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Itália e a Copa de 34: uma vitória com toques de fascismo

Thiago Rosa 24 de maio de 2019

Sábado, 10 de junho de 1934, Roma. No lugar conhecido como Velho Stadio Flaminio, mais de 55 mil pessoas aguardam o início de Itália e Tchecoslováquia. Perfilados, jogadores italianos, árbitro e auxiliares levantam o braço direito e estendem a palma da mão em direção às tribunas.Não era um gesto qualquer, mas a saudação a Benito Mussolini. Era o fim da 2ª Copa do Mundo e o auge do fascismo no futebol. 

Saudação fascista da seleção italiana durante a Copa
Saudação fascista da seleção italiana durante a Copa. Foto: Divulgação.

Mussolini foi, provavelmente, o primeiro governante a usar o futebol como extensão da política. Acreditava ele que poderia fidelizar as massas, especialmente a Giovinezza (a juventude), por meio do esporte. Com um Mundial jogado em território italiano, queria mostrar ao mundo sua força e capacidade de organização. De quebra, ainda buscava legitimar seu governo junto à comunidade internacional, que questionava seus métodos – obrigar professores a usarem o uniforme fascista e exibir a execução de opositores ideológicos são alguns deles, segundo conta o livro Glória Roubada: O Outro lado das Copas, do jornalista Edgardo Martolio.  

O Duce italiano, como Mussolini era chamado, começou a interferir no futebol quase uma décadas antes do Mundial. Em 1926, redigiu a chamada Carta de Viareggio, considerado o estatuto fascista do futebol. A partir daquele momento, passou a indicar ele mesmo os presidentes das federações, organizar os torneios e o futebol se tornou profissional. O documento também decretou o banimento dos jogadores estrangeiros, uma medida inspirada na crença de superioridade racial e na limpeza étnica.

Mussolini tentou trazer para a Itália a Copa de 30. O Uruguai, medalha de ouro nas Olimpíadas de 1924 e 1928 e o futebol mais bem jogado no mundo, acabou levando a melhor. A escolha fez o Duce decidir não levar a Itália para o Mundial. Em vez disso, mandou olheiros para ver jogadores e aprender a organizar o evento.

Encerrada Copa – vencida pelos donos da casa – o desejo de Mussolini ganha ainda mais força. O objetivo era sediar o evento a qualquer custo. No Congresso da Fifa de 1932, em Estocolmo, ele consegue. Para isso, convence os suecos e franceses a desistirem da mesma ideia.

Conquistado o direito de sediar o Mundial, era preciso organizá-lo. Para essa tarefa, o governante chama Giorgio Vaccaro, general do Exército e presidente da Federação Italiana de Futebol. Vaccaro também foi dirigente da Lazio e o homem responsável por fazer Mussolini se tornar torcedor do clube de Roma. “Sua responsabilidade, Vaccaro, é o título mundial. Não sei como você vai fazer isso, mas vencer é uma ordem, não um pedido”, disse ele ao dirigente.

Para o Mundial, foram disponibilizados 8 estádios, três deles construídos especialmente para a Copa – em Nápoles, Trieste e Turim.  Em Roma, o Stadio Flaminio foi rebatizado de Estádio do Partido Fascista. Os italianos tinham quase tudo. Faltavam os jogadores para fazer a Azzurra vencer. 

Oriundi, o talento que vem de fora

 

Quando a Itália assegura seu direito de sediar a Copa, Mussolini já ditava as regras de quase tudo. Segundo conta o livro História do Século XX, de Bernard Droz e Anthony Rowley, com as chamadas leis fascistíssimas (1925-1926), o país entra de vez em uma nova ordem totalitária, na qual o líder governa por decreto, a imprensa e a produção artística são censuradas, sindicatos e associações não fascistas são proibidos e partidos políticos são extintos. A figura do ditador era mais do que evidente.

Se, no plano ideológico, Mussolini consagrava seu totalitarismo perseguindo adversários, minorias e expulsando estrangeiros do futebol, no campo da estratégia ele sabia que não conseguiria sucesso na Copa só com atletas nascidos em solo italiano. Assim, para fortalecer a seleção e conquistar o troféu, a Itália vai buscar jogadores de qualidade na América do Sul. Invoca uma lei vigente, que garantia dupla nacionalidade de forma automática a qualquer filho de italiano. Eram os oriundi,  termo derivado do verbo latino oriri (nasceu). Da seleção que jogaria o Mundial, cinco atletas tinham origem sul-americana: o brasileiro Anfilogino Guarisi (Filó) e os argentinos Luis Monti, Attílio Demaría, Raimundo Orsi e Enrique Guaita.

Entre os fascistas, a convocação dos oriundi foi alvo de muitas críticas, sempre rebatidas pelo técnico Vittorio Pozzo com uma frase enfática. “Se eles podem morrer pela Itália, também podem jogar para a Itália, ganhar e ser campeões”.

Além de reforçar a Azzurra, trazer jogadores de outros países representava o enfraquecimento de Brasil e Uruguai. Os uruguaios, sob pretexto de dar o troco pela Itália não ter ido em 1930 e por considerarem a convocação dos oriundi um jogo sujo, desistiram de disputar o Mundial. Com os atuais campeões fora, o caminho parecia mais fácil aos italianos. Não foi o que se viu.

