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Futebol no Alto Xingu: paixão e perigo

Carlos Eduardo Costa 15 de janeiro de 2021

Num ano de tantas perdas e dificuldades em todo o mundo, amplificadas com a (des)conjuntura política brasileira, as consequências de tudo isso chegaram também aos povos indígenas que enfrentam adversidades desde tempos históricos. Invasão de terras, desmatamento, queimadas, grilagem, garimpo, assassinatos. Problemas, infelizmente recorrentes, aos quais se somou à devastadora epidemia da covid-19 neste 2020 que se encerrou. Por conta das medidas sanitárias restritivas, muitas atividades constantes dos calendários indígenas, rituais ou cotidianas, de inúmeras regiões etnográficas, tiveram que ser adiadas, diminuídas ou modificadas.

No Alto Xingu, por exemplo, os tradicionais rituais do Quarup e do Jawari, celebrações em homenagens aos chefes falecidos em que se apresentam os jovens futuros chefes para os povos que fazem parte deste complexo regional, foram realizados entre poucos convidados, quando não adiados para outro momento. A região é comumente descrita pela interação entre nove povos, falantes de três troncos linguísticos diferentes, que se relacionam através de um sistema de trocas cerimoniais, matrimoniais e comerciais colocados em circulação especialmente nestes momentos rituais[1].

Todavia, nesse recém terminado ano as celebrações que se realizaram foram menores, com poucos povos participantes, diminuindo, inclusive, as disputas que acontecem pela luta corporal e pelos dardos e propulsores. Apesar dessas intempéries, a paixão dos alto-xinguanos por competições em práticas esportivas permanece, notadamente pelo futebol. Embora os rituais pós-funerários tenham sido diminuídos ou adiados, os torneios de futebol marcaram presença no final do ano – mesmo com os riscos da pandemia –, de onde se pode dizer que já fazem parte do calendário da região. Se durante os meses da seca, entre junho e outubro mais ou menos, não se realizam as competições de futebol, por conta das disputas através da luta e dos dardos, assim que são finalizados os rituais tradicionais, inicia-se a organização dos campeonatos futebolísticos.

Sejam aquelas peladas de fim de tarde entre os moradores da aldeia, que ocorrem quase cotidianamente, amistosos entre aldeias vizinhas, ou mesmo campeonatos regionais entre aldeias não tão distantes, capazes de transpor a distância de bicicletas, motos, barcos ou carros pequenos. Ou ainda, os grandes torneios dos quais participam muitas aldeias de todo o território, com relativo grau de organização e que contam com incentivos de transportes como balsas, caminhões e apoio institucional de prefeituras de cidades vizinhas – especialmente com o fornecimento de muito combustível[2].

Futebol no fim da tarde antes do banho numa praia do rio Culuene, um dos formadores do Xingu. Aldeia Tanguro do povo Kalapalo (MT). Foto: Acervo do autor

Aliás, como já foi destacado em obras que trataram do assunto, o combustível se transformou num item de primeira necessidade na organização ritual. Autores como Guerreiro (2012) relatam a importância da gasolina e do óleo diesel entregue pelos chefes anfitriões aos chefes rivais, tanto para a chegada aos eventos, como para a volta às suas aldeias. Noto, particularmente, que os jovens cada vez mais vão aos eventos em suas próprias motocicletas. E, como a ida a uma aldeia estrangeira é um momento de grande tensão por conta do medo da feitiçaria, a pressa é para conseguir o quanto antes o combustível para poderem retornar.

A literatura antropológica é abundante em associar perigos aos momentos de liminaridade, de onde valeria aqui a menção à Victor Turner e o “processo ritual” (1974 [1969]) – claro que com todas as diferenças etnográficas entre os Ndembu e os alto-xinguanos, apenas para demonstrar como esses momentos são propícios para a atuação de seres maldosos, como os feiticeiros. Ocasiões em que a tranquilidade do cotidiano e a intensidade do ritual são indissociáveis, permeáveis, e vale dizer como o combustível, necessário para esse outro momento liminar que são as viagens de volta, passam a ser disputados com fervor após o término das competições.

