca o esporte de massa foi tão importante como objeto de estudo seja como um meio para entender a cultura e/ou as relações entre elas, seja como um fim em si mesmo, para adquirirmos mais conhecimento sobre este universo.

Observamos com satisfação que o tema envolvendo “comunicação e esporte” vem crescendo vertiginosamente. No segundo semestre de 2010 tivemos o prazer de editar um número especial da revista Logos da FCS/Uerj que tratava de um dossiê temático sob o título “Comunicação e Esporte”. A trajetória do campo se inicia paradoxalmente com a crítica à escassez de estudos e se consolida com a proliferação de trabalhos e grupos e núcleos de estudos. Passando pela perspectiva que denominamos de “apocalíptica”, pelo entendimento do esporte como um “drama” da vida social, pela discussão em torno do livro de Mário Filho até os recentes estudos sobre o esmaecimento da equação “futebol-nação”, o caminho para a formação do campo produziu trabalhos emblemáticos, fundamentais para o entendimento de vários fenômenos oriundos do universo esportivo.

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Ronaldo Helal

Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979), mestrado em Sociologia - New York University (1986) e doutorado em Sociologia - New York University (1994). É pesquisador 1-C do CNPq, Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (2006). Em 2017, realizou estágio sênior na França no Institut National du Sport, de L'Expertise et de la Performance. É professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi vice-diretor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (2000-2004) e coordenador do projeto de implantação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj (PPGCom/Uerj), tendo sido seu primeiro coordenador (2002-2004).Foi chefe do Departamento de Teoria da Comunicação da FCS/Uerj diversas vezes e membro eleito do Consultivo da Sub-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Uerj por duas vezes. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: futebol, mídia, identidades nacionais, idolatria e cultura brasileira. É coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura (www.comunicacaoeesporte.com) e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte - LEME. Publicou oito livros e mais de 120 artigos em capítulos de livros e em revistas acadêmicas da área, no Brasil e no exterior.

Como citar

HELAL, Ronaldo. Futebol, Jornalismo e Ciências Sociais: breve história da consolidação do campo acadêmico – Parte 2. Ludopédio, São Paulo, v. 23, n. 1, 2011.
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