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Hungria: a mãe esquecida do futebol – Parte IV (final)

Gabriel Said 21 de abril de 2020

Na primeira parte, vimos como começou a era dourada na Hungria; na segunda parte, um pouco da diáspora húngara na Europa; e, na terceira parte, tratamos de ver o contato do futebol danubiano com o jogo sul-americano. Nesta parte final, a Hungria chega ao seu auge e ao fim das suas décadas brilhantes.

Geração de ouro da Hungria, 1953. Agachados: Mihály Lantos, Ferenc Puskás e Gyula Grosics. Em pé: Gyula Lóránt, Jenő Buzánszky, Nándor Hidegkuti, Sándor Kocsis, Jószef Zakariás, Zoltán Czibor, József Boznik e László Budai. Foto: Wikipedia.

Quando criança, tinha bolso e estômago vazios. Aos 16, virou instrutor de dança e, aos 21, era jogador do MTK Budapest. Aos 23, foi jogar em Viena e, com 25, era um dos destaques do bom time húngaro que foi um fiasco nas Olimpíadas de Paris em 1924. Dois anos mais tarde, estava em Nova Iorque, onde se enriqueceu e perdeu tudo na Grande Depressão. No mesmo ano, conheceu Imre Hirschl em São Paulo. Anos mais tarde, voltou à Áustria e começou a trabalhar como treinador até que, enquanto treinava o Újpest em Budapeste, acabou capturado pelos nazistas por ser judeu e no campo de concentração conheceu Erno Erbstein, com quem organizou um plano de fuga de sucesso. Este é o treinador húngaro mais vitorioso: Béla Guttmann.

Béla Guttmann, na época em que treinou o Servette, da Suíça, em 1966. Foto: Wikipedia.

Guttmann tem uma fama de personalidade difícil, com a história da sua maldição lançada no Benfica frequentemente sendo lembrada. O treinador não se tornou mais difícil conforme ganhava títulos, na verdade sempre foi difícil. No seu retorno ao futebol em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, exigiu da diretoria do Vasas que seu salário deveria ser pago metade em dinheiro vivo e a outra metade, em comida como meio de contornar a imensa inflação na Hungria na época. No ano seguinte, foi para a Romênia e retornou para o Újpest alguns meses depois porque havia se desentendido com autoridades do futebol romeno. Guttmann foi campeão húngaro com Újpest e era auxiliar da seleção em 1947, quando a Itália com 10 jogadores do Grande Torino de Erbstein derrotou a Hungria.

Guttmann foi demitido do Újpest depois de um desentendimento com um dirigente. Com vários jogadores convocados para a seleção, o treinador pegou leve no treinamento dos que permaneceram no clube, gerando críticas de um diretor. Béla então sugeriu que o diretor treinasse o time enquanto ele cuidaria do clube. O treinador foi parar no Kispest em 1948, onde conheceu Ferenc Puskás aos seus 20 anos. Foram apenas 2 derrotas nos 15 jogos restantes daquela temporada, com 28 gols de Puskás. O período no Kispest foi curto, terminando em novembro do mesmo ano; irritado com a agressividade do defensor Mihály Patyi, Guttmann avisou ao jogador que não deveria voltar a campo no segundo tempo. Puskás falou para Patyi jogar e, irritado com a situação, Guttmann abandonou o estádio no início do segundo tempo, foi para casa e nunca mais apareceu no clube. Poucas semanas depois, chegou à Itália com ajuda de Erbstein, fugindo da situação econômica cada vez mais precária na Hungria.

Na temporada 1949-50 italiana, o Torino conseguiu terminar em 6º apesar da Tragédia de Superga ter acontecido em maio de 1949, um feito e tanto para o clube, mas eles até hoje não conseguiram se recuperar do acidente. Sua rival de Turim, a Juventus, foi campeã nesse ano. No Padova, Guttmann conseguiu acompanhar a Juve até dezembro, até que o time começou a despencada de 2º para 15º lugar na tabela. Em 1950, teve uma passagem curta e fraca pelo Triestina e, em 1953, assumiu o Milan.

