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Futebol, seleção e a Segunda Guerra

Neste ano de 2015, completam-se 70 anos do final da Segunda Guerra Mundial, conflito que estabeleceu marcas definitivas na organização mundial em meados do século XX. Neste cenário, o Brasil foi o único país da América Latina a participar ativamente do conflito, entrando oficialmente na guerra ao lado dos aliados em 1942 e enviando tropas ao teatro de operações europeu em 1944, através da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e a Força Aérea Brasileira (FAB).

Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, a FEB se preparou para tomar parte no combate, em 1944. Entretanto, os meios militares tinham a impressão de que a indiferença tomava conta de grande parte da população brasileira e o embarque dos pracinhas para o teatro de operações da Itália não parecia ter despertado o sentimento cívico do povo. Assim, o então Ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, insatisfeito com uma suposta falta de sentimento cívico brasileiro, teria pedido auxílio ao presidente do Conselho Nacional de Desportos (CND), João Lyra Filho, para tentar despertar os brios da população (de acordo com o próprio Lyra Filho, em seu livro Introdução à psicologia dos desportos, p. 120).

Lyra Filho teria então sugerido a realização de um evento festivo futebolístico para a despedida dos pracinhas. O futebol atuaria assim como um elemento catalisador na nacionalidade brasileira, utilizando seu capital simbólico a fim de despertar na população o sentimento pátrio buscado por Dutra.

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Vista interna do estádio São Januário que foi utilizado por Vargas como palco político. Foto: Dsrodrigues – Wikipédia.

O CND promoveria a realização de dois jogos da seleção brasileira contra o rival Uruguai, um na capital do país, em São Januário, e outro em São Paulo, no Pacaembu – os estádios de maior capacidade do país e de estreita ligação simbólica com o Estado Novo de Vargas (ver textos aqui e aqui). Os jogos da seleção brasileira contra o Uruguai eram, sem dúvida, um excelente chamariz, visto que as competições internacionais estavam estagnadas desde a entrada do Brasil na guerra, em agosto de 1942.

Em 14 de maio chega o esperado dia. Milhares de pessoas comparecem ao estádio de São Januário para o jogo entre brasileiros e uruguaios. O primeiro jogo, na capital de República, contou com a presença de importantes nomes do governo na tribuna de honra, como Oswaldo Aranha, Eurico Gaspar Dutra e Joaquim Salgado Filho, ministros do Exterior, da Guerra e da Aeronáutica, respectivamente, além de oficiais do governo uruguaio. O evento foi precedido de muitas formalidades em homenagem ao Corpo Expedicionário Brasileiro, com desfile de 10 mil soldados brasileiros, que depois ocuparam uma das arquibancadas do estádio.

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 mai. 1944, p. 9.

Em campo, a atuação brasileira superou as expectativas, enfrentando uma equipe uruguaia definida pelo jornal Correio da Manhã como “sem entendimento”, ainda que formada por jogadores de “grandes possibilidades”. A vitória por 6 a 1, com gols de Isaías (Vasco), Tesourinha (Internacional), Lima (Palmeiras, dois gols), Rui (Fluminense) e Lelé (Vasco), tornou a festa ainda mais especial.

Quatro dias depois, no estádio do Pacaembu, registrava-se a maior renda do estádio até então, com mais de 60.000 espectadores e Cr$ 574.392,00 de renda (valor aproximado de um apartamento do 2º andar do edifício Lincoln, prédio de luxo no “melhor e mais valorizado ponto da avenida Atlântica”, com 4 quartos, garagem, 2 banheiros, 3 varandas e até mesmo um abrigo antiaéreo).

Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 mai. 1944, p. 5.

A festa, com público recorde, acabou em confusão dentro de campo, com um zagueiro uruguaio sendo retirado de maca desacordado. De acordo com o jornal Correio da Manhã, os principais responsáveis foram os jogadores brasileiros Zezé Procópio e Noronha (ambos do São Paulo), além do juiz Mario Vianna. Em um jogo tenso e violento, “cheio de incidentes diante do beneplácito do juiz”, três jogadores acabaram expulsos: o brasileiro Zezé Procópio e os uruguaios Tejera e Pini. Ao final do violento jogo, o Brasil terminava com dez jogadores em campo, contra sete uruguaios, e vencia por 4 a 0, com três gols de Jair (Vasco) e um gol de Heleno (Botafogo).

Ao fim e ao cabo, mesmo com todos os problemas decorrentes do jogo final, os espetáculos proporcionaram uma maior possibilidade de aproximação da população das cidades ao esforço de guerra da FAB e da FEB que estava prestes a se iniciar oficialmente.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Drumond

Doutor em Histórica Comparada, editor de "Recorde: Revista de História do Esporte", pesquisador do "Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer" da UFRJ e autor de livros e artigos sobre a História do Esporte.

Como citar

DRUMOND, Maurício. Futebol, seleção e a Segunda Guerra. Ludopédio, São Paulo, v. 75, n. 3, 2015.
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