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Guerra do futebol: quando um jogo foi o estopim de um conflito

Copa Além da Copa 13 de fevereiro de 2020

Esse texto é um complemento ao Copa Além da Copa #24, que fala sobre clubes e torcidas envolvidos em guerras na história. Você pode ouvi-lo clicando aqui, ou seguir nosso Twitter para acompanhar várias outras histórias interessantes sobre esporte, história e geopolítica aqui. O Copa Além da Copa é feito por Carlos Massari e Aurélio Araújo.


A crônica esportiva adora usar termos bélicos em suas tentativas de engrandecer feitos de times ou jogadores. Não à toa, muitas das mais inesquecíveis partidas já jogadas receberam apelidos como “batalha” ou “guerra”. Nem é preciso ir tão longe para encontrar esses dois temas tão distantes se cruzando: basta olhar o imaginário popular básico do futebol e encontrar termos como “artilheiro”, que perde o significado de ser alguém que faz parte da artilharia para se tornar o fazedor de gols.

É ótimo que futebol e guerra estejam juntos apenas no imaginário. Mas nem sempre foi assim: Algumas vezes, esses temas caminharam lado a lado. E mais de uma vez, o esporte mais popular do mundo serviu como estopim para deflagrar um conflito real.

Uma dessas vezes foi no clássico jogo entre Dínamo de Zagreb e Estrela Vermelha, em 1990, sobre o qual você pode ouvir em nosso podcast. A outra, que contaremos nesse texto, envolveu El Salvador e Honduras, dois pequenos países da América Central.

Um pouco de contexto histórico

Honduras e El Salvador são países vizinhos com características bastante próximas, mas condições geográficas diferentes. Estiveram juntos em um mesmo estado várias vezes na história, mas se separaram definitivamente em 1898, quando a Grande República da América Central (que também envolvia a Nicarágua) foi dissolvida. O motivo de tensão entre essas nações sempre foi a terra.

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Honduras e El Salvador no mapa. Fonte da imagem: Wikipedia.

Na década de 1960, a população de El Salvador era 40% superior à hondurenha. Isso ia na contramão das áreas dos dois países, uma vez que Honduras é seis vezes maior que o vizinho. Como é de se imaginar, esses números levaram a uma imigração em massa de salvadorenhos que foram buscar oportunidades, principalmente com o trabalho rural, do outro lado da fronteira.

Afinal, Honduras e El Salvador ainda eram muito rurais na época. Boa parte dos empregos eram gerados por grandes companhias que detinham as terras. Os pagamentos eram irrisórios e o serviço árduo. Era dessa forma que grande parcela das populações desses vizinhos sobrevivia.

Muitos dos salvadorenhos que cruzavam a fronteira passaram a viver em terras improdutivas que eram propriedade das ricas companhias. Isso fez com que essas empresas pressionassem o presidente de Honduras, o general Oswaldo Lopez Arellano, a criar uma lei que restaurasse a posse. 

Em 1967, foi aprovada uma reforma agrária que proibia que os imigrantes possuíssem terra. Os salvadorenhos ficaram sem ter como sobreviver em Honduras e tiveram que retornar ao seu país: estima-se que 300 mil pessoas foram expulsas de volta para El Salvador na época.

O futebol é sempre uma paixão

Navios ingleses tinham a América Central como rota constante. Logo, não demorou para que o futebol chegasse a essa parte do mundo. No final do século XIX, o esporte já era jogado pelas elites dos dois países. As condições extremamente rurais e as pequenas populações, porém, fizeram com que o desenvolvimento fosse lento.

A distribuição de vagas para as Copas do Mundo não era generosa com a CONCACAF: a confederação que inclui as Américas Central e do Norte tinha direito a apenas um lugar, quase sempre ocupado pelo México. Em 1970, porém, esse gigantesco país sediaria a competição, o que daria a alguma outra nação a chance de se classificar.

Honduras e El Salvador passaram por seus grupos iniciais e geraram enormes comoções de seus torcedores. Músicas e homenagens foram criadas. Uma delas, célebre até hoje, é “Pajaro Picón Picón”, que até hoje é quase que um hino da seleção salvadorenha:

As tensões entre os dois países já eram enormes. Os salvadorenhos, tratados com muita violência em Honduras, buscavam voltar à terra natal. Um confronto militar parecia bastante possível, uma vez que a situação só piorava.

Foi nesse contexto que o futebol mostrou-se imperdoável: para as semifinais daquelas eliminatórias para a Copa do Mundo, o sorteio colocou frente a frente Honduras e El Salvador. Três batalhas campais – dessa vez, sem usar o recurso metafórico adorado pelo jornalismo – estavam prestes a acontecer.

A ida aconteceu em Tegucigalpa, capital de Honduras, em 8 de junho de 1969. Os donos da casa venceram por 1 a 0. Houve briga e confusão nas arquibancadas, mas ainda era apenas uma pequena demonstração do que viria a seguir. Em San Salvador, a revanche, com 3 a 0 para os salvadorenhos e ainda mais violência.

Não havia decisão: uma vitória para cada lado, segundo o regulamento, resultaria em um terceiro jogo em campo neutro. 26 de junho de 1969, na Cidade do México, um conflito dentro de campo chegaria ao fim, uma guerra fora dele teria seu começo.

