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Gremista e depois colorada: esse torcer também é legítimo?

No último texto desta série dedicada à Coligay, escrevi sobre um de seus integrantes: Careca, um torcedor inegavelmente fanático. Hoje, compartilho a história de outra pessoa que participou da torcida, mas de trajetória bem diferente de seu antigo colega. Marcelly gostava de futebol, assistia aos jogos. Era gremista. Agora é colorada. Muitos/as aficionados/as tomariam esse fato como prova de que nunca foi verdadeiramente tricolor. Provavelmente perdendo qualquer crédito no mundo do futebol. “Só alguém que não faz parte da cultura do futebol viraria a casaca”, alguns diriam. Será?

Mais do que defender a legitimidade de seus vínculos clubísticos, busco nesta coluna descrever sua experiência, demonstrando como atravessamentos supostamente alheios ao futebol e à relação da torcedora com um clube foram fundamentais para suas vivências no esporte. Abordo mais especificamente questões relacionadas a marcadores de gênero, uma vez que Marcelly é travesti.

É comum que sujeitos LGBT+, em especial aqueles/as cuja expressão de gênero não corresponda às expectativas cisheteronormativas, tenham experiências traumáticas na relação com o esporte e a Educação Física (CUNHA JÚNIOR; MELO, 1996; MORAES E SILVA, 2008; PRADO, 2017; SANTOS, 2008). O que nem sempre leva a um completo desgosto ou desinteresse pelo universo esportivo – é o caso de Marcelly.

Seu interesse por futebol começou na infância. Não jogava, mas gostava de assistir. Tornou-se gremista por influência familiar, tal qual acontece com a maioria das pessoas que torcem (DAMO, 1998; SILVA, 2001; CAMPOS, 2010). Ela nasceu no pequeno município de Mato Leitão (RS) e, ainda na juventude, mudou-se para Porto Alegre. A princípio, isso lhe daria a oportunidade de acompanhar o clube no estádio, uma vontade que possuía. Não foi o que aconteceu pois, já identificada como travesti, temia de ser alvo de violências.

A concretização do desejo só veio a partir da Coligay. Amigos gays que compunham a torcida, sabendo de seu gosto por futebol e pelo Grêmio, a convidaram para participar do grupo. Por reunir pessoas LGBT+, parecia uma alternativa mais segura. Ainda assim, havia alguma apreensão, como ela conta:

“Negócio de futebol muitas vezes é a questão da violência, entendeu? Que naquela época já existia, hoje é maior, mas naquela época era muito grande na questão de tua… de tua sexualidade. Os gays não eram vistos com tanto preconceito, mas as travestis eram vistas como marginais, como marginais da sociedade” (MALTA, 2015, p.2).

Na época, Marcelly trabalhava na prostituição – até hoje, menos uma escolha e mais uma necessidade para a maioria das travestis e transexuais –, o que ampliava a situação de vulnerabilidade que vivia. Sob o argumento da “contravenção penal de vadiagem”, era alvo constante de prisões arbitrárias: “a gente era presa praticamente todo dia, na prostituição. E durante o dia tu não podia sair porque… Da maneira de vestir roupa feminina a gente não podia porque já era considerada vadiagem” (MALTA, 2015, p.14). Além disso, mesmo em alguns guetos homossexuais, havia rejeição a elas. Marcelly cita, por exemplo, que havia boates gays em que travestis eram proibidas de entrar ou outras que cobravam entradas mais altas para esse público.

Os números da violência contra travestis no Brasil[1] são suficientes para justificar o receio em adentrar qualquer espaço potencialmente inseguro. E o futebol traz ainda suas especificidades. Sobre isso, a amiga e pesquisadora Bárbara Gonçalves Mendes me relatou algo interessante sobre sua participação na pesquisa “Direitos e Violência na Experiência de Travestis e Transexuais na cidade de Belo Horizonte: Construção de um perfil social em diálogo com a sociedade”. Ela notou que a modalidade era recorrentemente utilizada como instrumento para posicionar os corpos de travestis e transexuais junto ao universo da masculinidade, ilustradas em falas direcionadas a elas como: “João, hoje tem pelada?”. Ela mencionou, também, ter tomado conhecimento de duas travestis apaixonadas por futebol e por seus clubes, que tinham muita vontade de frequentar o estádio, mas que não o faziam por receio de atos violentos contra elas – preocupação similar à descrita por Marcelly.

