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Ikurriña em campo: Athletic Bilbao e a identidade basca

Gabriel Said 25 de setembro de 2019

Futebol espanhol e antropologia são dois assuntos que não tenho muito contato, mas em uma disciplina chamada “Ritual e simbolismo” oferecida pelo Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) tive que fazer um trabalho sobre o livro Ensaio sobre a dádiva, de Marcel Mauss, e aproveitei a oportunidade para permitir este devaneio sobre o Athletic Bilbao. Como era um trabalho simples, me usei do que já conhecia sobre o clube e do minidocumentário disponível no Youtube e produzido pelo canal COPA90, chamado This Is Athletic Club Bilbao – Basque Identity vs Modern Football. O documentário está na língua inglesa e possui legendas em espanhol. Trata do Athletic Club Bilbao e como ele e sua torcida vivenciam o futebol moderno de uma forma distinta, de prestação total da dádiva, como relata Mauss.

Ikurrina ou Bandeira Basca foi carregada no derby basco entre Real Sociedad e Athletic Club, em 1976. Foto: Wikipedia.

Em Ensaio sobre a dádiva, Marcel Mauss escreve sobre as relações em diversos povos arcaicos sobre as trocas de presentes e o interesse, compreendendo essas trocas em sociedades sem uma moeda definida como uma forma de sistema econômico moral. Tais trocas são o que Mauss chama de dádiva e as considera como fatos sociais totais por englobarem em si todos os aspectos sociais da sociedade, com dimensões sociais, históricas e biopsicológicas:

“Existe aí [nas sociedades arcaicas] um enorme conjunto de fatos. E fatos que são muito complexos. Neles, tudo se mistura, tudo o que constitui a vida propriamente social das sociedades que precederam as nossas – até às da proto-história. Nesses fenômenos sociais “totais”, como nos propomos chamá-los, exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo –; econômicas – estas supondo formas particulares da produção e do consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuição –; sem contar os fenômenos estéticos em que resultam estes fatos e os fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam.”

Mauss conclui que a troca de presentes, a dádiva, não acontece sem um interesse, seja implícito ou explícito. A troca de presentes se dá movida a partir de uma característica religiosa, pois os objetos possuem um espírito (hau) que faz com que os presentes sigam sendo dados e recebidos, caso o contrário o hau poderá atormentar aqueles que não cumprirem o ritual. A dádiva, como Marcel Mauss descreve, pode também ser vista em alguns grupos de sociedades não arcaicas, como em ritos religiosos ou em outras experiências humanas transcendentais que podem adotar características religiosas, como no caso do futebol.

Aqui vou pensar a dádiva no povo basco, que é muito distinto de qualquer outro grupo étnico na Europa Central pela sua cultura muito acentuada, com destaque especial para sua língua, que não tem qualquer parentesco com nenhuma outra língua moderna. O País Basco parece conseguir usar do futebol, que igualmente pode ser pensado como fato social total, a sua forma de se transcender no planeta globalizado, de forma de autoafirmação e identificação, através de uma relação não monetária que consegue fazer com que seu clube, o Athletic Bilbao, tenha um lugar de destaque no mundo do futebol.

Cartaz com o símbolo do Athletic Bilbao e a mensagem “Aupa Athletic!!” (“Vamos Athletic!!”, em tradução livre). Foto: Wikipedia.

No futebol do século XXI, de cultura globalizada em expansão e constante imigração e comercialização de jogadores como se fossem mercadorias ou ações financeiras para garantir a prosperidade dos clubes, o Athletic Bilbao desafia a lógica por se negar a contratar jogadores quaisquer, de valor puramente técnico ou econômico. O clube entende que é mais importante manter uma identidade com sua terra e cultura basca do que em uma busca por mais troféus, deixar de ser o que é, ou seja, mais que um clube de futebol.

Euskal Herria, a “terra do euskara” é o nome basco de parte da região norte da Espanha e sudoeste francês, composto pelas comunidades autônomas espanholas de Navarra e País Basco, além de Iparralde na França. Esses territórios juntos formam o País Basco histórico-cultural, com cultura e língua própria, o euskara. Existe no povo basco um sentimento nacionalista forte, de não pertencimento à cultura, ao Estado e reino espanhol e sim uma ideia de que a Euskal Herria não é como uma outra etnia espanhola. Essas tensões entre bascos e espanhóis se agravaram durante grande parte do século XX com o regime nacionalista franquista que fez diversas perseguições contra líderes bascos e repressões à cultura basca como, por exemplo, tentar banir a língua euskara, proibindo-a de ser praticada. Em Bilbau, capital da província de Biscaia, está localizado o Athletic Club Bilbao.

O Athletic Bilbao resistiu à repressão franquista, teve até seu nome trocado durante a ditadura para “Atlético” para virar um clube puro, com nome em castelhano. O Athletic é um clube de futebol que joga a La Liga (principal divisão nacional de futebol da Espanha) e se distingue por se limitar a jogar apenas com jogadores bascos. Os fatos de o clube ter uma das cinco maiores torcidas do futebol espanhol, ser o quarto maior vencedor de títulos do campeonato nacional e ser um dos três únicos clubes a terem jogado todas as edições do campeonato, sem sofrerem com o rebaixamento para divisões inferiores, fazem do Bilbao um dos clubes mais tradicionais da Espanha mesmo com a aparente inferioridade autoimposta pelo clube.