Em 1949, o clube rossonero era treinado pelo húngaro Lajos Czeiler, que, apesar do vice-campeonato em 49-50, conseguiu uma impressionante goleada contra a futura campeã Juventus por 7 a 1. Em 1950-51, o Milan ganhou seu primeiro campeonato desde 1907 com o trio sueco Gre-no-li no ataque (Gunnar Gren, Gunnar Nordahl e Nils Liedholm) e foi o primeiro clube italiano a ganhar a Copa Latina – competição entre clubes de Portugal, Espanha, França e Itália que aconteceu entre 1949 e 1957. Na temporada seguinte, o time de Milão terminou em 2º e Czeiler foi demitido. Seu Milan jogava um futebol ofensivo e direto, mas tinha alguns problemas defensivos em alguns jogos. Foi contratado Mario Sperone no seu lugar, antigo colega de Erno Erbstein no Torino. Já Czeiler treinou a Itália na Copa do Mundo de 1954, Sampdoria por três anos, Fiorentina por outros três e ganhou a liga e copa de Portugal com o Benfica em 1963-64, fazendo o recorde de 103 gols marcados em 26 jogos na liga.

No Milan, Sperone só durou um ano, sendo demitido após o 3º lugar em 1952-53. Béla Guttmann chegou com a temporada 1953-54 em andamento após algumas tentativas curtas e fracassadas de técnicos no início da temporada. O time melhorou com as duas sessões de treinamento implementadas e terminou em 3º no campeonato. Na liga de 1954-55, o Milan venceu as sete primeiras partidas e, em fevereiro, estava 4 pontos na frente do Bologna, quando perdeu para a Sampdoria de Czeiler. Guttmann atacou Czeiler depois do jogo e dois dias depois teve uma reunião de 5 horas com a diretoria do Milan, na qual saiu dela com o pedido de demissão. O Milan terminaria sendo campeão, mas Guttmann seguia com sua personalidade difícil.

Béla Guttmann chegou ao São Paulo em 1957, tendo como auxiliar Vicente Feola. Como escreveu Jonathan Wilson, diferentemente do que aconteceu com Dori Kurschner no Flamengo com Flávio Costa, que passava por cima do húngaro, Feola era um bon vivant e mais genial que Costa. No Brasil, Guttmann encontrou a interpretação de Costa sobre as ideias de Kurschner, o que facilitou o seu trabalho. Os times já estavam acostumados com um 4-2-4, então Guttmann se preocupou em tornar o jogo do São Paulo mais rápido e direto, repetindo “ping-pang-pong” e “ta-ta-ta” aos jogadores para pedir velocidade. Em entrevista no Ludopedio, Dino Sani comentou sobre o treinador, lembrando como Béla queria um jogo rápido: “Ele propunha um futebol simples, de três toques até a meta adversária. Queria inversões, lançamentos, trocas rápidas de passes e menos dribles. Achávamos impossível. Com tudo isso, economizávamos tempo e logo chegávamos ao gol.”

Em São Paulo, Guttmann já reconhecia que era incapaz de permanecer por muito tempo em um clube: “O terceiro ano é fatal”. E, em 1958, desembarcou em Portugal, e fez o Porto recuperar 5 pontos de desvantagem no campeonato, e terminar na frente do Benfica. Em 1959, chegou ao Benfica no seu auge.

Filho de pai eslovaco e mãe polaca, László Kubala nasceu em Budapeste em 1927. Seu pai era pedreiro e sua mãe trabalhava em fábrica. Quando criança ganhou um violino do pai e usava o instrumento como trave. Kubala era alto, veloz e um prodígio com a bola. Sua família não acreditava que ele era tão bom, a ponto de, quando o filho chegou em casa com o primeiro pagamento do futebol, brigarem com László e irem com ele até o clube para devolver o dinheiro que acreditavam ter sido roubado para então ouvirem que Kubala merecia cada centavo. Aos 15 anos, estava jogando pelo Feréncvaros e, aos 17, já jogava pela seleção húngara.

Em 1946, juntou-se ao Slovan Bratislava e, em 1948, foi notificado que deveria cumprir o serviço militar pela Hungria. Com os traumas da Segunda Guerra muito recentes, Kubala começou a sua fuga em janeiro de 1949, conseguindo chegar à Itália. Em abril, recebeu um convite para jogar uma partida amistosa pelo Torino, mas o falecimento de um amigo o impediu de participar. Era o amistoso contra o Benfica em Lisboa que seria tragicamente lembrado depois pela Tragédia de Superga.