Mas, no caso da gremista, os temores não se concretizaram e ela foi surpreendida positivamente. Ela conta que a torcida tinha uma boa relação com outros/as torcedores/as e torcidas organizadas, e até mesmo com os jogadores do Grêmio. No Olímpico, nunca passou por alguma situação discriminatória: “Circulava por tudo que é lugar sem problema nenhum. De sofrer agressões, de sofrer dentro do estádio do Grêmio, nunca senti isso! Preconceito, discriminação…” (MALTA, 2015, p.10). Ela também endossou a valorização que o grupo recebia, manifestando sua satisfação por tal reconhecimento: “o mais gostoso dessa torcida, pra mim, foi tu conhecer pessoas, as pessoas vêm falar contigo, te elogiar, te parabenizar, aquela coisa toda” (MALTA, 2015, p.14). Acolhimento possivelmente raro para ela e seus/suas colegas da comunidade LGBT+.

Marcelly conta que acabou se afastando da Coligay pela dificuldade de conciliar a participação na torcida com a prostituição. Ela saía à noite para trabalhar, em seguida ia para a boate e, de manhã, já seguia junto ao coletivo gremista para o estádio. Com o tempo, as seguidas noites sem dormir foram se tornando mais cansativas. Ela foi reduzindo a frequência nos jogos até parar em definitivo. Por outro lado, também contribuiu com o abandono as alternativas de lazer: “Porque a gente tinha tanta coisa, entendeu? Era… Como é que se diz? Boates pra ir, festas e tudo, então jogo, isso ficou pra…” (MALTA, 2015, p.5).

Ao narrar sua experiência na agremiação, ela se concentra na diversão: “a gente ia porque era um fervo” (MALTA, 2015, p.10) e “a gente ia mais por causa dos amigos que a gente encontrava, as pessoas que a gente encontrava nessa torcida” (MALTA, 2015, p.8). Fica evidente, portanto, que seu interesse pelo futebol e por torcer pelo Grêmio não era tão intenso a ponto de semanalmente priorizar essa atividade.

Tendo esse vínculo clubístico aparentemente frágil, alguns anos após sua participação na Coligay, Marcelly passou a frequentar um bar ao lado do Ginásio Gigantinho, propriedade do Internacional, o que a motivou a trocar de clube. De forma simples e objetiva, ela explica a mudança: “tinha um bar vermelho e branco onde todas as travestis iam e eu me senti mais acolhida no Internacional” (MALTA, 2015, p.3. Ênfase da entrevistada).

Ao converter-se ao rival, sobretudo em idade adulta, Marcelly rompe com um princípio basilar e estruturante do clubismo: a fidelidade. Tal atitude é amplamente malvista entre torcedoras/es de futebol, sendo interpretado como traição, falha moral.

Sua mudança, contudo, nada tem a ver com o desempenho da equipe, como se costuma supor (DAMO, 1998). Mesmo com grandes vitórias do Grêmio naquele período (início da década de 1980), escolhe a receptividade – junto a outras travestis – num ambiente colorado. A aproximação de Marcelly com o Grêmio, via Coligay, e com o Inter, por meio do “bar vermelho e branco”, indica que suas escolhas clubísticas passam menos pelo crivo do pertencimento e mais (ou, ao menos, também) pela receptividade no ambiente futebolístico, dada sua travestilidade.

Nessa discussão, é necessário ter em vista que o futebol é uma modalidade em que parâmetros cisheterossexistas presentes em toda a sociedade são ainda mais reiterados e valorizados. No Brasil, esse esporte é um símbolo da masculinidade normativa, motivo pelo qual o apreço de uma travesti pode soar como improvável para o senso comum, o que diz da invisibilidade, e mesmo da repulsa, manifesta no universo futebolístico aos corpos que escapam a esses parâmetros normativos ali valorizados.

Uma busca no Google com os termos “travesti” e “futebol” – faça o teste, fica a sugestão – dificilmente te direcionará a conteúdos sobre experiências de torcedoras ou jogadoras. A maioria dos resultados (senão todos) abordará encontros secretos de jogadores, alguns violentos, todos tratados como motivos de vergonha aos atletas, que não raro buscam negar o desejo por tais corpos.