Torcedores do Athletic recebem o time em frente à prefeitura de Bilbau, depois de perder a final da Copa del Rey de 2008-09. Foto: Wikipedia.

A limitação que o clube se impõe sob um olhar mercadológico capitalista é facilmente compreendida como algo que enfraquece o clube, afinal enquanto seus adversários podem buscar os melhores jogadores basicamente em qualquer lugar do mundo, o Athletic Bilbao está limitado a uma população basca de cerca de três milhões de homens, mulheres, crianças e idosos. Em termos de comparação, a população basca equivale a aproximadamente 6,5% da população espanhola. Contrariando essa perspectiva, o que se entende pelos bascos é que sua limitação é sua força, é a razão que explica como o clube consegue competir contra os demais, como o jornalista Jorge Cerrato explica:

“É uma autoimposta limitação por um lado mas que por outro te dá muitíssima mais força, porque sabe que está competindo em condições inferiores de nível contra outros grandes clubes que podem contratar jogadores de qualquer lugar. Mas você tem um motivo de orgulho e uma dificuldade que você se deu por uma tradição e costume que te dá força para se superar cada vez mais.”

Não existe e nunca existiu qualquer tipo de proibição formal impedindo o Athletic Bilbao de contratar jogadores não bascos, então poderia-se supor que a qualquer momento o clube possa mudar de política. Tal suposição não seria correta porque a política de transferências do clube é uma dádiva, e apesar de aparentar ser voluntária ela tem também caráter obrigatório no cumprimento. Em outras palavras, a torcida do Athletic exige essa prestação do clube, como pode-se identificar na frase dita pelos torcedores: “Con cantera y afición, no hace falta importación” (Com jogadores formados pelo clube e torcida, não sentimos falta de importação, em tradução livre). O clube está na obrigatoriedade de não “dar” a importação para sua torcida e em troca tem a obrigatoriedade de receber apoio. O que podemos ver como uma troca harmoniosa, uma vez que o Bilbao tem a quarta melhor média de público da Espanha, com mais de quarenta e um mil por jogo e uma taxa de ocupação do estádio de quase 80%, sendo a sétima melhor do país nesse quesito.

Pode-se pensar na relação do Athletic Bilbao e o povo basco com o que Marcel Mauss escreve sobre os povos de Samoa, na Polinésia. Mauss fala sobre dois elementos essenciais no potlatch de Samoa; a honra e prestígio dadas pelo mana e a obrigação de retribuição das dádivas sob o risco de perder o mana. Ora, como dizem nas entrevistas, jogar no Bilbao significa jogar em um clube único, incomparável a qualquer outro clube no mundo.

Partindo desde o início do vídeo, é possível ter uma compreensão de que o clube representa algo a mais para sua gente. Ele possui um caráter invisível, místico, que carrega o orgulho de ser diferente. Essa carga invisível o transforma em algo muito maior do que apenas um clube de futebol para os bascos. Quando o Athletic joga, existe a preocupação de que a sua forma de jogar represente a maneira de pensar e de sentir de seus torcedores. A vitória, costumeiramente sendo o único objetivo dos times quando estão jogando, fica em segundo plano, é tratada como um substrato do objetivo maior que é a maneira basca de jogar futebol. Em outras palavras, o Athletic Bilbao quer decidir de que maneira ganhar e perder uma partida, a vitória pela vitória como um objetivo por si própria não lhe interessa.

Foto panorâmica do Estádio San Mames, do Athletic Bilbao. Foto: Wikipedia.

O Athletic Bilbao é como uma religião, seu estádio San Mamés é chamado de “Catedral” por seus fanáticos. Todos sabem quem são seus jogadores porque todos são torcedores do Athletic que já sonharam em serem eles mesmos os jogadores, por isso não entendem quando seus jogadores decidem sair do clube para jogar em outro porque a torcida vê seu clube como o melhor do mundo.

Poderia-se equivocadamente pensar que o clube é mais fraco por se limitar a jogadores bascos, que deveria fazer igual a qualquer outro clube e contratar jogadores de qualquer lugar do planeta, e que se o Athletic já tem sucesso se limitando tanto, poderia alcançar ainda mais caso se abrisse para o mundo. O entendimento em Bilbao, porém, é o oposto; caso o clube abrisse mão de suas obrigações de retribuição à Heuskal Herria, perderiam seu mana. O que faz o Athletic Bilbao forte é exatamente aquilo que parece o fazer fraco: sua política. Quando o clube decide usar apenas jogadores bascos, ele não está apenas jogando com jogadores nascidos em uma mesma região, os jogadores carregam consigo uma dádiva que só é possível pelo Athletic ser mais que um clube, ser uma religião. É uma conta matemática que não pode ser explicada racionalmente, como se a soma dos onze jogadores em campo resultasse em um valor maior que onze. Assim como Albert Uderzo e René Goscinny escreveram histórias de uma minúscula tribo gaulesa liderada por Asterix e Obelix que sempre resistiam às constantes tentativas de invasão do poderoso Império Romano graças à poção mágica feita pelo druida Panoramix, o Athletic Bilbao resiste ao futebol moderno.

Bilbao resiste entre gigantes assim como os gauleses resistiam aos romanos. Foto: Reprodução.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. Ikurriña em campo: Athletic Bilbao e a identidade basca. Ludopédio, São Paulo, v. 123, n. 27, 2019.
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