Kubala assinaria com o Pro Patria se a FIFA não o tivesse banido, então o atacante foi para o Hungaria, um clube de Roma composto por refugiados políticos russos, croatas, eslovacos, tchecos e húngaros. A equipe era treinada por Gyula Zsengellér, que foi treinador de Kubala no Slovan Bratislava, além de ser seu cunhado e atacante da Hungria na final da Copa do Mundo de 1938.

No verão de 1950, o Hungaria fez um tour na Espanha, jogando contra Real Madrid, Espanyol e a seleção espanhola. O gigante da capital era muito interessado em contratar os talentos húngaros e contratou alguns na década, mas Kubala decidiu-se pelo Barcelona. Victor de Leonardo Figols já escreveu no Ludopédio sobre o ídolo blaugrana.

“Puxar o ponta-de-lança um pouco para trás pode não parecer nada demais, mas foi a mudança vital no desenvolvimento dos Aranycsapat”. Assim define Jonathan Wilson sobre a importância daquele ajuste de Márton Bukovi em Zagreb no ano de 1947. O que a Hungria alcançaria nos próximos anos seria um nível nunca mais alcançado por nenhuma seleção. Ganharam a Copa Internacional centro-europeia em 1953 e as Olimpíadas de Helsinki em 1952 contra o bom time da Iugoslávia, mas os títulos conquistados não fazem jus aos mágicos magyares, que em 50 partidas entre 1950 e 1956 venceram 42 e perderam uma (a mais importante). Também foi considerada a melhor seleção de todos os tempos pela BBC e tem até hoje o recorde histórico do Ranking Mundial Elo. Números à parte, a Hungria conseguiu unir gerações de ouro tanto de treinadores quanto de jogadores e formar uma equipe quase imbatível mesmo sem um craque como Kubala.

O país queria nacionalizar o futebol e viu no título mundial italiano de 1938 em criar uma ponte direta entre um clube e a seleção um caminho para a nacionalização. Kispest foi o clube escolhido pelo Ministério da Defesa como base da maioria dos jogadores da seleção e o clube passou a se chamar Honvéd. Puskás e Bozsik já estavam no clube e se juntaram a eles Kocsis, Czibor, Budai, Lóránt e Grosics.

Gusztáv Sebes. Foto: Reprodução/Facebook.

Gusztáv Sebes era o treinador do Honvéd e da seleção. Sebes não era taticamente inteligente como outros compatriotas, mas era capaz de entender o que acontecia ao seu redor para aproveitar as melhores ideias e usá-las nos seus times, além de ter uma grande capacidade de liderança, assim conseguiu aproveitar a ideia de Bukovi. Sebes sabia exatamente o que ele precisava, seus times eram pensados metodicamente e ele tinha uma capacidade de negociação que poderia fazê-lo um grande político, mas ao invés disso ele conseguia contratar jogadores, convencê-los a jogarem como ele queria e treinar a melhor seleção da história. Os Aranycsapat são um exemplo de uma brilhante geração de jogadores com características que se complementam, mas sem a sagacidade de Sebes o potencial da geração poderia nunca ter aflorado.

O coração dos Aranycsapat era Puskás. Inegavelmente um dos melhores de todos os tempos, o atacante canhoto era um encanto à parte nos jogos. Baixinho e gordinho, Jonathan Wilson diz não se tratar de um Adonis impossível, mas de um homem como qualquer outro e cheio de alegria, por isso seu apelido era Öcsi – criança. Puskás zombava de todos: uma vez, ao ver o ministro da defesa todo de branco, falou para ele que parecia um sorveteiro. Todos ao redor ficaram tensos com a piadinha, mas o ministro riu. Assim era Öcsi.

Márton Bukovi treinou o Dinamo Zagreb até 1947, quando foi para o MTK e ficou lá até 1954. Nos dois primeiros anos, o ponta-de-lança do MTK era o romeno Norbert Höfling, um tradicional 9 de muita força. Quando ele foi negociado com a Lazio em 1949, Bukovi voltou à sua ideia de Falso 9 com Péter Palotás e depois com Nándor Hidegkuti.