Mesmo nesses grandes torneios de futebol, o que se passa é a vontade da disputa, dos confrontos contra os povos que ali se avizinham. Se para os rituais pós-funerários, especialmente os de origem aruak/karib em que ocorrem as lutas corporais (kindene, no idioma karib, popularmente mais conhecida como huka-huka), participam apenas um seleto grupo de povos que detêm conhecimentos técnicos específicos para os combates, e não somente para os combates, mas para toda a preparação que envolve a fabricação dos corpos e a produção dos lutadores campeões, nos torneios de futebol participam elevado número de convidados. Povos que vivem modos de vidas diferentes dos tradicionais alto-xinguanos, conhecidos pelo ethos calmo e generoso, a pax xinguana. Modos esses que já os fizeram ser descritos como “metáforas de si mesmos” por Viveiros de Castro (1979), personagens de filmes, séries, livros, enfim, os detentores da beleza estética que os colocam como os “índios de verdade”, numa imagem difundida e preconceituosa, tão comum em nosso país.

Essa variedade de times para as disputas no futebol corrobora o caráter universalizante tão associado a essa modalidade, o football association, inventado pelos ingleses e que rapidamente se espalhou por todos os continentes, levando consigo uma enormidade de fãs. Roberto DaMatta, em obra seminal sobre o tema, já afirmava comparativamente a oposição entre jogo e sport e seus significados em diferentes sociedades (Brasil/EUA): “cada sociedade tem o futebol que merece, pois ela o molda e projeta nele um conjunto de temas que lhes são básicos” (1982: 16).

Pois, não há como falar sobre o futebol e sua amplitude organizacional e prática no Alto Xingu sem comentar sobre como é, por meio desses torneios que se intensificam e aumentam em participantes, que também a feitiçaria acaba por ser parte integral do modelo relacional usado para atribuir significados a este universo. Eventos em que a alteridade se encontra num mesmo espaço/tempo para disputar, e não guerrear, contra seus inimigos históricos – transformados em adversários num processo que deve muito à esportificação das práticas de disputas corporais, especialmente aquelas realizadas ritualmente. O “virar gente” passa pela competição contra o adversário e não mais pelo assassinato do inimigo, pelas trocas matrimoniais e não mais pelo rapto, pelo comércio de especialidades étnicas e não pelo saque.

Se o complexo xamanismo/feitiçaria já foi dito ser uma das similaridades que fazem parte deste sistema regional, baseado nas trocas comerciais, matrimoniais e rituais, os feiticeiros têm nesses momentos grandes margens de atuação (a propósito, ver Menezes Bastos 1984; 1995). Seja pela quantidade de pessoas, pela liminaridade situacional, pelo descuido com situações básicas, como itens pessoais, enfim, nesses momentos é mais provável que a atuação do feiticeiro passe desapercebida, uma vez que a única possibilidade em que o assassinato é visto como permitido, e mesmo necessário, é quando um feiticeiro é pego realizando seus trabalhos.

No último torneio que encerrou o ano de 2020 foram duas acusações, que passam a ser mais ou menos veladas, de acordo por quem são feitas e contra quem são direcionadas. O time feminino de Tanguro, aldeia na qual realizei trabalho de campo para a tese de doutorado sobre a luta corporal kindene (Costa 2013), sofreu ataques durante a competição e na volta para casa todas as jogadoras passaram muito mal, com febres, dores e vômitos. Nesse caso, a despeito das dificuldades fisiológicas, não houve maiores percalços, até mesmo porque não se descobriu o autor da feitiçaria e as acusações ficaram no plano das “fofocas” sobre os responsáveis. No torneio feminino, as campeãs foram do Futebol Clube Etenheritipa Xavante, o que demonstra a expansão relacional promovida pelo futebol, uma vez que as relações entre xavantes e alto-xinguanos são bem pouco comuns, excetuando exatamente tais competições.

Diferente do que aconteceu no torneio masculino, quando após a vitória do time Kuikuro, os derrotados Kamayurá passaram a usar suas redes de relações, pessoais e virtuais, para acusar um feiticeiro Kuikuro de ter sido responsável por “rezar” o time que havia perdido. Ao que o time vencedor, não sem um tom de gozação, tipicamente futebolística, rotulando o “chororô de perdedor”, afirmava que o time do Bayern de Munique, recentemente campeão do maior torneio de futebol interclubes, a UEFA Champions League, também tinha “rezado” a equipe do Paris Saint-Germain, vice-campeã daquela edição.

