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Futebol sem fronteiras, ídolo não tem nacionalidade: Andrés D’Alessandro é mais um exemplo

Não recordo quando passei a ser torcedor do Sport Club Internacional. Natural de Pelotas, interior do estado do Rio Grande do Sul, a primeira opção era escolher um dos clubes da cidade, a segunda tendia a ser escolha por um clube da capital para torcer. Meu pai e parte da família acompanhavam o lado azul e meu avô materno, o Seu Machado (1923-2013), tinha preferência pelos ‘encarnados’, como ele gostava e dizer.

Meu avô, sempre saudosista, comentava sobre alguns jogadores que vestiram a camisa vermelha e ganharam sua admiração, entre eles, Tesourinha (temporadas 1939-1949), Larry (1954-1961), Figueiroa (1971-1977), Falcão (1973-1980) e Manga (1974-1976). Muitos outros nomes eram lembrados, mas esses eram repetidos sempre que precisava justificar seu pertencimento ao clube que tem a cor do sangue e do coração, dizia ele. Por essa razão, falava com certa satisfação dos encarnados.

As muitas histórias sobre jogadores que Seu Machado tinha para contar eram, em parte, mediadas pelas transmissões radiofônicas e pelo imaginário criado a partir das narrativas de narradores e comentaristas. Nos anos finais de sua experiência terrena, meu avô já não acompanhava os jogos com a mesma lucidez. Talvez nem tenha percebido quando um novo estrangeiro, como tantos que brilham no Inter, um argentino de nome Andrés D’Alessandro, foi contratado.

Acredito que meu avô teria gostado do empenho e dedicação que o jogador D’Ale demonstrava em campo e também fora dele. Em campo, sua teimosia, visão e capacidade de ler o jogo renderam o apelido El Cabezón. O trabalho coletivo foi seu diferencial, mesmo sendo ele a diferença em campo. Fora dele, viveu a cidade frequentando não só os espaços mais requintados, sempre que possível participou de atividades voluntárias palestrando, visitando lugares com pessoas que precisavam de apoio e inspiração; também realizou grandes eventos solidários mobilizando seu nome de atleta para levar seu exemplo de cidadania.

Foto: Wikipédia

D’Alessandro jogou 517 vezes com a camisa encarnada e provocou 95 momentos de catarse finalizados por ele, além de inúmeras assistências. Viveu momentos vitoriosos, títulos, derrotas e frustrações, sua habilidade indiscutível com a perna esquerda chamava os marcadores para dançar, não no ritmo do samba e, sim, no da milonga, familiar aos gaúchos que vivem nos pampas brasileiro, uruguaio e argentino. Sua jogada característica, que convida o adversário a ser seu par na dança, tem o nome de La Boba, um rabisco, uma escrita poética como a letra de uma bela milonga, mais importante que a própria música.

Quando pensamos sobre o que faz um torcedor gostar de um clube e se identificar com ele, facilmente, associamos algum condicionante social e mesmo relações de afinidade ao participar dos grupos sociais. O mais difícil é pensar: o que faz um atleta profissional se tornar torcedor? Esse patamar só os ídolos conseguem atingir e nem sempre está relacionado com uma história de formação como “prata da casa”. Os ídolos atingem um nível diferenciado na relação com o torcedor, não por se tornarem superiores ou infalíveis, muito pelo contrário, é por sua humanidade. Isto é, no caso do D’Ale, sua entrega ao jogo, uma paixão que exacerba a racionalidade, algo que em alguns momentos também prejudicou o time em jogos importantes. Portanto, tornar-se ídolo não significa ser elevado à dimensão de divindade, o reconhecimento das suas fraquezas escancara o seu lado humano que como um espelho não só reflete, mas mostra uma semelhança real com o cotidiano do torcedor. Esta reciprocidade cria uma empatia que pode transformar os feitos de um atleta, reconhecendo-os como dignos de admiração e veneração.

Os ídolos constroem um legado, ganham apoio da torcida e reconhecimento dos adversários, D’Alessandro é um dos grandes exemplos. Jogar contra ele é chato, dizem jogadores e profissionais da imprensa esportiva, pois, gesticula, esbraveja com o árbitro, irrita os adversários, mas quando a bola chega aos seus pés, encontra conforto e carinho, essa língua qualquer torcedor entende, independente de nacionalidade. Acredito que após 12 anos no Internacional, quem mais vai sentir falta da presença do D’Alessandro são as bolas que sempre foram bem tratadas, participando de lances geniais.

No sábado dia 19 de dezembro de 2020, o atleta D’Ale fez sua despedida do clube do povo, os encarnados. Sei que se ainda estivesse vivo, Seu Machado teria mais alguns belos causos para contar sobre o gringo que vestiu a camisa colorada, fazendo parte da história e ganhando seu espaço entre os ídolos, conquistando o respeito até do lado azul.

Seu Machado não conseguiu ver o D’Ale se consagrar jogando nos encarnados e digo, de acordo com o ciclo da vida, agora, chegou minha vez de contar os feitos do ídolo que vi jogar. Posso dizer que os bisnetos do meu avô ainda vão escutar muito sobre um gringo bom de bola, que conquistou os gaúchos independentemente das cores de pertencimento e que foi admirado por muitos torcedores rivais no país.

Andrés Nicólas D’Alessandro pode ter certeza que enquanto seus feitos futebolísticos puderem ser contados com saudosismo, a milonga de seus passes e dribles será uma melodia inesquecível para todos os torcedores que vestem a camisa encarnada e tiveram a honra de assistir seu bailar.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

CONCEIçãO, Daniel Machado da. Futebol sem fronteiras, ídolo não tem nacionalidade: Andrés D’Alessandro é mais um exemplo. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 45, 2020.
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