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Futebol, poder, melancolia: um documentário sobre Argentina

Em 1979, quando Florianópolis ainda tinha suas salas de cinemas de rua, assisti ao documentário Copa 78, o poder do futebol. Como costumava acontecer, naquela tarde de dia de semana das férias de inverno, fui ao Cine São José com outros meninos. Os personagens me eram familiares, treinadores e jogadores das seleções que haviam tomado parte da competição jogada na Argentina: entre tantos outros, Cesar Luis Menotti, el selecionador dos hermanos, Cláudio Coutinho, técnico dos brasileiros, Jorge Rafael Videla, o ditador sanguinário que tiranizava o país, João Havelange, o oportunista presidente da FIFA, os astros jogadores Fillol, Ardilles, Kempes, Luque entre os albicelestes; Leão, Zico, Rivellino, Dirceu, Nelinho, Cerezo, Jorge Mendonça, Reinaldo entre os nossos. Mas, havia algo mais que era conhecido: a locução, a encargo de Sérgio Chapelin, apresentador da TV Globo que conhecíamos, sobretudo, pela voz que emprestava ao Globo Repórter, habitual programa das noites de sexta-feira.

O filme sobre o Mundial jogado na Argentina veio-me à memória há poucos dias, ao me deparar, por puro acaso, com o blog de José Inácio Werneck[1], abrigado no jornal esportivo Lance. O veterano jornalista foi presente em minha infância, tanto porque era figura fácil nos programas esportivos, quanto porque, principalmente, foi um dos grandes impulsionadores da popularização das corridas de rua no Brasil, no início dos anos 1980. Além de escrever sobre o tema em sua coluna no hoje extinto Jornal do Brasil, foi dele a organização das primeiras grandes maratonas do Rio de Janeiro, assim como a iniciativa de Viva, a revista da corrida, primeira publicação especializada no país.

Werneck, que há muitos anos vive nos Estados Unidos, foi o principal responsável pelo texto que é lido por Chapelin no documentário, com o qual colaborou o próprio diretor e roteirista, Maurício Sherman. Revi a obra há poucos dias, e foi uma experiência curiosa. Por um lado, há algo de anacrônico na violência escancarada de algumas disputas de bola, no posicionamento errático das defesas, na falta de técnica dos goleiros, tudo isso se compararmos com o futebol com o qual hoje estamos acostumados. Por outro, desfilam na tela os atacantes ousados, dribladores e trombadores, que enchem os olhos de quem gosta do jogo.

Daniel Passarella
Daniel Passarella levanta a taça da Copa do Mundo. Foto: El Gráfico/Wikipédia.

A narrativa coincide com o desenvolvimento do torneio, e, embora linear, não deixa de causar surpresas. Começa com uma declaração de um dirigente Montonero, a guerrilha peronista que se opunha ao regime ditatorial na Argentina. O declarante é mostrado à sombra, não vemos seu rosto e é possível que voz e vulto sejam de um ator. Mas, a verdade da imagem está no que ela expressa e a posição do grupo era a de apoio à realização do Mundial, assim como a torcida pela seleção do país, como vemos e escutamos na tela. Ao mesmo tempo, de oposição ferrenha ao regime, convidando a imprensa internacional que denunciasse o que ocorria no país e bradando: ¡Argentina campeón, Videla al paredón![2] A tonalidade crítica, aliás, tinge todo o filme, seja na política, seja no estilo de futebol jogado.

No primeiro caso, a ditadura – na figura de seus líderes e pela presença da censura –, assim como os protestos contra ela mundo afora são destacados. Não deixa de ser triste observar um ditador como Jorge Rafael Videla falar em paz e liberdade, um discurso diametralmente oposto ao que acontecia, mais ou menos como ainda hoje ocorre com os projetos de fascistas que andam por aí. As imagens mostram as corajosas Mães das Praça de Maio. No segundo, o futebol defensivo e pouco ousado, a exemplo daquele jogado pelo selecionado brasileiro e pelos italianos, não merece os elogios destinados às seleções da Argentina e da Holanda. Ambas teriam sido recompensadas com a presença na finalíssima porque em quase todas as partidas procuraram o gol. “Impunha-se a conclusão de que as táticas então defendidas por Coutinho não reuniam condições para ganhar a Copa do Mundo”, escutamos já perto do final do filme, enquanto vemos nossa seleção despedir-se com a conquista do terceiro lugar.

A ditadura argentina esmerou-se na construção de estádios ultramodernos, mesmo em lugares em que o futebol profissional era muito fraco. Mais ou menos como aconteceu com seu país vizinho, há poucos anos. Em uma das canchas pôde-se ler uma faixa com uma saudação à seleção austríaca, que enfrentava a Holanda: Cordoba grüsst Österreich (Córdoba saúda a Áustria). Há uma comunidade germânica há muitos anos instalada região de Córdoba, e a ela imiscuíram-se criminosos nazistas que, no pós-guerra, procuraram abrigo por lá. Foi inevitável imaginar a relação de uma coisa com a outra. Os países sul-americanos foram um destino para muitos deles.

Como se sabe, a seleção brasileira terminou a competição invicta, mas sem condições de chegar à final porque terminou empatada em pontos com os anfitriões que, no entanto, tiveram saldo de gols superior ao nosso. Brasileiros e argentinos empataram em zero a zero. Os primeiros foram cautelosos contra Peru e Polônia, já a Argentina atacou muito em suas partidas contra os mesmos adversários, massacrando o time andino por 6 x 0. “Eu sou campeão moral”, disse Cláudio Coutinho depois disso, insinuando algo que desde então se disse por aqui: que os peruanos teriam entregado o jogo, discurso que ficou mais fraco depois dos 7 x 1 tomados pelo time da casa, frente à Alemanha, em 2014. 

Brasil Copa 1978
Seleção brasileira na Copa de 1978. Foto: CBF

Menotti é exaltado pelo futebol valente e ofensivo, Coutinho é visto como indeciso e por demais cauteloso, adepto de um futebol mais calculado e menos apaixonante. Há como que uma melancolia, um sentimento de perda de estilo no interior do campo, um desastre fora dele, com a crise política gerada pelos dirigentes brasileiros. O almirante Heleno Nunes era o presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, antecessora da CBF), também vivíamos aqui uma ditadura. Ontem como hoje, estávamos mal.

Ilha de Santa Catarina, julho de 2021.


[1] Campo Neutro

[2] Estudei o tema e publiquei um artigo sobre ele há muitos anos: Futebol e política: a Copa do Mundo de 78 vista da Alemanha (Rio de Janeiro, Motus Corporis, v. 5, n. 2, p. 156-173, 1998).

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Futebol, poder, melancolia: um documentário sobre Argentina. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 31, 2021.
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