Derrota e vitória no futebol, como em outras práticas esportivas nativas, passam pelo crivo da disputa, mas também pelos entendimentos cosmológicos que dão significados aos conjuntos de acontecimentos e seus desenrolares interétnicos. Da maneira como o futebol foi ressignificado ao entendimento nativo, não haveria como ser realizado sem que a feitiçaria também fosse um componente fundamental, pois, esse complexo xamanismo/feitiçaria dá sentido e organiza os modelos relacionais no plano regional. Ainda mais nesses momentos com tantos “outros” diferentes num mesmo lugar, a potencialização da alteridade.

Mas não apenas as ameaças da feitiçaria. As manifestações artísticas, paixão alto-xinguana, fazem parte das comemorações em que se celebram as vitórias dos times[3]. A chegada do troféu de campeão na aldeia é celebrada através de cantos e danças características, no centro da aldeia, espaço fundamental para as realizações coletivas, da sepultura do chefe e sua posterior efígie que receberá o egitsü (Quarup) em sua homenagem, passando pelas apresentações dos cantores e discursos rituais, até mesmo os combates nas lutas kindene. O próprio troféu é colocado no pátio central e exaltado com cantos e danças, demonstrando como o futebol foi interpretado no entendimento nativo, seja pelos temores trazidos pelos relacionamentos interétnicos, o risco imanente ao outro, seja pela alegria e beleza que motiva suas comemorações e celebrações coletivas.

O universo do futebol, com seus perigos e contradições, paixões e emoções, apontando caminhos etnográficos com suas abrangências, relações e transformações.

 

Notas

[1] Os povos são Kalapalo, Kuikuro, Matipu, Nahukua (karib); Wauja, Mehinaku, Yawalapiti (aruak); Kamayurá, Aweti (tupi). O Alto Xingu é a parte sul do Território Indígena do Xingu (TIX/MT) demarcado em 1961 pelo presidente Jânio Quadros sob atuação dos sertanistas irmãos Villas-Boas. O território ainda é subdividido em Médio e Baixo Xingu, com diferentes povos e estilos de vida. Para detalhes consultar Lea (1997).

[2] http://gauchanews.com.br/gaucha-do-norte/prefeitura-realiza-campeonato-de-futebol-indigena-em-aldeia-de-gaucha-do-norte/28773256

[3] https://www.facebook.com/ProducoesFilmesTakuma/videos/764076634456412

 

Referências

COSTA, Carlos. Kindene hekugu. Uma etnografia da luta e dos lutadores no Alto Xingu. Tese de Doutorado. PPGAS, Universidade Federal de São Carlos, 2013.

DAMATTA, Roberto. “Esporte e Sociedade: Um Ensaio sobre o Futebol Brasileiro”. In DaMatta (org), Universo do Futebol. Rio de Janeiro: Ed Pinakotheke, 1982.

GUERREIRO, Antonio. Ancestrais e suas sombras: Uma etnografia da chefia kalapalo e seu ritual mortuário. Tese de Doutorado, Brasília: Universidade de Brasília, 2012. 

LEA, Vanessa. “Parque Indígena do Xingu”. Laudo antropológico, 1997.

MENEZES BASTOS, Rafael. “O ‘payemeramaraka’ kamayurá: uma contribuição à etnografia do xamanismo no Alto Xingu”. Revista de Antropologia. 27/28: 139-177, 1984. 

__________. “Indagação sobre os kamayurá, o alto-xingu e outros nomes e coisas: uma etnologia da sociedade Xinguara”. Anuário Antropológico, 94: 227-269, 1995.

TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974 [1969]. 

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Quanto custa ser a metáfora de si mesmo: os paradoxos da identidade xinguana”. Boletim do Museu Nacional, 32: 1-9, 1979


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Como citar

COSTA, Carlos Eduardo. Futebol no Alto Xingu: paixão e perigo. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 21, 2021.
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