O jogo

No dia daquele jogo-desempate, El Salvador cortou as relações diplomáticas com Honduras, afirmando que o vizinho não havia feito nada para impedir “assassinatos, opressão, estupros, pilhagem e a expulsão em massa de salvadorenhos” após a última partida, chamando os acontecimentos de “genocídio”.  Os cálculos do governo estimavam que 11.700 de seus cidadãos haviam sido expulsos de Honduras só nos dias que antecediam a partida final. 

Costa Rica e Guatemala, países que tinham sido cotados para receber o jogo, se recusaram por causa do perigo. Sobrou para o México. Preocupadas com a imagem da Copa do ano seguinte, as autoridades mexicanas mobilizaram 1.700 policiais para cuidar da segurança das 15.326 pessoas que compareceram ao Estádio Asteca para conferir onde aquilo ia dar. 

Nas arquibancadas, a torcida de El Salvador gritava: “¡asesinos! ¡Asesinos!”. Em campo, a partida se manteve equilibrada, e o placar ficou em 2 a 2 durante o tempo normal. Como aquele jogo era o último da série, foi necessária uma prorrogação. 

No décimo primeiro minuto do tempo extra, a bola foi cruzada na área de Honduras e Maurício “Pipo” Rodríguez desviou-a, impossibilitando que o goleiro Jaime Varela pudesse pegá-la. 3 a 2 para El Salvador. O placar se manteve até o final do jogo, acabando com o sonho hondurenho. Os jogadores se cumprimentaram, e os salvadorenhos agora encarariam o Haiti pela vaga na Copa do Mundo.

“A guerra aconteceria com ou sem o gol”, disse Rodríguez, eximindo-se de qualquer culpa em entrevista à BBC, em 2019, quando toda essa história completou 50 anos. De fato, fora de campo, a animosidade não diminuiu, pelo contrário.

A guerra

Soldados salvadorenhos patrulham a fronteira com Honduras. Fonte: Wikipedia.

Verdadeiros campos de refugiados foram montados na fronteira entre os países, em decorrência da expulsão dos salvadorenhos. Em 4 de julho, as tensões aumentaram quando um diplomata de Honduras escreveu uma carta ao Reino Unido na qual comparou o ”desejo de expansão territorial” de El Salvador à Alemanha nazista. Os países acusaram um ao outro de violação de seus espaços aéreos e posicionaram tropas nas regiões fronteiriças.

O barril de pólvora finalmente explodiu no final da tarde de 14 de julho, quando a Força Aérea Salvadorenha atacou o aeroporto de Tecigualpa e bombardeou outras sete cidades de Honduras. Em resposta, os hondurenhos atacaram instalações da indústria de petróleo em El Salvador, bem como uma base militar no aeroporto de Ilopango.

Enquanto a guerra se desenrolava, o futebol permanecia no imaginário popular. O jornalista polonês Ryszard Kapuscinski, que estava em Honduras quando o conflito começou, escreveu um livro anos mais tarde sobre a guerra e recordou ter visto nas ruas pichações como “ninguém vence Honduras” e “vamos nos vingar dos 3 a 0”.

A Organização dos Estados Americanos atuou para conseguir um cessar-fogo entre os países a partir de 18 de julho, interrompendo a Guerra do Futebol em quase 100 horas exatas. Quando o acordo se concretizou, no entanto, já havia morrido entre 4.000 e 6.000 pessoas, a maioria delas civis de Honduras. Outras 15.000 ficaram feridas, e algo entre 60.000 e 130.000 salvadorenhos foram deportados.

Mesmo em trégua, salvadorenhos e hondurenhos viraram as costas uns para os outros por décadas, interrompendo o comércio e fechando as fronteiras. Os problemas que causaram a guerra, ou seja, uma elite fundiária pequena e grandes números de trabalhadores rurais sem terra, ainda afetariam El Salvador por muitos anos, levando a uma guerra civil entre 1979 e 1992.

Por causa da Guerra do Futebol, Honduras e El Salvador foram impedidos de participar do campeonato continental da Concacaf daquele ano (campeonato esse que foi descontinuado em 1991, dando lugar à Copa Ouro). Nas eliminatórias, entretanto, a seleção salvadorenha bateria o Haiti e realizaria o sonho de disputar uma Copa do Mundo em 1970. Sorteada num grupo difícil, com o anfitrião México, a forte União Soviética e a tradicional Bélgica, foram 3 derrotas, com 9 gols sofridos e nenhum marcado.

Honduras e El Salvador só voltaram a disputar uma partida entre eles 10 anos depois, nas eliminatórias da Copa de 1982, mesma época em que foi assinado um tratado de paz. Mas até hoje ainda há tensões fronteiriças, mesmo com uma resolução da Corte Internacional de Justiça sobre o assunto.

Rodríguez, autor do gol que supostamente começou a Guerra do Futebol, diz que as autoridades salvadorenhas usaram aquela vitória politicamente, quando deveria ter sido apenas um “orgulho esportivo”. “Nem do lado dos jogadores de Honduras, nem do nosso lado, os jogos foram entre inimigos, apenas rivais esportivos”, disse ele à BBC.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Copa Além da Copa

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Como citar

COPA, Copa Além da. Guerra do futebol: quando um jogo foi o estopim de um conflito. Ludopédio, São Paulo, v. 128, n. 16, 2020.
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