Se é verdade que “corpos transgêneros no esporte ainda são malvistos porque colocam em xeque a prerrogativa sobre a qual o próprio universo esportivo se assenta, qual seja, a da ‘igualdade de chances entre sexos’” (CAMARGO, 2017, s.p.), a extensão da rejeição às arquibancadas evidencia que o preconceito assentado em princípios cisheteronormativos antecipa qualquer argumentação.

A experiência de Marcelly mostra, portanto, que, se por um lado, ela desenvolveu o gosto pelo futebol e tem vontade de ir aos jogos, por outro, manteve-se sempre temerosa quanto a como seria tratada por outros/as torcedores/as e, por isso, desde a saída da Coligay evitou os estádios. Também por isso, sua experiência torcedora é norteada pelo convívio entre LGBT+s, coletivamente construindo sua segurança e diversão.

O futebol, com certa facilidade, serve de espaço de homossociabilidade masculina – ainda que restrita a “certos homens”, alinhados à cisheteromasculinidade ali prevista. A experiência de desfrute desse esporte é compartilhada entre pares. Conhecidos ou não, trocam comentários, reclamações, cânticos, abraços. Para um homem cis torcedor, entre homens cis torcedores, a noção de comunidade está dada.

O mesmo não se pode dizer de outros sujeitos. Para uma mulher cis torcedora há desconfianças. Um comentário sobre o jogo pode ser rapidamente ignorado ou descredibilizado apenas por partir de uma mulher cisgênera. E para uma travesti ou transexual, a simples presença em um espaço futebolístico já é um obstáculo. Marcelly encontrou seus refúgios para, também ela, torcer em comunidade. Encontrou até mesmo dois deles: a Coligay e o “bar vermelho e branco”. No cálculo de prazeres e receios que o futebol lhe proporciona, priorizou filiar-se ao clube que melhor lhe acolheu. Quem há de julgar?

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Para ter um gostinho da obra, você pode baixar gratuitamente o livreto de Plumas, arquibancadas e paetês: uma história da Coligay, uma amostra da versão final. É só clicar aqui.

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Notas

[1] Desconheço estatísticas da época, mas os dados atuais colocam o Brasil como líder no ranking da violência contra a população trans. Segundo o Boletim da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2019, ocorreu o assassinato de 121 travestis e mulheres transexuais e 3 homens trans. 

Referências

DAMO, Arlei Sander. Para o que der e vier: o pertencimento clubístico no futebol brasileiro a partir do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e seus torcedores. 1998. 247 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998.

SILVA, Silvio Ricardo da. Tua imensa torcida é bem feliz… da relação do torcedor com o clube. 2001. 130f. Tese (Doutorado em Educação Física). Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.

CAMPOS, Priscila Augusta Ferreira. Mulheres torcedoras do Cruzeiro Esporte Clube presentes no Mineirão. 2010. 142f. Dissertação (Mestrado em Estudos do Lazer) – Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Universidade Federal de Minas Gerais, 2010.

CAMARGO, Wagner Xavier. A era dos invisíveis no esporte, de 24/12/2017. Acesso em 05/08/2020.

CUNHA JÚNIOR, Carlos Fernando Ferreira de.; MELO, Victor Andrade de. “Homossexualidade, educação física e esporte: primeiras aproximações”. Movimento, Porto Alegre, v.3, n.5, p. 18-24, 1996.

MORAES E SILVA, Marcelo. Entre a ilha deserta e o arquipélago: mapeamentos e Cartografias das percepções de professores (as) sobre as Masculinidades produzidas nas aulas de educação física. 2008. 216f. Dissertação (Mestrado em Educação). Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008.

PRADO, Vagner Matias do. “Fica no gol para pegar as bolas”: Educação Física Escolar e o dispositivo da (homo)sexualidade. In: DORNELLES, Priscila Gomes; WENETZ, Ileana; SCHWENGBER, Maria Simone Vione (Orgs.). Educação Física e Sexualidade: Desafios Educacionais. v.1. Ijuí: Ed. Unijuí, 2017.

SANTOS, Luciene Neves. Corpo, gênero e sexualidade: educar meninas e meninos para além da homofobia. 2008. 136f. Dissertação (Mestrado em Educação Física). Centro de Desportos, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.


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Luiza Aguiar dos Anjos

Atleticana, boleira, professora e pesquisadora. Interessada principalmente nas existências invisibilizadas nas arquibancadas e campos.

Como citar

ANJOS, Luiza Aguiar dos. Gremista e depois colorada: esse torcer também é legítimo?. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 13, 2020.
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