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Geni e a Libertadores

Leandro Marçal 21 de março de 2017

Ainda que a cultuada Champions League jogue em nossas caras latinas e surradas toda sua superioridade técnica, organizacional e estética, nada gera tanta catarse futebolística quanto nossa Geni, a Libertadores da América.

09/03/2017- Venezuela- Lance da partida entre Zamora e Grêmiodisputada na noite desta quinta-feira, dia 9, no estadio Agustin Tovar, valida pela primeira rodada da Conmebol Libertadores Bridgestone 2017. Foto: Lucas Uebel / Grêmio FBPA
Cachorro invade o campo durante a partida entre Zamora e Grêmio pela primeira rodada da Conmebol Libertadores Bridgestone 2017. Foto: Lucas Uebel/Grêmio FBPA.

Mais um cachorro percorre os gramados, um rolo de papel higiênico é atirado ao campo e outro tubo com oxigênio enfeita ludicamente a altitude enquanto a voz de Chico Buarque ecoa em nossos ouvidos de vira-latas bem adestrados para que joguemos pedra em nossa maior competição do continente.

Em que pese todo o descaso da Conmebol e das federações nacionais para torná-la um pouco mais civilizada, nossa tão surrada e varzeana Geni é a competição de futebol mais interessante a se assistir no mundo. Talvez até a maior delas – a lembrar: nem sempre “maior” é sinônimo de “melhor”.

As quartas-feiras corridas após trabalho e aula, os causos folclóricos (sim, alguns envolvem generosas operações intermediadas por árbitros com missão dada e cumprida por alguma força superior sem que possamos provar nada), a aura que a encobre, a entidade inexplicável que faz dessa moça xingada por tantos ser mais amada que sua prima rica do outro lado do mundo são aspectos que dinheiro algum de gigantes europeus compra.

Ela é a síntese de um futebol com algum resquício de romantismo, como aqueles jogos antigos que o pai conta no sofá da sala, alguns sem registro em vídeo, mas que são mais memoráveis do que os da última rodada do Europeuzão de sua preferência. Recriamos cada um deles em nossa mente e vamos repassando os detalhes como em um telefone sem fio da pré-escola.

A Libertadores têm tanta alma e por ela nutro uma paixão incontrolável, dessas de adolescente. Há um espírito rondando cada jogo ao fim do dia de um jeito que hino algum daquele campeonato cheio de grife é capaz de criar.

É como se lá fora os times mais pareçam funcionários aguardando o horário do fim de expediente para bater o cartão e ir para casa, enquanto aqui a alma escorre a cada dividida como nos matamos internamente para conquistar alguém.

É ela quem nos salva da robotização da bola, da gourmetização de um esporte que já foi do povo. Campos bizarros, a raça como desculpa para carrinhos de arrancar gramados e espantar ambientalistas, gols sofridos e chorados, tensão e tesão desde a primeira fase. Quantas lembranças recheadas de ternura lhe vem à mente a cada linha mal traçada sobre nossa Geni continental?

libertadores
Ah, Libertadores… Foto: Pedro Martins/Mowa Press.

Eu ainda quero vê-la mais robusta, bonita e organizada, de forma a que ela se pareça cada vez mais com o torneio continental mais invejável do mundo e menos com uma competição de várzea televisionada. Mas nem todo amor é perfeito e não nutro tantas esperanças na mudança dela, responsável pela paixão explosiva pelo futebol de tanta gente como eu.

Em 2017, ver a Chapecoense estrear com vitória me fez lembrar aquele São Caetano finalista de 2002 e a nossa vã esperança por um mundo menos desigual quanto o Leicester nos iludiu lá fora ano passado – porque nós, o povo, somos muito mais esses pequenos do que os grandalhões que recebem uma fatia mais gorda do bolo da distribuição de renda. Já liguei a TV nas quartas à noite para ver um título do meu time e chorar com ele; para rir dos rivais e também reconhecer o merecimento em seus títulos; para perceber o quanto nos fazem falta nos zilhões de canais esportivos a transmissão dos nacionais sul-americanos para entendermos um pouco mais do continente (ainda acho que o campeonato chileno deve ser mais interessante que o holandês, por exemplo).

Alguém pode enxergar nessa ode à Libertadores algum tipo de cegueira. Deve ser aquela atribuída ao amor de quem resiste a comemorar renda em estádio, patrocínio ou cifras em detrimento a títulos e vitórias dentro de campo, as que realmente importam.

Desculpa aí, Champions League, mas aura não se compra. Nem se equipara.

Porque tal qual Geni, a Libertadores é a única salvação de um futebol tão pasteurizado também nos gramados, ainda que insistamos em jogar pedras e bosta em quem deveríamos lutar ferozmente para uma melhora de fato.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Geni e a Libertadores. Ludopédio, São Paulo, v. 93, n. 23, 2017.
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