Nos anos 1970 atuava no Clube Atlético Mineiro um goleiro argentino chamado Miguel Ángel Ortiz, que era bom sob as traves, mas ficou mesmo marcado na memória dos torcedores pelas roupas espalhafatosas, os longos cabelos presos por uma fita e por cobrar penalidades, algo incomum à época. Dos seus pés saíram, em duas temporadas no Galo, sete gols. A habilidade com os pés, segundo ele, se devia a que os arqueiros costumavam, no país vizinho, treinar como meio-campistas. Não sei se era para tanto, mas, de fato, Ortiz começou no futebol tentando jogar na linha.

Desde que as regras mudaram e ao goleiro não mais se permite tocar com as mãos a bola que lhe é passada por um companheiro, exigiu-se deles habilidades que antes eram dispensáveis. Entre os melhores da posição há os que atuam com funções de líbero, começando ou dando continuidade às jogadas, como é o caso do alemão Manuel Neuer. Para além disso, guarda-metas seguiram cobrando penalidades e tiros livres diretos, com destaque, claro, para o brasileiro Rogério Ceni e o paraguaio José Luis Chilavert, ambos artilheiros. Ouvi Chiqui Arce uma vez dizer, sem pestanejar, ele que batia na bola como poucos, que na seleção nacional a preferência das cobranças era do goleiro e capitão do time.

Há duas semanas, Alisson Becker, goleiro do Liverpool também fez seu gol, mas de forma muito menos usual do que em cobranças de pênalti e tiro-livre. A partida de seu time contra West Bromwich ia empatada em um gol quando, no último momento o arqueiro foi para a área adversária e, aproveitando um escanteio, marcou de cabeça. A vitória manteve as chances dos Reds de se classificarem para a próxima edição da Champions League. Não foi um fato inédito, mas raro. Vi várias vezes o palmeirense Marcos tentar o mesmo, sempre com insucesso; Felipe, goleiro do Corinthians na campanha do rebaixamento, em 2007, evitou um possível tento do próprio time ao antecipar-se a uma bola cujo destino era a cabeça de Finazzi, o centroavante alvinegro.

Gol de goleiro é algo impressionante, mas muito mais é um jogador de linha vestir a camiseta que difere das dos demais e ir defender a própria meta. A posição é especializada ao ponto de o improvável improviso tender ao impossível. Mas acontece. De pequeno eu ouvia, na beira do campo de várzea em que meu pai atuava como zagueiro, que futebolista bom com os pés seria igualmente capaz com as mãos. Falava-se isso quando havia que substituir o goleiro, e com frequência o escolhido era o melhor jogador do time. Havia um exemplo de anos antes, e não era qualquer um: Pelé.

Pelé Goleiro
Foto: Reprodução Santos FC

O melhor jogador do mundo era conhecido por também ter atuado, quando necessário, no gol. Nos tempos em que não podia haver substituição durante as partidas, e o guarda-metas se machucava ou era expulso, era o Rei que o substituía. Zagallo conta que ambos treinavam como arqueiros, em 1958, para a eventualidade de alguém ter que suprir a falta Gylmar. O próprio, aliás, foi expulso em jogo semifinal da Copa Brasil de 1963, em jogo do Santos contra o Grêmio, e quem vestiu sua camisa nos minutos finais foi Pelé. Houve mais três participações do craque maior como goleiro, ele cujo filho Edinho atuou exatamente nessa posição, a mesma que ele massacrou com seus mil e tantos gols.

Hoje nem tanto, mas há anos atrás a Argentina era tida no Brasil como celeiro de grandes arqueiros. José Poy, Edgardo Andrada, o citado Ortiz e até mesmo o campeão mundial de 1978 Ubaldo Fillol (que o Flamengo buscou no Argentinos Juniors, para substituir Raul, em 1984), atuaram aqui. Há dez dias, no entanto, brilhou um não-goleiro na meta de um clube portenho, um dos mais importantes do mundo. Jogando pelos River Plate desde 2017, campeão pelo Estudiantes, pelo Benfica e pelos próprios Millonarios, e com duas Copas do Mundo no currículo, Enzo Pérez deixou temporariamente sua posição de jogador de meio-de-campo para atuar entre as traves e com as mãos contra o Santa Fé, da Colômbia, em pela Copa Libertadores da América. A questão é que Enzo não foi surpreendido com a necessidade de substituir o goleiro durante a partida, mas já entrou em campo como tal, dada a escassez de atletas disponíveis por causa da contaminação pelo Covid-19 de duas dezenas de jogadores do plantel. O arqueiro bissexto levou apenas um gol durante os noventa minutos e seu time saiu-se vitorioso por 2 X 1.

Enzo Pérez
Enzo Pérez. Foto: Reprodução Twitter

Vi o centroavante Gaúcho, do Palmeiras, atuar de forma improvisada no gol e defender duas penalidades, as de Zinho e Aldair, em uma disputa contra o Flamengo pela Copa União de 1988. No ano seguinte, foi o próprio rubro-negro que teve que apelar para um atacante, e foi a vez de Caio Ribeiro ficar invicto sob a meta. Mas nenhum deles, nem mesmo Pelé, supera o que fez Enzo Pérez. Já se sabe que sua camisa de jogo foi para o Museu do River, o que corresponde à comoção gerada no país vizinho. Não é para menos. Aplaudo-o de pé.

Ilha de Santa Catarina, maio de 2021.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Jogar com os pés, com as mãos: futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 60, 2021.
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