Não se esperava que Palotás marcasse gols nem tivesse muitas chances de marcar, mas sim que usasse da sua excepcional visão de jogo para recuar da linha de ataque e distribuísse passes para os outros atacantes e pontas. Se Hidegkuti ganhou o lugar de Palotás no MTK, é porque “ele tinha um tipo especial de inteligência e excelente habilidade técnica,” disse László Bödör, seu companheiro de MTK. “Ele era capaz de sempre dominar a bola e ver o espaço no campo para onde atacar. Era bom no alto, no chão e era um ótimo finalizador. Marcava gols de posições que outros nem sonhavam. […] Hidegkuti se adaptou a jogar recuado, ele não marcava tantos gols jogando assim mas criava espaço para outros”. Hidegkuti era o cérebro daquela Hungria, aquele que fazia os húngaros serem tão difíceis de se enfrentar.

A Hungria chegava para enfrentar a Inglaterra em Wembley no ano de 1953 superpreparada; vencer os ingleses, os inventores do jogo, não saía da cabeça de Sebes. Para isso, preparou o time para todas as possíveis surpresas: alargou o campo de treino para espelhar Wembley; usava bolas que absorviam mais água e ficavam mais pesadas durante o jogo; até usou máquinas de fumaça para simular a neblina londrina.

Cartaz informativo inglês daquela que seria a Partida do Século. Foto: Reprodução/Twitter.

No dia 15 de novembro de 1953, jogaram um amistoso com bolas inglesas e terminaram jogando mal e com empate em 2 a 2. Sebes então mudou os planos de viagem adicionando uma parada em Paris para outro amistoso, este com goleada por 18 a 0 para elevar os ânimos e confiança do time. Mesmo assim, os húngaros estavam tensos antes do jogo contra a Inglaterra. Os ingleses sempre mantiveram uma fama de ‘melhores do mundo’ apesar de nunca provar isso devido ao seu isolacionismo histórico. Nem mesmo a vexatória derrota para os Estados Unidos na Copa do Mundo de 1950 abalou a imagem que o mundo tinha dos ingleses. A Hungria mostrava sua absurda superioridade desde o aquecimento: enquanto os ingleses só faziam alguns alongamentos e chutes, os húngaros tinham um aquecimento energético que deixava o time pronto desde o primeiro minuto das partidas. Também no túnel, antes de entrar em campo, os ingleses perceberam que os adversários estavam usando chuteiras leves que pareciam tênis por terminar antes do tornozelo, diferentes das chuteiras pesadas em forma de bota usadas pelos ingleses. Jonathan Wilson sugere que as chuteiras húngaras não pareciam se adequar aos jogos na Inglaterra, especialmente aos lamacentos campos de fevereiro, mas eram uma representação material dos ideais desenvolvidos pelo MTK: técnica, passe e velocidade de decisão.

O aquecimento faz a diferença e com apenas 45 segundos a Hungria já estava na frente. Hidegkuti foi o autor dos dois primeiros gols húngaros e Púskas fez o terceiro e o quarto. No final do primeiro tempo, o placar já estava 4 a 2 para a Hungria. Wilson alerta ainda que o placar não é um bom reflexo do jogo, a Hungria foi dominante na partida e Hidegkuti foi imparável: “Se Harry Johnston (zagueiro central inglês) seguisse Hidegkuti, deixaria um grande buraco no meio da defesa e deixando ele livre significaria que Hidegkuti ficaria com muito espaço para criar. O W-M, ao menos o praticado pela Inglaterra, era muito inflexível para lidar com oponentes que não combinassem com sua formação”. A partida terminou 6 a 3 com Bozsik marcando o quinto e Hidegkuti fazendo o seu terceiro no jogo. “Jogamos futebol como Jimmy Hogan nos ensinou”, disse Sebes depois da partida considerada como a maior do século XX. O orgulho inglês estava ferido, mas ficaria ainda mais depois do jogo da volta em Budapeste seis meses depois: 7 a 1 para os donos da casa, a maior derrota da história da Inglaterra até hoje.

Grafite em Budapeste fazendo referência à Partida do Século. Foto: Reprodução/Twitter.