Copa de 34: Fascismo e futebol na Itália

 

À medida que o Mundial se aproximava, Mussolini tratava de transformá-la em uma extensão de sua política. A um mês do evento, obrigou Vaccaro a fazer propaganda em todas as cidades, não apenas nas sedes dos jogos. As peças representavam a exaltação da ideologia de extrema-direita: jovens atletas fazendo a saudação fascista.

Posteres da Copa do Mundo de 1934, disputada na Itália. Foto: Reprodução.

O viés ideológico tomaria conta daquele Mundial, com estádios repletos de afiliados do Partido Fascista e gritos de “Itália, Duce” vindo das arquibancadas. O ditador assistiu a tudo de camarote, rodeado pelos camisas pretas – os uniformizados da milícia do Fascismo.  

A Copa foi disputada entre 16 países, em sistema eliminatório de jogo único. Na estreia, a Itália despacha os Estados Unidos com uma goleada de 7×1. Contavam os donos da casa com uma contribuição psicológica que se tornaria marcante. Antes de cada jogo, Mussolini mandava distribuir um bilhete aos atletas: “Vitória ou morte”, era o slogan fascista e também da Azzurra naquele Mundial.

No lado sul-americano, a sorte não seria a mesma. Com a desistência do Uruguai, restaram Argentina e Brasil. Um conflito interno, porém, enfraqueceria as duas seleções. Os argentinos levaram um time amador e foram eliminados logo de cara, perdendo de 3×2 para a Suécia. No Brasil, a discussão entre Confederação Brasileira de Desportos (CBD) – que defendia o amadorismo – e a Federação Brasileira de Futebol (FBF), que queria a profissionalização, resultou no envio de uma equipe incompleta. O selecionado brasileiro foi eliminado na primeira fase, após perder de 3×1 para a Espanha.

Com os sul-americanos fora, faltava combinar com os europeus. Nas quartas, duelo entre italianos e espanhóis, na partida que ficou marcada como “A Batalha de Florença”. No total, 7 jogadores da Espanha saíram lesionados. Das arquibancadas, só se ouvia “Vencer ou Morrer”. O árbitro belga, Louis Baert, nada fez para conter a violência italiana e ainda validou um gol irregular da Azzurra. Mesmo assim, o jogo terminou empatado em 1×1 e houve a necessidade da realização de um novo encontro entre as seleções.

O confronto de volta aconteceu apenas 24 horas depois, com a Espanha sem seis titulares. O jogo acabaria 1×0 para a Azzurra, com nova interferência direta da arbitragem, que anulou dois gols espanhóis legítimos e validou o tento irregular de Giuseppe Meazza. Depois da vitória, Pozzo fez questão de exaltar a ideologia propagada por seu líder. “Foram necessários homens de têmpera especial para batê-los, homens fortes e confiantes como só o Fascismo pode criar”, disse o treinador, de acordo com o livro Dando Tratos à Bola, de Hilário Franco Jr.  

Na semifinal, a arbitragem novamente é determinante e a Itália vence por 1×0 a seleção da Áustria, batizada de Wunderteam (time maravilha). Perto da glória esportiva, na final os italianos teriam como oponente o técnico time da Tchecoslováquia. Segundo conta Edgardo Martolio, para garantir a “imparcialidade mostrada dias antes”, Vaccaro exigiu que o árbitro da final fosse Ivan Eklind, o mesmo da semifinal contra a Áustria. 

Sem se importarem com o ambiente da partida, os tchecos saíram na frente a 20 minutos do fim, com o atacante Antonín Puc. O empate viria a nove minutos do fim, dos pés de Orsi. O 1×1 levou a partida para a prorrogação. Em nome do ditador, Vaccaro se dirigiu ao vestiário para mostrar quão importante era aquele título. “Senhor Pozzo, Mussolini mandou lhe dizer que você é o único responsável pelo sucesso, mas Deus o ajude se falhar”, disse o dirigente ao técnico.

Na prorrogação, o atacante Schiavio marca e garante o título à Itália. Nas arquibancadas, torcedores gritam “Du-ce, Duce”. Quatro anos depois a Azzurra voltaria a repetir o feito em um cenário pré-guerra, no qual a preocupação maior eram os campos de batalha, e não os do esporte. De 34 em diante, o mundo teve certeza: futebol e política sempre jogaram juntos.

Pozzo é erguido pelos atletas na celebração do título. Foto: Wikipédia.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Thiago Rosa

Formado em Jornalismo e com especializações em Relações Internacionais, Marketing e Gestão da Experiência do Consumidor. Cofundador do Extracampo, projeto com a finalidade de mostrar a influência do esporte mais popular do mundo na sociedade e na vida das pessoas ao longo do tempo. Tem a certeza de que o futebol jamais será só um jogo.

Como citar

ROSA, Thiago. Itália e a Copa de 34: uma vitória com toques de fascismo. Ludopédio, São Paulo, v. 119, n. 24, 2019.
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