O futebol estava fazendo o povo húngaro recuperar seu orgulho. Para o segundo jogo contra a Inglaterra, mais de um milhão de pessoas pediram ingressos e mais de 105 mil estavam no estádio. Muitas pessoas entravam e enviavam o seu ingresso para o lado de fora com pombos-correios para mais pessoas entrarem. Os Aranycsapat eram importantes para o ânimo da população, como Grosics relatou:

“De certa forma o jogo de 1954 foi mais importante porque provou que o que tinha acontecido em Wembley não foi sorte. Nunca antes ou depois houve tanto interesse na Hungria por uma partida. Naqueles dias de ditadura, era o futebol que unia as pessoas dentro do país com as 5 milhões morando fora. Havia um sentimento de união na nação, algo para fazer parte”.

A Hungria chegou à Suíça para a Copa do Mundo depois de um 10 a 0 em amistoso contra Luxemburgo. Estreou contra a Coréia do Sul com 9 a 0 e bateu a Alemanha Ocidental por 8 a 3. Eram 34 gols marcados nos últimos quatro jogos, sendo 17 deles nos dois jogos do Mundial. Porém, quando estava 5 a 1 contra os alemães Púskas foi acertado por trás por Liebrich, provocando uma microfratura no tornozelo e o tirando das quartas de final e semifinal, voltando para a final contra a mesma Alemanha Ocidental longe do ideal físico.

Nas quartas de final, a Hungria encarou o Brasil no jogo que ficou conhecido como Batalha de Berna pela sua violência. Taticamente, como diz Jonathan Wilson, aqueles eram os dois times mais evoluídos da época e o jogo correu bem até o início do segundo tempo, mais especificamente até a marcação do pênalti para a Hungria. A partir dali, o árbitro inglês Arthur Ellis perdeu o controle do jogo e a violência se descambou até o fim, com vitória húngara por 4 a 2. A semifinal foi contra o Uruguai – na época, os atuais campeões mundiais – e foi um dos melhores jogos já disputados. A Hungria abriu 2 a 0 de vantagem, o Uruguai empatou com gols aos 75 e 86 minutos de jogo, levando a partida para tempo extra, para que Kocsis marcasse 2 gols no segundo tempo da prorrogação e levasse a Hungria à final.

A Hungria chegou à final com 29 jogos de invencibilidade, como campeã olímpica, vencendo duas vezes os inventores do jogo, com o melhor ataque do mundial, derrotando o outro time mais avançado taticamente (e que venceria três das próximas quatro Copas), vencendo os atuais campeões e já tendo derrotado o outro finalista de goleada durante a competição. Nunca houve tamanho favoritismo em uma final de Copa do Mundo, a derrota húngara era uma zebra inimaginável.

Quatro metros fora da área, Puskás desacelera esperando o passe em profundidade de Mihály Tóth. Estava nas costas de Werner Liebrich e Karl Mai tentava chegar a tempo, mas estava muito longe. O passe veio, Puskás deixa a bola passar pelo seu corpo para chegar a seu pé esquerdo, só o goleiro Toni Turek separava o atacante húngaro do gol. Puskás chuta, sua chuteira sai do pé com o chute, mas a finalização é boa e a Hungria marca. Era o 3 a 3 com quatro minutos restando para o término da final da Copa de 54 e a partida iria para o tempo extra. Os húngaros tinham acertado a trave incontáveis vezes durante o jogo e era realmente difícil explicar como os alemães tinham feito o gol do título dois minutos atrás. O gol de Puskás é merecido, Liebrich está exausto, Mai leva as mãos à cabeça e Turek enfia a cara na lama, ao que tudo indicava a Hungria seria campeã no tempo extra. Seria…

O bandeirinha galês Mervyn Grifitths – figura controversa e autoritária, aponta Jonathan Wilson – levantou a bandeira e o árbitro inglês Bill Ling anulou o gol. Assistindo os vídeos da final, Wilson diz que é impossível ter clareza sobre o lance pelas imagens, mas Puskás ficou furioso: “Eu não conseguia acreditar, foi quase um minuto mais tarde quando ele levantou a bandeira. Eu poderia matá-lo. Perder uma final de Copa do Mundo desse jeito não é certo”.

Com as massas movidas pelo futebol dos Aranycsapat, começaram a surgir pequenas manifestações populares em Budapeste e com a derrota na final, a população levantou uma revolta que por algum momento assustou as autoridades locais. Daí talvez tenha ficado um sinal para os húngaros de que eles tinham força para se opor ao governo. Em 1957, essas revoltas seriam lembradas e, com a contrarrevolução Húngara, a seleção seria totalmente desfeita. Puskás foi para Madrid, Czibor e Kocsis para Barcelona, demais jogadores que por qualquer motivo estavam fora da Hungria também não voltaram, incluindo o time sub-21 inteiro da Hungria. Como Wilson diz, o país perdeu de uma só vez seus melhores jogadores, treinadores, administradores e, com eles, a ponte para a próxima geração. Após 40 anos dourados, tudo que restou foi o caos.

2 de maio de 1962. Béla Guttmann já tinha vencido três campeonatos em Portugal com o Benfica e estava defendendo o posto de campeão europeu contra o Real Madrid no Estádio Olímpico de Amsterdã. Do seu lado, o Benfica tinha o jovem Eusebio e o Real Madrid tinha o experiente Puskás no ataque. Com 23 minutos de jogo, Puskás já havia marcado dois gols. O Benfica diminuiu logo depois e aos 34 empatou. Aos 38, Puskás fez mais um gol – seu 2º hat-trick em finais europeias. No início do segundo tempo, os portugueses empataram novamente. No meio do segundo tempo, Eusebio, o moçambicano recém-chegado em Portugal, marcou de pênalti e, três minutos depois, marcou de falta o seu segundo gol. A final terminou 5 a 3, e o Benfica de Guttmann conquistou sua segunda final europeia. Em um ato de grande simbolismo, Puskás e Eusebio trocaram camisas ao final, o veterano estava dando lugar para o atacante catorze anos mais jovem. Nenhum deles voltaria a ganhar uma Copa Europeia.

Da esquerda para a direita: Puskás, Eusebio, Juarez Soares, Raymond Kopa e Pelé, em jogo da Copa do Mundo de 1986.

Jonathan Wilson diz que essa final em Amsterdã marcou o fim de uma era. Um novo estilo de jogo suplantaria o jogo danubiano. Östreicher, diretor húngaro do Real Madrid responsável por levar o futebol danubiano e rio-platense para o clube, saiu do clube três meses depois. Na final de 1963, o Benfica perderia para o Milan de Nereo Rocco, marcando o início da era do catenaccio. “O futebol nunca mais seria tão fluido e aberto. Estrutura se tornou fator chave, até com a superação do catenaccio pelo Futebol Total pelos neerlandeses. O futebol estava entrando na sua era moderna e assim a Hungria ficou para trás”.

“Hungria foi a grande marmita de ideias deste esporte, a impulsionadora das mudanças mais influentes e os avanços mais notáveis. E, porém, hoje é um terreno baldio infértil e o esquecimento caiu sobre aquele laboratório que durante décadas reuniu os cérebros mais criativos do universo do futebol. Os violinos repousam, empoeirados, em um canto escuro…” – Martí Perarnau.

Semeado pela diáspora inglesa e cultivado pela diáspora dos húngaros, assim é a história do futebol. De Edward Shires, John Robertson, Jimmy Hogan a Gyorgy Orth, Hirschl, Kurschner, Erbstein, Hidegkuti, Bukovi, Kubala, Puskás, Guttmann e incontáveis outros. A cultura húngara unia estética com pragmatismo à sua inventividade infinita e, apesar de já ter chegado ao seu fim há mais de meio século, talvez estejamos todos metaforicamente em um café de Budapeste ou em um de seus grunds.  

Cartaz de Puskás à mostra em uma vitrine escondida em Budapeste. Junto dele, foto da equipe do Real Madrid com Puskás. Foto: Acervo pessoal.
Placa de campeão da Copa Mitropa, competição predecessora da Copa dos Campeões. No período entreguerras, Feréncvaros, Újpest, Bologna, Austria Viena e Sparta Praga foram os maiores vencedores com dois títulos cada. Foto: Acervo pessoal.
Loja esportiva no centro de Budapeste em 2018. Da esquerda para direita, duas camisas do Vasas, camisa do MTK, Honvéd e uma parede inteira para o Feréncvaros. Foto: Acervo pessoal.
Camisas do Újpest e bola de coleção do Puskás com destaque em loja no centro de Budapeste no ano de 2018. Foto: Acervo pessoal.

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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. Hungria: a mãe esquecida do futebol – Parte IV (final). Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 30, 2020.
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